ainda não te vejo,
cultivo, ad eternum, "o amor dos cegos",
a paixão pelo interior, o íntimo, o crepúsculo das fragas
em que decaem os meus e os teus olhos, as vozes de Pégaso, o risco e o traço da ilha dos amores
onde a luz se estilhaça e não cede, parca, ao penhor da rotina, e se multiplica, emancipada, em cada fim de tarde,
imagino [te]
Pégaso, o acurado do trato, infinito, infinita constelação boreal em palco de ardósias, as leituras, a sinalética, os códigos, a pesquisa das raízes onde despontam os sinos replicados em sons ciciosos de vento a tons de rosa-púrpura. perguntas-me, amor, que forma tem o vento? voa, voa livre, livre, quiçá, digo[te], voeja além das pálpebras, abafa a fala melódica dos cânticos natalícios - anuncia, qual estrela, a vinda dos reis magos, o ouro, o incenso, a mirra. os cânticos natalícios, ’inda? inquires-me, em incredulidade nata, sim, pois sim… recordo-me de tantos natais à deriva, sabes? e do cansaço? sim, também, por certo, confirmo-te. perpetuam-se, entoam-se agora, como ontem, nos musgos e nos presépios da minha aldeia, é meio-dia, meia-noite, não sei, não sei, perdi-me do tempo no tempo exacto de dois ponteiros sobrevidos (e no seu antónimo), a porfiar novelos à roca de fiar horas dias a fio,
sem sentido,
por instantes, em exegese sumária, recordo-me de um texto, de uma melodia, de uma flauta de osso, de ser
inverno na estação dos pássaros
de uma asa, de um rasto (eu quase bicho)
de um concha,
e de um porto d'abrigo, estrela a preceder[me]o acto.
.
.
.
ainda não te vejo, as borboletas soltam-se-me do estômago à boca, rodeiam-me os lábios numa dança tribal, iniciática,
as sílabas, as palavras. soletro-te,
imagino
o teu corpo a tomar conta do meu, e, sem que me impeça, deixo-me levar na serenidade das tuas águas - daquele que nasceu do rio, que me é dia-após-dia, chama e claridade. encolho-me, mínima (sabes-me assim, caprichosa. prepositiva, contudo. talvez, indefesa, menina). sabes-me, mulher-amor-maior, ternura mansa e tenra na textura de tuas mãos rugosas, adivinhando serem, e me seres, a fresca brisa, a água sacarina, a bruma leve que lava e expurga o entulho dos calhaus rolados em alto mar, e se faz, per si, dourada areia cristalina
da orla marinha, imagino,
as tuas mãos nas minhas - de mãos dadas, mi-amada, não tenhas medo, dizes, haveremos de encontrar a chave de todos os cárceres, haveremos de recusar a solidão profunda dos acompanhados,
anuo - cada vontade tua é uma ordem, que acato, por vontade própria - felicidade suprema de ver um sorriso a provir na matiz celular dos teus lábios, "o amor dos cegos”, a luz, a luz, o devir.
em êxtase
subo os meus olhos baixos, a ser-te semente terra e esteira e lavra - olho-te semeada na palma da tua alma. olho-te, já te vendo. sorris e sei-te decanto, cintilação profusa, plena e nutritiva, da nascente, sei-te, limo, sargaço e verbo. no princípio era o verbo - e o sol, bem sabes - no princípio era o sol - és o meu sol, repito [te]...
aninho-me mansamente no sorriso de teus lábios, o chão a não suster-nos de pé, eclosão do universo, a garganta da serpente, a lava, a seiva jorrante, primeva. oiço-te rente ao peito, reconfortado. ecoo em ti: na tua voz o meu nome tem a textura de um corpo acabado de nascer. o veludo de um ventre de mulher. a maciez de uma pétala. é quanto importa,
"o que fazemos na vida ecoa na eternidade..."
emudeço, humedecem-me os olhos, que, cerrados, não podes contemplar. sorrio-te, a sublinhar-te, indelével. irreplicável,
ainda não te chamo amor porque não sei sequer como haveria de se pronunciar… apenas sei de um espaço onde os teus ombros [me] foram aves, magia, incenso, ouro e mirra, e que, na nobreza e gesto dos reis magos, se perpetuam, eco, fulgor vivaz de sábia eternidade.
imagino...
Imagem: Vladimir Dunjic
Nota post scriptum : Flauta de osso
"Os mais antigos instrumentos existentes(...) feitos de ossos de rena (10.000 a.C.)..."