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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 15 de outubro de 2011

o mistério da água


(REPUBLICAÇÃO)

habitava o mistério da água. a estação termal da pele. curandeira de si e dos demais vagueava a encosta em busca da planta certa para a enfermidade que assolava a plebe. para si mesma escolhia a mais amarga - bebia, não raras vezes, o fel da terra, e, reconfortada, numa espécie de penitência póstuma, prosseguia viagem num voo invertido de quilhas e asas.

naquela manhã deu-se conta de que acordara inversa à tão desejada resistência,  ao efeito triturador do tempo.  acordara  na forma atópica da derme, salina, ainda que, reconhecendo a (ainda) plasticidade cerebral. acordara crosta que  ao mais pequeno sopro se exaltava em manchas desmesuradas, ora vermelhas, ora enegrecidas à cor serosa das tempestades. os dedos avermelhavam-se no efeito emocional de um botok que recusava.  no texto e no contexto, bebia do mistério da água, um a um, de todos os factores, genéticos, epigenéticos, e dos mais que a ciência ainda não inventara. 

pelo buraco da fechadura olhou-se fronteiriça, anedónica, num estado que temia. pouco prazer já retirava das coisas que até ai tinham ilustrado o traço da sua vida à cor purpura;  mediu-se na fragilidade da sua intolerância, naquele estado em que, urticária ou eczema, tanto faz, lhe provocava o desconforto da reactividade; tomou-se de si, atravessou o quarto de dormir, depois o hall, onde, na semi-penumbra, vislumbrava os olhos dos que antes e depois dela própria, transportavam de si, comum genética.

"a importância está nos genes, na tenacidade, na vontade de vencer, de nunca se entregar... só estes factores determinam a qualidade das pessoas longevas", lera enquanto lá dentro a luta era pela vida a qualquer preço,  ainda que, segundo a segundo, menores as sinapsias e inferiores os reflexos... 
atravessou o escuro do hall. sentiu-se invadida - há espaços que são só nossos. sentiu-se fria. a tal sensibilidade excessiva mortificava-a, e, de novo, na memória, a certeza inabalável de que a natureza tudo resolve e dela, o mistério da água. mas,  e o frio, Júlia? o frio?...
um sorriso mordeu-lhe a alma  "júlia, tu sabes, os astros não morrem, arrefecem..."
pegou na toalha, abriu a torneira
deixou que o fio escorresse do inox
  livremente,
já quase a transbordar 
entrou na banheira, deslizando, ela, a pele, o esmalte, as mãos, os gestos, 
            a contornar o epicentro das tempestades - ao momento, recordava-se, apeteceu-lhe  gritar o instante inacabado, a fúria da charrua no encontro da várzea, o vislumbre nunca cicatrizado
sequelas
recidivas, e,
de um poema, uns versos,
"as sereias não se atrevem nos pastos, 
nem as musas acolhem as lágrimas
nuas 
nas  conchas convexas dos olhos..."
nos seus lábios, a palavra 
e o silêncio desconexo de neurónios - sinapsias menores...
embotada, emoliente, a água.  alambica-lhe a chaga -  voz  que não saía, retida,  grude,  intolerante,  na garganta -,  um poço de parede vertical onde  deslizava em fogo um nome, epigrafado em sombra crua,  decalcado ao picotado da uva e onde, o mosto nas primeiras chuvas, fermentava a matriz das horas silenciosas num embolo alagado de um lagar sem bica - o outro lado onde a noite se circunflexa pestanuda em vasos nasogenianos  e no contorno dos lábios - o tal  local  onde  as rugas se anunciavam na secura das águas, na flacidez das carnes. das suas carnes ...
deixou a mão descer,  tocou-se. pressentiu o canyon acontecido, texturas de pedra e de ostra nos sedimentos e na geologia de uma vida. a cabeça, depositada contra o rebordo da banheira, descia, lenta, sem esforço, em apneia, ou talvez não...
convicta júlia deslizava o vale, o mistério da água, a confluência dos tempos compositivos.  na sala a grafonola tocava  prodígios e metáforas, félio alimento de sua alma. na caixa de pandora o valete de copas discutia percursos alternativos com Alice do país das maravilhas...

a cabeça submergia a espuma, os dedos avermelhavam-se, a mão, por fim, tombava;  a água encontrava o caminho da água,  o amor era uma estação ao lado... Júlia!



domingo, 2 de outubro de 2011

A menina dança?...

