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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O fantástico mundo de Ludovina

Há quanto tempo me conhece menino Timóteo? Há quanto tempo? Não responde? Não sabe, não é verdade? Nos seus saberes não cabe a data em que cheguei a esta casa, nem a forma como aqui fui ficando, dia após dia, semana após semana, mês… anos, décadas … meio século quase. É o que lhe digo, menino Timóteo, meio século…
Cheguei num dia de tempestade
ah, é verdade, o menino sempre fugiu das tempestades, sempre teve pavor dos relâmpagos, dos trovões … digo-lhe agora que a voz se me soltou, teve medo porque, a luz a claridade branca de um bom relâmpago lhe iluminava invariavelmente o seu lado negro e fazia, de si a si próprio, película revelada …
(mas isto digo eu, que, como sabe, e saberá melhor que qualquer indivíduo nesta vida porque me conhece, enfermo de uma estupidez crónica, uma incapacidade para qualquer outra coisa que não seja servi-lo. Servi-lo no pleno e para além do pleno a que tem direito…)
Mas não nos percamos agora com estas minhas deambulações ao seu mundo tão cheio de sabedoria… voltemos ao dia que cheguei aqui, tinha então sete anos. Vim pela mão da minha madrinha, de Valpaços e, até hoje, menino, nunca mais lá voltei… esqueci os cheiros do feno, os cheiros da vinha, o toque das castanhas dentro dos ouriços, o felpo interno, a bonomia da vida comunitária… quase tudo, menino, que, e não lhe digo agora como, desde há algum tempo, fiquei de novo ligada à minha terra, aos meus amigos … por milagre, quem sabe …
em “incriação das memórias” …
por milagre …
Cheguei, como se diz, com uma mão à frente e outra atrás. Éramos muitos irmãos e a minha mãe assim o decidiu. Cheguei e apenas de meu trazia o que um dia lhe dei… dei-lhe tudo... Servi-o como se serve a quem se quer muito bem, mesmo que, desde aquele dia tenha intuído (as crianças intuem tanto, menino Timóteo) que o rapaz de calções e de suspensórios que me olhava no cimo das escadas tinha nele algo que nunca tinha sentido até então num qualquer olhar de gente ou bicho…
Cheguei e, de repente, o céu iluminou-se. Todos os candelabros da sua mãezinha (ainda de velas, como se recordará - só mais tarde o menino os mandou electrificar), estremeceram, vacilaram, balançando como pêndulos mal parados, estava eu exactamente por debaixo de um deles e, veja só, a minha madrinha, a senhora Dona Maria do Amparo, fez jus ao nome: amparou-me puxando por mim para longe, não fosse o dito tombar desgovernado sobre nós. Amparou-me naquela hora, mas não me ampararia por muito mais anos que Deus assim o quis. No entretanto, ensinou-me sem nada esconder todas as receitas dos seus doces favoritos, as compotas que tanto aprecia… o arroz de polvo, o arroz de feijão, a lebre com couve galega … a arte de não deslaçar a maionese (ainda lhas faço caseiras, como sabe) mas não me ensinou a proteger-me quando a luz de um trovão incide sobre a sua alma, película digital…
Estou a perder-me do fio da história, menino Timóteo. Quando assim for, o menino já sabe: chame-me à razão… esta coisa de, volvidos tantos anos, ter recuperado a fala, faz de mim este papagaio, esta catatua tresloucada, sei lá, que agarra umas conversas nas outras e se perde num novelo. Faça favor de me lançar farpa, menino…Faça favor, peço-lhe…
Como dizia, nesse dia, o menino deu mostras de si. Desapareceu tão subitamente como tinha chegado, em halos de naufrágio de que nunca mais me esqueci ….Que cara é essa, menino? Não me conhece este vocabulário?... Oiça-me, então e não se espante, menino, quem sou, saberá de hora em diante…
naufrágio, naufrago em casa própria, sem dúvida. Voltou dias depois, quando a sua mãe subiu ao seu quarto, após as vezes sem conta em que, através da Natália, sua ama, lhe ordenou que voltasse ao convívio e ao dia a dia da casa…
Do que lhe disse, não sei, sei apenas que a senhora sua mãe, que a alma lhe esteja em descanso, largou as telas, os pincéis, subiu as escadarias sorumbática e voltou com um lago de nenúfares no olhar. Ou, para ser mais exacta, com os linhos mansos da nossa terra - a minha, que também é a sua, a minha que sendo a sua e o senhor tendo ainda hoje lá a mansão, nunca me permitiu que o acompanhasse … que voltasse aos meus. No início pela razão que conhece, depois porque
“ora Ludovina, seja discreta, acha que não lhe fariam perguntas embaraçosas? E acha que faz algum sentido ir para a casa dos seus irmãos? Palheiros, a bem dizer… aqui tem todo o conforto. Mesmo que viva na casinha dos fundos, tem conforto não têm? Até, com a abertura das ruas, tem acesso directo ao Vasco da Gama… nunca entendi a graça que acha naquelas multidões, aliás, como não entendo onde vai quando anoitece e só volta tardiamente. E escolhe o início do Outono para tais ousadias. Tem que se deixar disso, porque não lhe fica bem. Não que me interesse, em absoluto, mas sendo serviçal desta casa, o seu bom nome importa. Não me inclua em lamaçais, ouviu bem? …”
E eu a tudo dizia que sim. Fui ficando, ficando… das suas sobras, das suas migalhas…
ao mesmo tempo que - sei, não tenho a sua capacidade filosófica, mas, oiça bem, bebia da taça de cicuta que poli, o pó e o vento; que continuei dia a dia, ano após ano a desdobrar-me entre a cozinha e onde sabe. A limpar os seus fatos, a curvar-me na graxa dos seus sapatos, a servir os seus pratos; que continuei a servir todos os seus caprichos, todas as suas vontades,
Hoje eu quero que suba (e enfatizava o Eu…)
(nesse tempo a sua família estava em Valpaços para férias do Natal, o menino estava arrastado com a sua Faculdade, com as cadeiras que nunca concluía a tempos e ficou por mais uns dias. Iria depois, com o seu tio Antero, com os seus primos. A seu pedido, fiquei eu e as criadas de fora, a Gervásia e a Emília. Foi o primeiro Natal que passei sozinha, sem a sua família (que imaginava minha, ainda que fosse porque sem uma família me sentia nada …). Sozinha, portanto, em vésperas de Natal …ou melhor, acompanhada …
eu quero que suba, Ludovina, vá arrumar o quarto já … Olhe,  há ainda doce de cerejas? Leve consigo uma taça generosa, ah e não se esqueça, quero que a compota contenha as ditas. Bastas... E ria e,  sem questionar, cumpria o que me pedia: fui à cozinha, com uma colher de pau enchi a taça, a que tanto apreciava, da Companhia das Índias, do serviço da sua avózinha, senhora D. Micas, coloquei na bandeja, sobre o pano de linho bordado a rechelieu, pela sua outra avozinha,  senhora D. Genoveva, nascida na Ilha Terceira, que, como sempre dizia, trazia a insularidade gravada em alma … por isso as pestanas se lhe colavam no sal das tardes sob o sol no quintal - bons tempos, menino, quando nos visitava no Verão e, sobre o álamo das traseiras, ao lado das glicínias, bordava tais trabalhos …e, de prosa farta,  entrada no estio da tarde, dormitava…
Ai menino, bem lhe disse, já me estou a perder de novo no emaranhado das minhas memórias … incriadas, as minhas memórias…

