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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Endeviches tinha os olhos largos

Endeviches tinha os olhos largos, diziam na aldeia à boca calada. via mais longe que ninguém, e, ainda as coisas estavam em margens inventadas e já ela, em premonição, quem sabe, lhes divisava contornos. se fosse caso disso,  desviava-se delas a sete-pés. talvez por isso nunca tenha casado, nunca tenha arranjado homem, diziam uns. talvez por ser uma espécie de videira rupestre,  torta e retrocida, a reflorir a cada primavera no círculo das pedras da aldeia de crescer, diziam os mais avisados – o seguro morreu de velho e,  de velha,  haveria Endeviches de morrer.  briosa, tinha gosto de assim ser.
 manienta, contudo,  terá sido por via dos "olhos largos" que embicou de cismar que o vizinho de baixo tinha um caso com o  da courela de cima, e, ela, ali no meio,  ficava agravada só por imaginar o que, ora em cima, ora em baixo, os dois sempre juntos, estavam a aprontar.  dona de um dialecto sensível, acomodou a fala na algibeira da saia.  por ter olhos largos,  quando entendeu o caso, armou o laço a ambos. no dia agendado de um tempo de vindimas, ébrio ao paladar, e em que, junto ao pelourinho, na peneira da tarde,  era obrigatória a vacina dos cães, entregou os seus, recolhidos de vadios, ambos, um a cada um, com a recomendação  solene de que jamais os largassem em que circunstâncias fosse  – seria um enorme favor, enfatizava,  abalizada à corcundice naquele olhar só dela, a luzir de penas, porque, em rigor, e por causa maior,  não poderia  ser ela mesma (e o quanto lhe custava) a portadora dos ditos. como assim? ora bem  vê, vizinho, por ter de ir a banhos na hora da maré rasa,  em hora certa, sem falhar uma virgula, recomendação do médico, do curandeiro, e, com perdão da palavra "do bruxo de subserra", repetiu a cada um, enquanto se soltava da trela, primeiro na courela cimeira, e a seguir, na de baixio. depois, devagarinho, deu três passos, rumo à várzea de beira-rio, não sem antes, onde os olhos lhe  foram aves e o ângulo dos ossos lhe doía, deixar  a bengala pousada contra a soleira da porta.
bebeu de um cantil a embriaguez da origem das causas justas, expurgou-se em diálise melancólica. metamorfoseada, como se, repentinamente, tivesse retirado um peso  dos ombros, como se, por obra e graça do divino, o pensamento fosse vassoura do tempo e  resina arábica a recompor colagens soltas, Endeviches, era moça em novidade de uvas. repuxou o corpete até às ancas, redopiou sobre os calcanhares e tomou caminho. para trás ficavam os cães e os seus vizinhos.  nos olhos levava um névoa, um gemido manso, mascarado de poesia, e, da vilanagem dos homens, uma dor tão funda  que comovia  a tarde.  a mesma tarde que,  recíproca, se nebulizava em gotas de orvalho nas árvores de pele descoberta. 
na escala da floresta ouvia nítidos, quão longínquos,  o ganir dos cães "os cães ladram, a caravana passa" .na verdade – sorria de si para si, na sensorialidade do tempo breve  – ,  recordava-se agora de uma falha  imperdoável  nas suas recomendações: não lhes falara, nem sequer ao de leve,  de que, cães vadios, o ódio entre eles era antigo,  tanto quanto o amor de  D. Quixote a Sancho Pança... 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