  (REPUBLICAÇÃO)
Ouvia-o já como se seu não fosse. Irritava-se que batesse. Que batesse ainda. Umas vezes em fúrias arrítmicas, e outras, de uma forma tão serena, tão doce, quanto uma tarde de Inverno à beira de um rio de águas cinzentas.
Questiona-se tantas vezes porque ainda não deixara de bater. Porque não poderia ela, à semelhança de outras partes de si, prescindir dele, sem mais? Como os dentes, que já não tinha, por exemplo. Afinal não passava de um músculo. Um mero propulsor de sangue, vestido de túnicas sucessivas. Como uma bailarina em pontas.
Ai a dança, a dança…
Ainda presente as lições do corpo humano, a sala inteira:
- ... pericárdio, miocárdio, endocárdio, outra vez… mais alto…, pericárdio, miocárdio, endocárdio,
ou
- aurículos, ventrículos… aurículos, ventrículos…
Era o tempo em que o coração era o que era e nada mais. Tempo finito, deu-se conta bem cedo, no dia em que
- A menina dança? Psi, psi … A menina dança?...
fez com que o dito músculo se tornasse, de súbito, incontrolado. Descompensado, e, quase juraria, entoasse mais alto que qualquer instrumento em palco. Afinal, razão tinha a professora quando lhe falara que se tratava de um “músculo involuntário”.
- Brancas, no corpo humano existem duas espécies de músculos: voluntários e involuntários. Os primeiros, tu dominas com a vontade, com a razão, com o que te ensina a moral e os bons costumes… tu dominas as mãos, os pés, como sabes. Tu dominas os movimentos através do que te é dito pelo sistema nervoso central, mas Branca, tu não dominas, por mais que queiras, a quantidade de batidas do teu coração… ele é um músculo involuntário, caprichoso. Muito caprichoso, que, inclusivé, se mascara do ponto de vista da fisiologia com estrias, como se fosse do grupo dos músculos voluntários… sabes, não dominas os sentimentos. A saudade. A lonjura que o tempo não esbate… não, Branca, isso não se domina,
Nesses dias a professora parecia voar para longe. O olhar tornava-se mais negro, no azeviche do luto, do mosto dos lagares de uva tinta, das azeitonas sob as prensas. Tardava o regresso das palavras sábias, da ciência. A sala ficava suspensa num limbo nostálgico. Só as batas brancas eram ainda asas fulgurantes sobre as mentes. Como branco o nome de Branca. E ambos pareciam reflectir os últimos raios de sol daqueles instantes invernosos…
- ... repitam comigo, vá. Quero isto tudo na ponta da língua. Agora as válvulas: Mitral e Triscúspide…
É difícil, bem sei, mas recorram a mnemónicas (sabem o que é, já vos ensinei…). De novo, agora, tudo… pericárdio, miocárdio, endocárdio … aurículos, ventrículos… aurículos ventrículos… válvulas … o coração é um músculo involuntário…
Ele vinha, de um lado ao outro da sala.
Fato completo, sapatos de biqueira luzente. Cabelo puxado na brilhantina, anos sessenta.
Ela, de laço engomado na cabeça, de olhos baixos, fingia não perceber que o “menina dança” lhe era dirigido.
Ele insistia:
- A menina dança? … O dedo em riste. Sorriso calculado. Nem demais nem de menos. Como convinha. O embaraço. Dela. Os cochichos de Dália, atrevida, a seu lado…
- Branca, é o tal, o que estava no Domingo passado na leitaria… é tão alto, Branca… um figurino…não te armes em difícil, em pura donzela, que ele desiste …
- Dália, por favor, ele ouve…
- Que oiça. Eu ia, se ia … mas ele está é de olho em ti…
Ela também iria... Mas, e o medo? Da fama não se livrava. Mas havia que não dar crédito a falatórios de quem nada sabia. Gentes sem cultura que se entretêm só com a vida alheia. O meio era pequeno. Todos falavam de todos. Ele um gentio. Chegara à terra há meses, a bisbilhotice era, pois, natural ...