Recorda-se desse dia, menino? Não? Quer que lhe lembre? Que lhe avive a memória?
Pois bem, eu conto. Oiça-me então...
O menino estava no quarto de banho, ouvia a água a correr, enquanto, com o coração a bater sem contenção, subia a escada. A madeira rangia e eu estremecia, vara verde - ainda não era tempo de cerejas, as cerejeiras na nossa terra estavam despidas a coberto da neve -, estremecia, desconhecida de mim. Subi. O seu quarto a primeira porta à esquerda, o agora de hóspedes… A água continuava a correr. Teria ainda algum tempo para os arrumos, antes que voltasse. Sabia que, em regra, era demorado na sua higiene.
Entrei, abri as janelas. Mantive as portadas cerradas. Era sempre assim que fazia, de acordo com as suas ordens. Apenas as frinchas, o arejamento estritamente necessário… Comecei a reunir a roupa, separei por, para lavar, para re-engomar, escovar … e o Timotinho entrou  - lá fora a trovoada avançava o rio, derrubava as folhas das cerejeiras que ainda não tinham rompido a casca dos ramos
            sem aviso, o chão… ali,
Vais gostar. Andas a pedi-las, Ludovina (nunca me tratou por tu, senão naquelas horas … naquele dia e até hoje, sempre naquelas horas…) …
            sem aviso, derrubou-me, tapou-me a boca, encheu-a com os dedos – em cada dedo havia um bicho, em cada dedo havia um medo, um lugar desconhecido, um ponto de não retorno -, e logo
a mão aberta a selar a minha angústia - não necessitava, não gritaria (tentei não gritar) sabia que detestava, gritos, sons agudos …
            sem aviso, o roupão. Aberto. No lusco-fusco do seu quarto e, pela primeira vez vi, a olhos vistos,  todas as veias do espaço nas veias do seu sexo… vi-o e vi-me (saberia mais tarde) no centro de um dos teatros em que encenava e colocava em palco as suas peças, de que era actor e guionista, uma espécie de teatro anatómico, um caleidoscópio invertido no negro espesso de seu olhar…
Derrubou-me. Não reagi (ainda não era o tempo das cerejas no meu corpo…) enquanto me
mordia,  me sugava os seios que, entretanto, soltara da camisa serviçal,
subia a saia, descia as mãos e a trovoada - espaço entre
             a luz-cegueira temporária de seu olhar e lume e o som de mim, ainda muda…
sem "nós", descompassados em ruídos de relâmpagos ao largo,  a rompermos, díspares, na falta de ar em meu peito, na pressão de suas mãos em mim, e, ali, naquele quarto, de ar rarefeito, violentamente, o ribombar do seu mundo em si próprio, onda, propagação de choque, em proximidade que eu não podia evitar do trovão, surdez temporária, rotura de membranas, de diques, de comportas,
             cada instante mais perto, mais forte,
             lampejo persistente nas frinchas da portada, rasgada - dor dos seus dedos em mim, no meu baixo ventre,  lâminas a cavarem carne adolescente, impúbere - as suas mãos, sim,  fizeram soltar um grito que, juro, não queria ter solto …e, de repente, os seus fantasmas, todos, incontroláveis,
             soltaram-se, Timóteo, soltaram-se no meu corpo. Os seus olhos cresciam nas órbitas, o som da chuva que começava a cair, primeiro mansa e a cada segundo mais ritmada, mais abrupta, abafou os seus urros, o demónio de si, as veias grossas do seu sexo, o seu sexo agora coberto de doce, do meu doce,
            Come, puta, come… verás que tem um travo que a tua madrinha não te ensinou, a baunilha, quem sabe?...
            a chuva, a tempestade, abafou-lhe  o riso descontrolado. Ria, rugia, ao mesmo tempo, menino, obrigava a que, os meus lábios o tocassem, que o limpassem daquele vermelho gelatinoso
           A cereja no cimo do bolo, é o que te estou a dar, puta, mas já te dou o resto, és uma oferecida, julgas que não vi como as pedias? Só estava à espera de uma oportunidade, um momento mais propício … é a hora. Gostas? Gostas? Diz, diz, putinha das “Beiças”, Galega filha da puta, pensavas que chegava fazeres os doces? Não, tens de lhe dar apreço …
           enquanto dos meus olhos a chuva me lavava a mágoa – a água tudo lava -, e, ali mesmo, sobre o chão,  madeira de cerejeira que eu mesma polia,  ajoelhada,  o menino me fez sua e fez com que não passasse sozinha aquele Natal, enquanto lá fora a trovoada avançava,  lambia as copas das árvores, tombando todas as folhas que, por um mero acaso, solidárias,  ainda não tivessem tombado, - choravam as folhas, que bem as ouvi - e, dos fundos, chegavam leves os rumores das criadas de fora, que, quanto me lembro depois destes anos todos, andariam a recolher a roupa dos estendais, a fechar os postigos do andar inferior e as portadas de todas as janelas. Não menino, não deram por nada, porque, sabe, uma das minhas maiores e piores qualidades, foi e será sempre, ser
            discreta, "tão discreta, a nossa Ludovina",
zelando pelo seu bom nome, tal como a sua avó e a sua santa mãe me ensinaram.

