Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 9 de abril de 2013

a recusa da evidência

"Há noites que levamos à cintura / como um cinto de grandes borboletas. 
E um risco a sangue na nossa carne escura / duma espada à bainha dum cometa."
in A recusa das imagens evidentes, Natália Correia

 não tinha memória, verdadeiramente, de quando abraçara alguém de verdade.
naquela manhã de vésperas reabilitara a sua velha aparelhagem, uma Sharp dos anos 80, vintage como ela própria. para sua desolação o leitor de CD's não trabalhava, por certo pelo acumulado de poeiras. haveria de resolver a questão numa outra hora. agora não, disse a si própria, agora não, repetiu-se. "não há insubstuíveis, sabes?, a arte está na procura de outras alternativas. 
procurou o comando de infra vermelhos por toda a casa. por fim, no derradeiro minuto, no quase a desistir, encontrou-o, desventrado e sem pilhas; uma bênção, concluiu -  de outra forma estariam calcinadas e o comando corroído. em tudo havia sempre um lado positivo e nada haveria de contrariar os seus planos -  agora bastava encontrar novas e isso não se afigurava tarefa fácil, dado que, por sistema, eram sempre consumidas em "n" aparelhos, e, no carregador ninguém parecia interessado em manter nenhuma viva. pouco importa, há sempre alternativas, pensou em voz alta. decidida, retirou as necessárias de um outro comando disposta a, nessa mesma tarde, sem falta,  as repor. não tencionava deixar rasto dos seus dias, sequer das suas escolhas. ao fim de muitos anos tomava, determinada, o pulso ao tempo e às suas coisas. sintonizou a Smooth Fm - tocava Diana Krall, Every time we say goodbye. esfregou os olhos a dissipar a névoa que, súbita, desceu sobre o seu rosto. abriu os roupeiros e começou a seleccionar o que haveria de levar consigo;  de tudo o que não cabe numa mala, pensou, não ficará rasto... Blame it on my youth, blame... talvez fosse. a culpa fosse da "sua" juventude. tarde em demasia, agora.  
esfregou os olhos com mais força. adivinhava-se no horizonte um tempo novo de sombras perfiladas, soldados à porta de armas, e, dentro de si, em relutância de princípios,  passos perdidos em claustros monásticos. projectavam-se desabrigados, hoje como ontem, nas veredas e calçadas, nos silêncios remoídos, na espessura das searas, nas canas bravas. havia, contudo (e sabia-o desde criança)  atalhos no rumo rectilíneo das águas ..."ah, se os meus cabelos, soubessem da textura dos teus dedos... ah, se...". uma imensa trança ornava-lhe o ombro direito, espessa como um pulso de donzela casta, fulgente como crepitar de uma lareira, de chama e pontas  triunfante sobre a cinta. ..."ah, se …”
em fúria, a contrariar o rumo do pensamento, arrancou-lhe  o atilho.  os dedos a dedilhar os fios, a retalhar os nós, a doer no leito nupcial do seu desejo. um humor grosseiro a rasgar o rosto, um sorriso a morrer por dentro. uma mágoa bastarda e ilegítima.  de tudo o que não cabe numa mala, esguiava-se o verbo em neblina de movimento. vigilou-se, impôs-se a si mesma, como quem controla o acto e alibi, e agora, que lhe restava? "porque os outros" amam "mas tu não"...
a doçura da sua natureza nua, os dedos a desfibrilhar os nós, a chuva a magoar beirais, os cabelos soltos, a certeza de que  naufragamos  por vezes infinitas em mãos inimigas… a frescura da resina a impedir a morticidade da alma.
retomou o comando, aumentou o volume até que o jazz lhe trespassasse, cinzelando, em vibrato de vidros, todos os poros, levando para longe a poalha dos dias e as lágrimas - a lágrima é um cisco entre o olhar e o lábio  num apuro corrompido à falta de argumentos, pensou em voz alta. recomposta, com a cara enrubescida de emoções, mergulhou na feitura da mala, nos planos de batalha, na teoria do quadrado, na quadratura do circulo. estava agora  aturdida de um frio escuro (talvez fosse o inverno, ainda, e as estações do ano e da vida não necessariamente verdadeiras)  a subir-lhe as pernas bamboleantes. em dialéctica de contrários, surpreendia-se tantas vezes, a si  própria, ao salpicar a história de água benta, amolecida em recusa de imagens evidentes,  e,  contudo…
não são minhas as palavras, sequer as letras de um qualquer alfabeto; nem tão pouco os verbos que não contenho nas palmas abertas de uma vida; minhas, por certo, serão as formas com que visto  o tempo, este, branco de neve e espanto que me aguarda em Primavera que não chega, disse-lhe, enquanto Ricardo a escutava sem que dos seus lábios aceirados se soltasse uma palavra...
fez-lhe, um sinal, a mão a suplicar-lhe, mais perto. deixa-me abraçar-te, segredou-lhe já com a cabeça a tombar-lhe urgente sobre o peito. e, como se para si própria falasse, disse-lhe: sabes, meu filho, quando sonhas (e sendo tu, como és,   parte de mim, talvez seja a mim que o diga), quando sonhas, repito, olhas o horizonte, este que te rodeia, alvíssimo de branco, ou outro que quer que seja, e és, não do teu real tamanho, como já alguém o disse, mas do tamanho dos sonhos em que te atreves ser numa espécie de artes performativas, mas, quando te dás ao tempo de te olhar por dentro, de te ouvir por dentro, então, direi que vives. a assertividade não é incompatível com a performance que imprimes no rumo de tua vida...
lentamente afastou-o de si. o sol teimava em iluminar a cadeira de vime vinda de um verão longínquo. Catarina beijou-lhe o rosto onde uma lágrima parecia indiciar o entendimento do que acaba de ser dito. elevou a cara a buscar-lhe o rosto. depois, como lhe fazia quando ele era menino e lhe entrava um cisco, uma areia, uma poeira que fosse, para os olhos, segurou-lho entre as mãos e beijou-lhos, sugando-lhe as lágrimas. afastou-lhe o rosto de novo, riam os dois. gata, disse-lhe, és mesmo uma gata. bem sei, respondeu-lhe a franzir as sobrancelhas levemente, afirmativa e inquisitiva,  e, para que conste, tenho sete vidas.  o segredo dos gatos é uma espécie de metáfora de asas...  
ou a asa de um segredo a sombrear o tempo, retorqui-lhe. em tudo o mais, sempre te digo da importância desmedida de tudo o que não cabe numa mala… 
numa mala cheia de gatos?  num miar de gatos,  riram juntos. 
                 afinal, gato que mia não morre ... 

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...