Por fim, após o compasso de espera, um olhar aprovador. Da mãe. E um “vai, mas olha o respeito”. Branca avançava a pista. As pernas bambas, a pele coberta de gotas finíssimas... Ai, o coração, esse, corcel sem nexo,
Avançava dois passos. Tímida, dava-lhe a mão, em ponta de dedos. Ele, engomado e tirado das caixinhas, cheirava-lhe, desde logo ao mirto dos dias proibidos. A pólvora dos dias de caça. Inebriava-lhe os sentidos, cantava-lhe ao ouvido a canção do bandido. Na cifra da música que alterava em sussurros de visco. O mesmo com que, nas noites de luar, na lezíria aberta, armava laços aos pássaros - estorninhos, tentilhões e etc.- , com que se haveria de lamber em tacho de barro. Fritos.
- Esta noite, ó pá, caíram mais de cinquenta. É proibido? E eu por acaso sei ler os avisos da venatória? Até sou analfabeto! Que se lixem esses gajos, se aparecerem por lá mergulho no Tejo, respiro horas a fio por uma palhinha. A mim nenhum arma o laço e, se me ensaboam os miolos, quando os apanhar de costas, papo-lhes as “passarinhas“… ossos e tudo…
Avançava. Da cintura fina, quando os pares se avolumavam no centro da pista, tacitamente descia-lhe por sobre a saia plissada. As mãos sobre as nádegas. Duras, moldadas ainda p’la candura. Ela corava, baixava mais os olhos. O coração, esse músculo irresponsável, arfava sob a blusa de bolinhas miúdas…E gostava.
Ou, quando, na valsa, por entre os passos, as pernas se tocavam. Os sexos adivinhados. O dele, incontido. Em poucos meses grávida. De flor de laranjeira e cauda, como mandava o figurino. Sem a bênção dos pais (os dela). Filha única, Maria Branca tinha de seu. Terras e casas. Ele apenas o Sol empinado nas calçadas. E a pretensão de fazer um belo de um casamento. Conseguido.
As lições do corpo humano na gaveta, o tempo passado. Filhos criados. Ela agora a rebuscar os restos no caixote do lixo.
- Cleptomaníaca, que pode um homem fazer? Não é necessidade, é vício, tem tudo em casa. Puta que a pariu. Nem de mola no nariz lhe toco. O que não me faltam são mulheres… ainda dou o meu pé de dança, ó pá, que julgas?
Uma estrondosa gargalhada ecoava o passeio marítimo. O sol descia. Eram horas de voltar para casa. Branca já teria lavado e engomado, feito a janta.
- Logo joga a Liga. Vejo no café, que tem plasma. Também tenho, mas porra, a gaja fede que tresanda. Não fico em casa um minuto. Saio logo que posso. Com ela não me cruzo. Pudera, a mania de andar nos caixotes do lixo. Não precisa, como sabem… Desde que casámos que decidi não trabalhar para que pudesse dedicar-se a mim… que outra razão teria para viver, digam-me lá?…
Ouvia-o como se seu não fosse.
Irritava-se que batesse. Que batesse ainda. Perdera o controlo de tudo e de si própria. Era agora, ela mesma, um "músculo involuntário", tomada de uma necessidade incontrolada de ver por dentro como os outros viviam… o que comiam, o que deitavam no lixo… se se amavam, se se possuíam…recolhia os sacos em pleno dia à vista dos demais. Então, em casa, abria-os e (re)vivia as suas vidas. Como as imaginava. Vivas. Plenas. Ela morrera no dia em que pousara, inadvertida, no visco de uma armadilha.
- A menina dança???
A sirene dilacerava o silêncio. Sob a chuva miudinha, de pernas no ar, suspensa do caixote do lixo, dobrada pela cintura, Branca. Negra agora… nos lábios um sorriso, enigmático, triunfal. Por fim, o tal  tinha-lhe obedecido. Era agora um músculo controlado. A todo o custo. Finalmente.
 - Está morta. Há que chamar a polícia. O senhor é o marido? … Supomos que se tratou de um AVC, mas só a autópsia o dirá...


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“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...