Quando, por fim, o doce findou e o menino se cansou de me ver ali a seus pés, mecânica a executar uma tarefa, aos meus olhos tão estranha, quando se cansou de, no intervalo desta, me possuir como garanhão em potra, quando, a trovoada que o varria, que curto-circuitava o seu cérebro, roubando-lhe toda a razão, a lógica - não se espante menino, a criada Ludovina, está velha e os velhos sabem coisas que nem ao diabo acode, como se diz lá por Valpaços… -, quando, finalmente, o seu corpo se libertou desse coisa má que é e não é, e lhe devolveu paz, o menino
          Ludovina, desculpe, fui um canalha … não fale disto a ninguém, de hoje em diante está sobre minha protecção, como sabe estou quase Doutor, Doutor de Leis, e, com o meu pai ausente nas Colónias sou o senhor desta casa. Foram as trovoadas, bem vê… sempre me fizeram tanto mal …Vista-se, vá arranjar-se como deve ser e, já sabe, nem uma palavra …
Fiz o que me ordenava. Porque de ordem se tratava. O menino era o “Doutor das Leis” e eu a criadita de Valpaços, com menos dez anos que o Senhor…
Que valeria rebelar-me?... Nem entendi de bem o fazer, e, o que tinha  de meu, tudo, na verdade, porque o amor (percebi mais tarde) nos torna cegos, lhe dei, na cumplicidade consentida de um (e)terno,
  "sim, senhor ..." 
O templo do meu corpo, menino …
     porque, e vá lá Deus saber porquê, quando me ajoelhou à sua frente não senti nojo, nem cuidei de ter vergonha – apenas estranheza, mágoa de não saber como e porque fazer  -, e o seu corpo foi o corpo do único homem de quem bebi a seiva da vida, e as suas mãos as únicas que tocaram o meu corpo,
        ter-lhe-ia, entregado o ventre para que o rasgasse de  novo, até hoje, e para sempre,  se  intuísse que, no seu íntimo havia desejo de “nós”;  tê-lo-ia  feito acordar abraçado a mim e protegido de si, menino, até que a morte algum de nós levasse … mas não foi assim …       Nunca entendeu pois não?…

Levantei-me. Olhei para si e vi que já nem me olhava. Senti o gelo sobre o meu corpo ainda nu. Agarrei a roupa e  semi-nua fugi  pelo corredor - que insensatez, menino -, fugi e subi ao sótão, onde era meu quarto. A cama de ferro rangeu sob os meus soluços, que, pela primeira vez se soltaram. Senti medo,  medo maior que tudo. Medo por si, menino, e não por mim…  Não sei por quanto tempo, mas sei, horas depois, desci. E encontrei a cozinha e os tachos tão iguais a sempre que, por momentos, julguei ter sonhado, dormido e tido um pesadelo … e, porque o vi chegar à mesa do almoço sem qualquer manifestação esquiva, por mais me convenci…Sonho ruim!!!

Durante aqueles dias nada mais aconteceu. Ainda não era Inverno a valer. O menino partiu com o seu tio para Valpaços e, na noite de Ano Novo, senti que os relâmpagos, as trovoadas eram por dentro de mim. Não entendi. No dia primeiro, nem os chás da Gervásia e o bom-humor da Emília conseguiram apaziguar as minhas entranhas,
      Que comeste, rapariga? Foram das filhós? Das azevias? Bruta, não te disse que te contivesses? Que comesses menos e a espaços? Mas andas rota, comes por duas ... Por duas … por duas …
como um eco, aquelas palavras bateram fundo em mim… O resto o menino já sabe. A viagem – única em toda a minha vida, excepção à da vinda de Valpaços  - com a sua avozinha. Uma temporada nos Açores (como me custou o trajecto, Santo Deus, como) e, quando voltei , tudo como antes… como antes, menino. O raio de luz de si em meu ventre, nunca o cheguei a ver, roubada que me foi à nascença, além de, para sempre, me ser roubada a possibilidade de lhe iluminar a vida com outras luzes, por artes de seus olhos , tempestades, em dias iguais… e tantos foram, menino, pela vida fora. Em cada cereja que lhe oferecia, a minha vida, o vermelho de que se alimenta a sua alma...
Sempre lhe fui fiel, sempre… para que lhe digo isto? O menino sabe… um homem sabe quando uma mulher lhe é fiel… Aprimorei a arte de fazer todos os doces que tanto gosta, regados com as lágrimas de saudade a um fruto que não conheci. Menina, disseram-me depois… Muitos anos depois, que estava aqui no Continente, que tinha estudado com estudos pagos pela sua santa avozinha, que era empregada, pasme menino, no Vasco da Gama…
Aí menino, as voltas da vida…
O menino nunca se livrou dos seus espectros,  nunca amou uma mulher, acredito eu (não se ama quem não se respeita…). O menino não sabe amar. Nem falo de me amar - não passo de uma vulgar mulher -, falo de amar uma senhora, à sua altura, à dimensão da sua cultura, de tantas que, depois do falecimento de sua mãezinha, se encantaram consigo. Se tinha ciúmes, menino? Não, não tinha. Sempre soube o meu lugar: protege-lo de si mesmo. Ser o pára-raios desta mansão. Desenvolvi instinto de conservação, de preservação. Proteger quem o rodeia. Naquele dia em que não cheguei a tempo… não soube antever a chegada da trovoada, imprevisível …
E ela chegou, antes de mim, vestida por minhas mãos, às suas …
      
Ininterrupta, numa estranha forma de ser verdade, continuava,
...onde ia quando me ausentava na noite? ...estudar … que cara de espanto é essa? Que outra coisa poderia ser, menino? Para o entender, estudei anos a fio. O 25 de Abril trouxe esse bem às pessoas: poderem estudar. Desde a altura em que o menino decidiu que não dormiria mais cá em casa, e me mudou para a casinha dos fundos
           É o melhor para si, Ludovina, é o melhor. Está mais à vontade e pode fazer o seu crochet até mais tarde sem incomodar a casa - sabe que detesto excesso de luz, Ludovina e, só de imaginar que o sótão está iluminado, fico na verdade, constrangido… para além de que, gosto de ouvir Mozart, Chopin… e a Ludovina só pode gostar de ouvir a Rádio Comercial… não é assim? Diga, diga lá…
... na solidão dos meus dias, estudei. Agora que o corpo engordara e que já não o excitava - a cereja não brilhava no topo do seu desejo - dei comigo com horas por preencher. Ai, lembrei-me da sua santa mãe
        Ludovina, tens que estudar. Uma mulher sem estudos não chega a lado nenhum, estuda que eu pago, E eu, não minha senhora, sei que baste para servi-la... Mas não a si, menino. Não sabia que bastasse para o servir. E fui para a escola. E dei comigo a gostar… dois anos num, três em dois, exames e etc… e, quando menos esperava, à porta da faculdade – o tempo das cerejas já tinha passado, o Verão findado, eu Outono, o menino quase Inverno.
Durante todos estes anos tanto que havia a aprender… Ouvia-o falar de ópera, de teatro, de cinema. Não tenho vergonha de lho confessar, acalentava a esperança de, um dia, poder entrar num destes espaços … consigo. A seu lado. Sermos, como li, de Margarida Rebelo Pinto, "uma terceira identidade: nós"...
Ria-se se quiser, todos temos direito a sonhar. A verdade é que, na minha bagagem cultural, como diz, existem graves falhas, que só o berço e a educação desde tenra idade cimenta… não a tive, como sabe. À socapa, ainda quando aqui vivia e dormia no meu quartinho, que o menino nunca quis conhecer - era sempre eu que, quando me solicitava, ia ao seu -,  lá, pela noite adiante, sempre ousei ler o que o menino deixava na sala, seguir os seus passos, percebe? e, antes que acordasse, repunha, para que não se zangasse. Estudei, pois, como lhe conto, e, quando o menino se embrenhou nos computadores, nesse mundo tão cheio de, palavras suas, "possibilidades", só me restou aprender computadores, também, e, um dia,
um dia,
       encontrei-a.  tão jovem, tão bonita … eram todos tão jovens, tão bonitos… 