imagino

ainda não te vejo,
cultivo, ad eternum,  "o amor dos cegos",
a paixão pelo interior, o íntimo, o crepúsculo das fragas
em que decaem os meus e os teus olhos, as vozes de Pégaso, o risco e o traço da ilha dos amores
onde a luz se estilhaça e  não cede, parca, ao penhor da rotina, e se multiplica, emancipada,  em cada fim de tarde, 
imagino [te]
Pégaso, o acurado  do trato,  infinito,  infinita constelação boreal em palco de  ardósias, as leituras,  a sinalética,  os códigos, a pesquisa das raízes onde despontam os sinos replicados em sons ciciosos de vento a tons de rosa-púrpura.  perguntas-me,  amor, que forma tem o vento? voa,  voa  livre, livre, quiçá, digo[te], voeja além das pálpebras, abafa a fala melódica dos cânticos natalícios - anuncia, qual estrela,  a vinda dos reis magos, o ouro, o incenso, a mirra. os cânticos natalícios, ’inda? inquires-me, em incredulidade nata,  sim, pois sim… recordo-me de tantos natais à deriva, sabes? e do cansaço?  sim, também,  por certo,  confirmo-te. perpetuam-se, entoam-se agora,  como ontem,  nos musgos e nos presépios da  minha aldeia, é meio-dia, meia-noite, não sei,  não sei, perdi-me do tempo no tempo  exacto de dois ponteiros sobrevidos (e no seu antónimo), a porfiar  novelos à roca de fiar horas  dias a fio,
sem sentido,
por instantes, em exegese sumária, recordo-me de um texto, de uma melodia, de uma  flauta de osso, de ser
inverno na estação dos pássaros
de uma asa, de um rasto (eu quase bicho)
de um concha,
e de um porto d'abrigo,  estrela a preceder[me]o acto.
.
.
.
ainda não te vejo, as borboletas soltam-se-me do estômago à boca, rodeiam-me os lábios numa dança tribal,  iniciática,  
as sílabas, as  palavras. soletro-te,
imagino
o teu corpo a tomar conta do meu, e, sem  que me impeça,  deixo-me levar na serenidade  das tuas águas - daquele que nasceu do rio, que me é dia-após-dia, chama e claridade. encolho-me, mínima (sabes-me assim, caprichosa. prepositiva, contudo.  talvez, indefesa, menina). sabes-me, mulher-amor-maior, ternura mansa e tenra na textura de tuas mãos rugosas, adivinhando serem, e me seres,  a fresca brisa, a água sacarina,  a bruma  leve que lava  e expurga o entulho dos calhaus rolados em alto mar, e se faz,  per si, dourada  areia cristalina
da orla marinha, imagino,
as tuas mãos nas minhas - de mãos dadas, mi-amada, não tenhas medo, dizes, haveremos de encontrar a chave de todos os cárceres, haveremos de recusar a solidão profunda dos acompanhados,
anuo - cada vontade tua é uma ordem, que acato, por vontade própria -  felicidade suprema de  ver  um sorriso a provir  na matiz celular dos teus  lábios, "o amor dos cegos”, a luz, a luz, o devir.
em êxtase
subo os meus olhos baixos, a ser-te semente terra e esteira e lavra - olho-te semeada na palma da tua alma.  olho-te,  já te vendo. sorris e sei-te decanto,  cintilação profusa, plena  e nutritiva, da nascente, sei-te,  limo, sargaço e verbo.  no princípio era o verbo - e o sol, bem sabes - no princípio era o sol - és o meu sol,   repito [te]...
aninho-me mansamente no sorriso de teus lábios,  o chão a não suster-nos de pé, eclosão do universo, a garganta da serpente, a lava, a seiva jorrante,  primeva.  oiço-te  rente ao peito, reconfortado. ecoo em ti:  na tua voz  o meu nome tem a textura de um corpo acabado de nascer. o veludo de um ventre de mulher.  a maciez de uma pétala. é quanto importa,
       "o que fazemos na vida ecoa na eternidade..."
emudeço, humedecem-me os olhos, que, cerrados,  não podes contemplar. sorrio-te, a sublinhar-te, indelével. irreplicável,
ainda não te chamo amor porque não sei sequer como haveria de se pronunciar… apenas sei de um espaço onde os teus ombros [me] foram aves,  magia, incenso, ouro e mirra, e que,  na nobreza e gesto dos reis magos,  se perpetuam, eco,  fulgor vivaz de sábia eternidade.
imagino...


Imagem: Vladimir Dunjic

Nota post scriptum : Flauta de osso
"Os mais antigos instrumentos existentes(...) feitos de ossos de rena (10.000 a.C.)..."

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...