(REPUBLICAÇÃO)
habitava o mistério da água. a estação termal da pele. curandeira de si e dos demais vagueava a encosta em busca da planta certa para a enfermidade que assolava a plebe. para si mesma escolhia a mais amarga - bebia, não raras vezes, o fel da terra, e, reconfortada, numa espécie de penitência póstuma, prosseguia viagem num voo invertido de quilhas e asas.
naquela manhã deu-se conta de que acordara inversa à tão desejada resistência, ao efeito triturador do tempo. acordara na forma atópica da derme, salina, ainda que, reconhecendo a (ainda) plasticidade cerebral. acordara crosta que ao mais pequeno sopro se exaltava em manchas desmesuradas, ora vermelhas, ora enegrecidas à cor serosa das tempestades. os dedos avermelhavam-se no efeito emocional de um botok que recusava. no texto e no contexto, bebia do mistério da água, um a um, de todos os factores, genéticos, epigenéticos, e dos mais que a ciência ainda não inventara.
pelo buraco da fechadura olhou-se fronteiriça, anedónica, num estado que temia. pouco prazer já retirava das coisas que até ai tinham ilustrado o traço da sua vida à cor purpura; mediu-se na fragilidade da sua intolerância, naquele estado em que, urticária ou eczema, tanto faz, lhe provocava o desconforto da reactividade; tomou-se de si, atravessou o quarto de dormir, depois o hall, onde, na semi-penumbra, vislumbrava os olhos dos que antes e depois dela própria, transportavam de si, comum genética.
"a importância está nos genes, na tenacidade, na vontade de vencer, de nunca se entregar... só estes factores determinam a qualidade das pessoas longevas", lera enquanto lá dentro a luta era pela vida a qualquer preço, ainda que, segundo a segundo, menores as sinapsias e inferiores os reflexos...
atravessou o escuro do hall. sentiu-se invadida - há espaços que são só nossos. sentiu-se fria. a tal sensibilidade excessiva mortificava-a, e, de novo, na memória, a certeza inabalável de que a natureza tudo resolve e dela, o mistério da água. mas, e o frio, Júlia? o frio?...
um sorriso mordeu-lhe a alma "júlia, tu sabes, os astros não morrem, arrefecem..."
pegou na toalha, abriu a torneira
deixou que o fio escorresse do inox
livremente,
já quase a transbordar
entrou na banheira, deslizando, ela, a pele, o esmalte, as mãos, os gestos,
a contornar o epicentro das tempestades - ao momento, recordava-se, apeteceu-lhe gritar o instante inacabado, a fúria da charrua no encontro da várzea, o vislumbre nunca cicatrizado
sequelas
recidivas, e,
de um poema, uns versos,
"as sereias não se atrevem nos pastos,
nem as musas acolhem as lágrimas
nuas
nas conchas convexas dos olhos..."
nos seus lábios, a palavra
e o silêncio desconexo de neurónios - sinapsias menores...
embotada, emoliente, a água. alambica-lhe a chaga - voz que não saía, retida, grude, intolerante, na garganta -, um poço de parede vertical onde deslizava em fogo um nome, epigrafado em sombra crua, decalcado ao picotado da uva e onde, o mosto nas primeiras chuvas, fermentava a matriz das horas silenciosas num embolo alagado de um lagar sem bica - o outro lado onde a noite se circunflexa pestanuda em vasos nasogenianos e no contorno dos lábios - o tal local onde as rugas se anunciavam na secura das águas, na flacidez das carnes. das suas carnes ...
deixou a mão descer, tocou-se. pressentiu o canyon acontecido, texturas de pedra e de ostra nos sedimentos e na geologia de uma vida. a cabeça, depositada contra o rebordo da banheira, descia, lenta, sem esforço, em apneia, ou talvez não...
convicta júlia deslizava o vale, o mistério da água, a confluência dos tempos compositivos. na sala a grafonola tocava prodígios e metáforas, félio alimento de sua alma. na caixa de pandora o valete de copas discutia percursos alternativos com Alice do país das maravilhas...
a cabeça submergia a espuma, os dedos avermelhavam-se, a mão, por fim, tombava; a água encontrava o caminho da água, o amor era uma estação ao lado... Júlia!