Como se falasse com os seus pensamentos, Ludovina baixou os olhos e o tom de voz que soou, a Timóteo, quase inaudível,
... os meus olhos inquietaram-se profundamente naquela noite, naquela janela,  pequeno quadrado, ou, além dela. Na trigonometria de Pitágoras, entendi a mensagem do Divino: resvalava a hipotenusa…(sempre soube do seu fascínio por Pitágoras, menino. Acredita que estudei trigonometria?...)

Aproximei-me dela, gostei dela, podia ser a minha e sua filha - tinha os seus olhos e o mesmo medo das tempestades … não, não, descanse, não era. Abracei-a como se fosse. Inquietei-me por ela …e por si. Teria de saber, desde esse instante, calcular a diagonal do quadrado … ai residia o abismo, a queda abrupta… o ponto de não retorno, menino. O embate, o embuste, e a crueza da verdade,
...Dia a dia, mais próximas, pelo que, me ia contando, me deixou em maior inquietação. Encontrei-a, como lhe conto …. E perdi-a…

Um forte trovão estremeceu a casa, iluminou-se o rio, alteroso. A outra margem vizinhou-se na limpidez de uma luz inusitada. Timóteo até então parado no meio do salão, deixou que o cachimbo se extinguisse e, tal estátua nacarada, por fim, deixou-se resvalar pelo sofá. Retomou-se, num fio de chuva.  Sentou-se…
 
Está doida, Ludovina, encontrou, quem_______emmmm???
Quem?? Não me diz? - a voz  falsete, a voz de quem não controlava a hipotenusa, o declive, a vertigem, triple.  Em clivagem, Ludovina:
Quem? … não importa. Na verdade, perdia-a. A vida é sempre feita de ciclos, de ganhos e de perdas e, ao caso, porque a perdi, reencontrei-o a si.

De novo, como dando um salto no tempo inverso, retomava a pergunta de partida
Há quanto tempo me conhece menino Timóteo? Há quanto tempo? Tantos anos, afinal, para que só agora, finalmente o esteja a descobrir…

Timóteo agitava-se na poltrona, imparável, num incómodo até então desconhecido. O animal que o habitava prestes a soltar-se, revelado pela luz incessante dos relâmpagos, pelo ribombar ensurdecedor dos trovões. A hora dos lobos. A hora marcada com a mulher de vermelho a aproximar-se, imparável, escorrida em todos os relógios,  e, ali, à sua frente, Ludovina, não a que conhecia, a que o servira uma vida inteira, mas outra que, por artes mágicas, ventrícula,  recuperara a voz anos a fio, monossilábica, e lhe falava numa linguagem estranha e, ao mesmo tempo,  próxima. E dessa proximidade germinava um desconforto insolúvel. 
Tentou ainda que lhe esclarecesse melhor quem conhecia (ou conhecera, não percebia bem o modo como se referira a alguém). Tentou, mas Ludovina, olhando para o relógio da sala, disse-lhe,  num sorriso enigmático,

...Menino Timotinho (tratava-o sempre assim, quando lhe queria dar alguma noticia que, sabia, o deixaria agitado) vai-me desculpar, mas hoje foi uma excepção estar aqui a esta hora. Voltei porque me esqueci do meu xaile e, nem me pergunte como, começamos esta conversa, mas tenho de ir,

Dois passos, a porta, o vento e o voltear do verbo,
…É que está na hora de rezar o meu terço. Fique bem, menino, encontra o seu chá no termo no seu quarto, como sempre… e a chávena de Limoge, claro… ah, esqueci de lhe dizer,

Três passos, além da porta, já,
… no dia em que a sua amiga não veio, veja a minha cabeça, ia jurar que ouvi a campainha da porta tocar … imagine, menino, o que os estudos fizeram de mim: alucinei… Prometo-lhe, estarei mais atenta…
        Saiu.
Depois da trovoada apenas o silêncio. O pingar do algeroz no piar dos pássaros sem ninhos…

Demasiado perturbado levantou-se pesadamente do cadeirão, dirigiu-se ao escritório, abriu a janela … não estava
Melhor assim, hoje não estou com paciência para parvónias…
E, repentinamente,
Olá Pitágoras, estava a pensar que não vinha? Desculpe, atrasei-me um pouco…de que falávamos?...
quer ensinar-me trigonometria? ... 
...
Direita, volver, em sentido, Ludovina. Sherazade, sejas, de ora em diante e por mil e uma noite.E nenhuma mais, vermelho-acontecer...

....
Nota: Este conto é o último de uma triologia, composta por 
- O fantástico mundo de Ludovina (3º conto)

  Imagem da net, desconheço autor.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Do outro lado da porta.


Vi-lhe a inquietação no olhar. Não entendi, confesso, nem achei importante averiguar razões;  tão pouco estabeleci relação de causa/efeito, expressão tão sua, Timóteo… 
Partilhávamos apenas a mesma sala,
a mesma fila,
          ela atrás de mim e, eu atrás de outros,  frente aos monitores, na proximidade que nos distancia e,  quiséssemos ou não,
o mesmo horizonte visual. O meu menor, porque à frente …
Sabíamos pouco uns dos outros e, dela, então, estou em dizer que sabíamos
nada.
Ou quase. Sabíamo-la cinja ao que se passava dentro das quatro linhas, que é como quem diz, dentro do formato da acção, figura apagada, apagadíssima, sacada de uma caixa de memórias - fotografia sépia -, por artes mágicas e pozinhos de perlimpimpim,  ali. 
Para que perceba melhor, lhe digo, Timóteo, imagine, ao fim de quase três meses de convívio diário, não lhe sabia o nome.  Nem eu, nem a maioria de nós …Mas se  de algo estava certa é de que o nosso assunto em nada a interessava.
 
Estava à vontade,  portanto e, porque assim, dia após dia, no intervalo maior, sacava da sanduíche que trazia de casa a que juntava um pacote de leite com chocolate comprado no Continente. Entre uma trinca e outra, teclava-lhe o mais rápido que conseguia, sempre com a janela minúscula.  Não por ela, que, como lhe digo, não manifestava qualquer interesse, mas pelos que, mais curiosos, mais vivos, entravam e saiam da sala, espreitando  ecrãs.
Por essa altura já nos conhecíamos quanto baste para  nunca saber o que poderias dizer, se
    Então sempre foi ao CCB este fim de semana, a menina disse-me que iria ver o Jeremias Fisher, não foi querida?  E que me diz a respeito? Ópera de Câmara… um libreto… muito bem, muito bem…
    Recomenda? Ainda não tive oportunidade de estar presente. E com quem foi? Ora, não minta - a verdade e só a verdade, se não me é fiel, pelo menos seja leal … Arminda, acha que me engana? Sou ciumento sim, e, quando for minha - quando vem???-, não mais a autorizarei a andar sozinha seja de dia ou de noite…
    (um diálogo natural, de dois adultos... )
    Como, um
    ...Preta? Cor de salmão? A sua lingerie,  querida, claro…   Diga-me, sabe que me faz feliz … que me faz… quer que diga a palavra? - não, não direi …    QUERO saber cada pormenor de sua vida …íntima…
    E eu, em regra:   negra…
   ... De renda? Lisa? Tem aplicações de gipure? Deixe-me adivinhar. Tem, claro... nem sabe o quanto aprecio a beleza de suas coxas (como as imagino) encimadas por peças de arte: guipure ... gipure, como quiser, mas sempre ... têxtil, suave, na cor, no toque. Hoje?...
    ...Carmim… o modelo  DeMillus bordado em amarelo-ouro… Fio dental com a parte de trás bordada…
    … fio dental, Arminda? Detesto, não compre mais … é invasiva, vulgar.  Vulgar!!É uma senhora ou não é?  Coloque sempre os olhos na sua avó Celeste, a que usa em avatar... imagina que usaria tal insanidade? Senhora D. Celeste, uma senhora. Um olhar doce... amante perfeita, a sua avó... veja como baixa os olhos, como...ai, Arminda, nem sabe o que imagino...
Use asa delta, sempre … sou eu quem lho digo. 
    Concordava. Concordava sempre… no catálogo on-line tudo me era possível …tudo era meu … e,  eu, entre evasivas e conclusivas, tecia e fiava, num tear de rendas e gipures, a tentar saber mais de si e, logo, a cada abordagem sua, do que não sabia, fazia pesquisa e respondia-lhe…
        e, deste modo, ingénuo e primário,  me achava à sua altura: Era um senhor, um senhor, Timóteo, versado em arte, em filosofia, em literatura...
                                 ...apesar de tudo…
   
Vi-lhe a inquietação no olhar, Timóteo, como lhe afirmo, e não alcancei.
Como não alcancei o súbito interesse na minha pessoa desde então. Nem a aproximação às falas, aos encontros de horários - ela que sempre chegava antes de todos nós e saía depois de todos, lenta e pormenorizada no  arrumar das folhas e no cerrar o dossier que recolhia num saco meio andrajoso, passou invariavelmente, a cruzar-se comigo à chegada no hall de entrada do edifício. Surgia do nada, com um sorriso, no início meio tímido,  e, dia a dia, mais aberto.  Sempre limpa, sempre correcta,  sempre figura do século passado.
Tinha idade para ser minha mãe, gostei dela. E ela de mim, acredito. Não raras vezes me trazia grossas fatias de bolo, frascos de compotas, queijos, manteiga caseira. Tudo de uma qualidade ímpar e divina...
Continuava asséptica nas palavras e nos gestos: poucos, escassos...  
Não sei como, não me consigo lembrar e já lhe estava a falar de mim.Da minha inquietação…  Do futuro que não tinha, 
                (Era tão boa ouvinte… Tão discreta… )
Permanecemos juntas nas secretárias em fila e além delas, para além da porta…
    … para além da porta,
(só não lhe contei que nos íamos encontrar. nunca aprovaria, suponho...)

Dia a dia, regulei a minha vida pela sua, Timóteo. O que lhe fui dizendo de mim eram absolutas verdades - está bem, reconheço, não eram… “se não é fiel, seja ao menos leal”, lealdade, portanto…
eram as verdades o que EU gostaria que fossem. Os meus gostos (refinados) os meus hábitos (desde o berço) … as viagens
... a minha  avó, sabe, Arminda, a minha avó, esteve na Inauguração da Torre Eiffel, desde sempre viajámos, e a Arminda? Claro que sim… Conhece o mundo,
    Sim, sim… a família viaja desde sempre. …
    … não Timóteo, obviamente que nunca sai de Portugal… Minto. Sai… um dia, a Espanha, numa daquelas excursões que vendem inutilidades… fui às Rias Baixas…comi marisco como nunca, sem saber que era alérgica, adoeci e quase morri... pormenor sem importância, bem vistas as coisas... ).  Sai, como vê…
    se conhecia o aroma do Poême? Conhecia, mas só.
Até ao dia em que fui ter consigo apenas de o ter cheirado nas tirinhas oferecidas em Perfumarias, ou, quando, a pretexto de “verificar a reacção na minha pele” ganhava ousadia  bastante de  borrifar umas gotas contra os pulsos… e saía sem comprar.
Naquela tarde,  Timóteo, para o poder agradar, imagine, percorri todas as perfumarias do Centro e, invariavelmente, em todas “testei” o perfume… Como o poderia comprar, Timóteo? Como?…
    Durante meses prescindi de todas as pequenas loucuras para comprar a lingerie, a que sabia do seu gosto - negra, bordada … E  o vestido que me viu,  foi-me emprestadado por ela, que me disse ser “de família”. Ajustou-o ela mesma, em minha casa, com uma máquina que trouxe.
   É costureira? Perguntei-lhe. Não, e sim… faço de tudo um pouco…
    Intui que vivia como eu de expedientes. Sazonalidades. E falei-lhe de si. E ela, sem que de novo entendesse razões, turvou o olhar
            não soube se era serra ou mar, se, à conta de tantas leituras eu mesma já não distinguia azeite e água… mas sentia-me abraçada numa bolha protectora,  casuística por certo,  ao mesmo tempo volátil e ampla, que me deixava respirar: ela…

    Passei a não lhe esconder nada. Os pontapés da vida, a vidinha antes, a preto e branco, no Alentejo sem pão. Depois a cidade, o marido sei lá onde …  o meu trabalho - os muitos trabalhos -, precário(s), os meses sempre maiores que os euros, o armazém sem luz da gráfica, oito horas por dia, a embalagem, os livros destinados a destruição, as folhas dobradas, as lombadas mal coladas…
o resgate, a infringir a lei...(o lugar onde tudo começou: no sonho… na imagem, nos poemas....).
À noite,  leituras. Mais tarde, computador. Comprado a prestações. As aulas de informática, o Programa  "Novas Oportunidades" … e de novo o sonho,            Uma janela aberta ao largo,
                         e logo o arco-íris que se desenhou desde que, numa noite-madrugada, recebi o seu convite de amizade… 
"Julgo conhecer a senhora do seu avatar -  o quadro é-me tão familiar... "
aceitei-o. Disse-lhe,
"É um quadro a óleo de minha falecida avó, D. Celeste,  pintada por ...
                           (e inventei um nome. Uma avó... e uma nova vida para lhe oferecer ...)

    Perdi a tarde.  Teria de ser. Trabalhei até à hora de almoço, pedi o carro emprestado à Florbela, amiga de longa data, e fui… Primeiro a casa, onde me preparei minuciosamente para si, para “lhe ser”…  Cada minuto, cada segundo, Timóteo, em sua glória:  o corpo, o cabelo, as unhas…  um chá. Apenas um chá …

Revi, minuciosamente, todos os seus gostos, verifiquei se, por descuido meu, algum pêlo restava para além do que sabia seu gosto… olhei-me em espelho -  um clarão rompeu o hímen dos meus olhos… uma gota de sangue transbordou, derrame subtil, prenuncio de  longínqua taça 
cicuta,
    geleia de amoras tardias ou sonhos doces em  cor de púrpura,
   
    e quando, sob aquele temporal de Maio (nem o tempo já é como era…) olhei a sua casa,  mansão secular perdida no emaranhado do betão, julguei, por fim, ter encontrado abrigo aos meus dias de chuva … não fora o acaso de
     uns olhos que reconheci (ou julguei reconhecer)
     um vulto esconso a espiar-me por detrás de uma janela pouco distante ao lugar onde deixei o carro…

    Vi-lhe a inquietação no olhar, o medo, o pavor, se possível, Timóteo…
Julguei estar a alucinar, tal o desejo de que ela estivesse por perto com o seu abraço amigo… Afastei o pensamento, ao mesmo tempo que, em gestos títeres - palavra sua, Timóteo -, gestos calculados, mil vezes ensaiados, na beira de minha cama
    Primeiro o pé direito,
               deslizar a anca
                 elevar o peito...
    agora a perna esquerda,
        resvalava o corpo na alma e ia ao seu encontro …  ao encontro de suas mãos…
Um golpe de vento inverteu o chapéu. E o destino de nossas vidas. De todos os lados  - até do rio -, a chuva. Cruzada. Encruzilhada, pretérita/presente/futura,
       subi num ápice a sua escada. O olhar dela, assombração inesperada …

    O frio. Ah Timóteo, o frio. O peito a enrijecer sem controle no gelo da hora.A boca a saber a "papéis de música" ...
    Não vi de imediato a campainha; o negro do rímel acessível fazia das suas…  tacteei . Por fim, encontrei-a. O resto já sabe…
    Os meus dedos colaram-se pastosos ao botão de forma ininterrupta. Em frenesi, cada segundo me parecia uma eternidade. Por fim a porta abriu-se.  Antes o seu cheiro… os seus passos, apressados, e o meu desejo suspenso de um tão ambicionado
    “seja bem vinda minha querida...”
    Como sempre me dizia,
    “...esperava-a…”
    O meu desejo (planície ressequida), de si -  arado,  lâmina em minha vida - e, a oferta que lhe trazia, a extrema limpidez dos meus olhos
    d’água,
    “virá um dia e esquecerei
    A extrema limpidez dos teus olhos, o impossível mistério do teu corpo
    … tuas vestes de linho e jaspe verde” (Pelo Deserto As minhas Mãos …) (1)

O último texto que me“leu“, noite adiante …
e a que eu lhe respondi   ....
...Sou quase assim...
   ...Venha, venha depois de amanhã, ou nunca ... dou-lhe dois dias para se aprontar; vista-se de vermelho... o resto sabe.
         (sim, poderia ser, ela tinha-me dado, nem há uma semana, o vestido... agradeci-lhe, mentalmente...)
     Disse-lhe que sim. Era tudo quanto esperava há tanto tempo ...
    E, Timóteo, ainda que adivinhasse a sombra incrustada na fenda do seu palato, viperina, desejei entregar-lhe em suas mãos a limpidez dos olhos… desejei
                                          que nunca me esquecesse…
    E ali estava,
    suspensa do baloiço de glicínias, veludo e afago. Suspensa do sibilar das  águas e dos relâmpagos em calda de morcegos e de oceanos largos,
     suspensa, 
     de um abraço…de tudo o mais, nada, a partir dai, necessitava...

Chovia … trovejava. E não o reconheci… apenas senti o vácuo, o vazio. Ainda o vi o Pólo da Florbela a chorar por mim, ao rés da estrada. Antes a força, o disfarce a tombar - o seu, o meu, o meu maior que o seu, o seu, maior e  sobre o meu,
e logo a quilha - a minha -, que empurrava, bulldozer, caterpillar... o peito,  a dor, os ossos, os  pássaros e as folhas  e os livros e os filmes e a música surda, abafada, dos candelabros, dos Limoges, das carpetes que não pisei, dos seus quadros nus que tapavam os olhos na plasticidade residual das cores, em despudor de si e apudorados de nós,   que …somos,
                        máscaras. Películas reveladas.(eu já não sou nada...)
...  
Um dia, recorda-se, Timóteo, numa dessas conversas, subitamente
    "Porque gosta de mim? Não me viu…"
E eu
   "Porque, sinto, nas suas mãos, tudo pode acontecer… até eu."
    "Minha  querida, Arminda, verá que sim..." 
                                                           Aconteci.


(1) citação da obra indicada,  autor: Victor Oliveira Mateus.
 ***

 Nota: 1ª Parte deste conto, aqui "O dia de todos os pecadores"; 3ª parte  a publicar ...

terça-feira, 11 de maio de 2010

O dia de todos os pecadores

Há ainda no meu olhar a sombra do teu. Uma loucura doce e perturbadora  que me faz sentir vil.
Joguei todas as cartas naquele pano. Todos os trunfos, todas as manilhas, todos  os Ases. Tudo, Arminda, naquela tarde, naquela data. Joguei tudo. E chovia …

Olhei-te a descer do teu pequeno pólo cinzento, vi como as tuas pernas magras deslizavam o rebordo do assento quadriculado a miudinho, vi como, sem pressa, colocavas do lado de fora o pé esquerdo semi-nu evitando a poça que se formara entre o passeio e o local onde aparcaras, vi, por detrás do reposteiro de veludo da minha sala em semi-penumbra, como rodavas os quadris e, vi, por fim, como, delicadamente colocavas o pé direito no asfalto lustroso…  mas antes, antes do mais, de tudo o mais, vi as tuas mãos, as tuas unhas compridas e vermelhas, abrias o guarda-chuva de cor igual ao teu vestido: vermelho, com um debrum a negro. Vermelho, de corte recto, cinjo ao corpo (ai o teu corpo Arminda, nunca o tinha visto assim … senti avolumar-se em mim o desejo. Naquele instante desejei-te … )

Vi como te erguias e como o teu peito se erguia, pequeno, no alinhamento perfeito com a linha mediana entre o cotovelo e a clavícula.  Abri, dali, daquele lugar onde me encontrava, a palma de minha mão. Olhei,  medi.  Seria perfeito…
Imaginei que trarias lingerie Chantelle, quase que juraria, preta, que usarias o  teu perfume predilecto… Poême da Lancôme, correcto?  Respirei fundo e senti-te. Quase que ejaculei, imagina... 

Chovia Arminda…
E que nos importava a chuva, dirás agora, volvidas luas de plástico e luares de cores e de sílabas imóveis?
Importava, sim, Arminda, importava e muito. Tinha vestido o meu melhor fato, aquele que, por sinal, tu tanto gostavas, de pura lã, com toque de caxemira.  Tinha colocado a camisa com a risca malva, e, porque tu apreciavas tanto, até os meus botões de punho, herança do padrinho regedor. E, como não podia deixar de ser, estava barbeado a rigor,  tinha até colocado lavanda discretamente na maça de Adão. 
Arminda, confesso, passei o dia anterior aquele, e os anteriores ao anterior, para ser mais concreto, todos os outros antes, desde que nos conhecemos, a sonhar com o momento, com o instante exacto em que o ferrolho que nos colocava trancas se abrisse sem soluços, sem lágrimas, sem gotas nem nebulosas…
Naquele dia, Arminda, amanheceu  soalheiro. Na varanda os pássaros cantavam líricas copiosas e, no lago de nenúfares próximo, um sapo falou-me do Teorema de Pitágoras. Achei oportuno, achei até que de bom augúrio. Sentei-me num banco de pedra, durante mais de duas horas, imagina.
Recapitulei tudo. Com a minúcia que me sabes; ensaiei as falas, as deixas, agora dizes tu, depois eu,           Arminda, sente-se por favor, Arminda sinta-se em casa,  não faça cerimónia, esta é, de agora em diante, a sua casa. O espaço que melhor nos serve... Sem sobressaltos, sem os constrangimentos de hotéis nem a pequenez  de motéis - não temos idade nem estatuto, entende?

Haverias de concordar com tudo. Baixar os olhos, enrubescer as faces... Assim estaria certo... 
Depois, haveria de chamar a criada com a sineta de cristal (ou a de porcelana de Limoge, herança da avó Dulce?… qual das duas? sabes o quanto me assaltam questões de pormenor, insolúveis, por vezes…).
Chamaria a criada, tomaríamos um chá de cidreira, mastigarias devagar,  de boca fechada, obviamente e  só se acaso desejasses, a frugalidade de bom pão em  torradas com compota - providenciei que houvessem bastas, em sabores diversos - tomate, ginga, cenoura, pêra abacate, mirtilos  -,  absolutamente caseiras, haveria de te convidar a dançar, e, só depois, depois Arminda, te convidaria a subir. Haveríamos de olhar o Tejo, a Torre Vasco da Gama ali ao lado… A cama estava feita de lavado, a colcha da avó Micas dobrada aos pés, sobre o banco de apoio...

Mas chovia, Arminda…
Num instante, absolutamente imprevisível,  tocavas a campainha com a fúria de uma mulher vulgar. De uma mulher vulgar ...
Os teus dedos colaram-se pastosos ao botão de forma ininterrupta. A Ludovina não deve ter ouvido sequer,  estaria a ultimar os últimos retoques para a tua chegada. Em boa hora, que teria feito mau juízo de ti, pela certa...

Chovia … trovejava. O som estridente da campainha percorreu o hall de entrada, maximizou-se contra as paredes, contra o pé-direito em dobro da tua altura. Temi pelos lustres, que se quebrassem, temi pelas telas da mãe, que se rasgassem. Temi pela caxemira do meu fato, que se desfiasse sem recuperação possível; temi pelos Limoges, pelas Vistas Alegres, pelos cristais  e porcelanas da Bavaria, pelas carpetes persas. Temi, porque, agiste em completo despautério.  Arminda, Arminda, acredita, a culpa foi tua em absoluto, da tua pressa que me revelou quem tu eras...
(a culpa é, confirma-se,  sempre das mulheres. Em última análise são sempre umas tresloucadas e, desculpa que te diga, umas oferecidas ... se não, olha a forma como chegaste, vestida de vermelho ...)
Corri (e tu sabes o quanto detesto correrias) como louco direito à porta. Nem queria acreditar. Não poderias ser tu, Arminda, a tocar daquela maneira abrupta!?
Abri. Abri de par em par. E, ali, no patamar, estavas tu. O teu pequeno chapéu vermelho virado do avesso por um qualquer golpe de vento (isso não vira eu, certamente estaria a olhar as palmas de minhas mãos onde imaginei o bico de teus seios tumescido …);
Ali estavas tu, como te conto, encharcada de lés a lés, o vestido colado à pele, a pele colada aos ossos… a maquilhagem desfeita na cara. Achei-te gótica e não te reconheci…
Tentaste o abraço, Arminda. 

Balbuciaste um "desculpe, Timóteo, esta chuva ... imprevisível..."
Como te atreveste? Abraçar-me? E o meu fato de caxemira? … Não pensaste nisso, minha querida. Deverias ter pensado. Devias!!!
Depois tudo aconteceu com a rapidez de um fósforo. Num ápice, escorregaste pelas escadarias, num ápice tombaste na calçada onde te esperava o teu pequeno pólo. É certo que não entraste, presumo, estragarias os estofos, e, ainda que não condizentes com o teu suposto estatuto, seria um desperdício...terás tido o bom senso de não entrar... para além de que havia o vermelho a tingir a calçada e o lancil...
Quanto a mim, Arminda, voltei calmamente para dentro, não sem antes fechar a porta, correr  todos os ferrolhos, não sem antes dizer à Ludovina
    A tal senhora minha amiga acabou de telefonar a dizer que não pode vir por causa da chuva… pode ir, Ludovina. 

         E ela saiu. (É tão discreta a Ludovina...)

Dirigi-me ao escritório. Abri de novo a janela. E vi-a …
Peguei do estojo o cachimbo Billiard que me pareceu o mais apropriado à ocasião; enchi, calquei, acendi… Despi o casaco, vesti  mon chambre parisiense, bebi um conhaque. Em tardes de chuva nada melhor que um conhaque ... Napoleon, um dos meus preferidos... Falei-te disso, recordas?
É óbvio que ouvi as sirenes, mas sabes, esta rua já não é o que era desde que aqui fizeram o Vasco da Gama…  Contrariedades, minha querida...
...
Abri a janela;  falámos até quase de madrugada: De como sou, de como me visto,  do meu fato favorito,  e dela: de como gosta de vermelho - trivialidades, claro. Também falámos de ópera, de teatro..
Mas ela não sabe de arte. Nunca foi à ópera… Teatro diz gostar; falei-lhe então da peça “O dia de Todos os Pescadores” prestes a subir à  cena;
Ela repetiu
"O dia de todos os pecadores", ah, sim, sim, já ouvi falar (é óbvio que nunca terá ouvido, querida, mas de momento este, como tu dizias "postal", é irrelevante ...)
Falou-me de poemas e compotas.
E eu  de  Foucault, o filósofo da loucura… Ela não entende de filosofia, e é uma pena… Poderíamos ter mais pontos em comum, mas nem tudo é perfeito.
Amanhã talvez lhe sugira que me revele a cor da lingerie…  Sinto que nos haveremos de entender.
O problema é, e será sempre, a meteorologia…
E esta sombra em meu olhar. A sombra do teu na ombreira da minha porta, doce e perturbador...

sábado, 1 de maio de 2010

queria ter bebido a desordem de teus olhos.


queria ter bebido a desordem de teus olhos, devagar,
e os silêncios dos teus gritos
em cada tarde a termo, de cada termo tardio, quando, no [des]verso de ti, me olhas e não me vês - transpareço -, e te iludes sem iludir. quando apregoas aos sete ventos verdades encruadas de mentiras; quando forjas um pódio sem tíbias, operetas vespertinas sem palanques, no lastro das tuas mágoas para te puderes instalar; e não careces, não precisas. ao meu olhar, sobressaiam intrínsecas, todas as índoles que, porque imperfeitas, nasci para complementarizar. entre nós corre o rio das coisas inacabadas, capelas defectivas, em que, a real  beleza está no azul do céu que as tinge ao reclinar-se, lépido e basto, de tão experimentado, adjacente à pedra basáltica em forma abrupta
há um sorriso nos meus lábios
e
uma imobilidade no gesto, um desacerto de acto, um pano que não sobe, uma deixa que já esqueço, ou talvez nunca a tenha entendido sequer. e um ponto ausente… dizem: “o problema é esquecer”
depois, existem sempre, os síndromes dos ponteiros dos relógios. por mais que os estudes, na verdade não passas, e eu não passo, não passamos em suma, de relojoeiros a quem o universo, ele mesmo desatento às nossas comuns vontades, não dotou de olhos de pombo, nem de mãos de cirurgião ainda que grosseiro. e, o que nos convinha, em rigor, era a capacidade de sermos, um e outro, modeladores de pele e aço… na estética de burilar o rosto, de esculpir estrelas e luas, de trazer o coração nas mãos
e oferece-lo
sem qualquer hesitação…

detenho-me por um segundo no desvão onde dependurei as horas pardas; descalço a alma, dispo a dor de ver ao longe um sapo a fumar um charro sem razão; e outro mais, e outro ainda, e, choro por todos quantos, das lágrimas apenas e só conhecem as de crocodilo.
pelo sapo, choro: temo que sucumba como sucumbem as vagas nas falésias, desmembradas…
(ontem ouvi ler um poema que falava da importância de saber respirar por guelras e entendi que, sem dúvida alguma, seria de todo pertinente que tal  matéria, fosse dada ao lactente, como vital suplemento, no biberão da papa, antes da primeira dentição …; é de poesia que falo, pois então…)

olho o rio e nem sei se já é mar ou apenas o busca no estuque  insalive da rebentação - o sol desceu, é quase noite, a marginal esfuma-se numa luz que cega e que a sublima, negra viúva,
ou
toupeira. toupeira em rendição …
debato-me neste conflito atípico entre a luz que engorda o fogo e a água que, sendo gota, faz o copo transbordar; estanco-o ao sabor sincopado do meu próprio coração: tic-tac, tic-tac … afago por sobre o branco da camisa o seio que se eleva, a dor que ameaça ser um AVC. sei de cor todos os sintomas
        “a diminuição da força do membro superior de um lado, o desvio da parte inferior da face e a dificuldade em dizer as palavras certas, ou nem as conseguir dizer, ao pretender falar” 
 de tantas as vezes  que as repeti… desvio a atenção, penso no seio, na pele alvíssima, no contraste  no risco,  no rosáceo do mamilo, no equilíbrio
entre
o lábio de igual cor,
e o beijo que não se vislumbra, vivido, meu amor…
e esta doença, que, duma fase assintomática, me conduziu à demência vascular…,
e, nada faz sentido ao meu redor …
agora oiço longínqua a sirene de ambulância,  agora esfumam-se os rostos e já são máscaras, agora o oxigénio que não chega, agora são as unhas, vermelhas, a ocultar o negro… acabei de chegar do paraíso …

queria ter bebido a desordem de teus olhos, devagar, repito,
acalentar-te o rosto, emaranhar meus dedos na ausência de teus cabelos, descer-te o corpo, como uma nuvem e desta ser
tal qual como a água lisa em solicitude e queda;
ajoelhar a hora derradeira ao redor do teu mundo…soletrar o teu nome, ao compasso de um arfar de fogo - anel de fogo - que apenas te protege e me desventra, ínfima, minúscula, larva ou borboleta, quando ouso lançar um olhar sobre a eternidade de um momento, escrever em cada sílaba que não escrevo, a história do mundo, numa (porque te conheço), vantagem competitiva ,e, porque jogo comigo mesma o jogo da cabra-cega, gerando em mim capacidade adaptativa,  jurei viver, 
jurei ...
mas não consigo…

se,
infinito o amor,
o regaço aberto.
o lençol de linho e o meu corpo,  ambos,
jazem escurecidos sob os raios ferozes do sol soprado na forma turva de uma enciclopédia sem palavras, reconstruída das ruínas de uma torre de babel:  reconstruo-me de um legado antigo, ao arredondar arestas  ao trigo e gerar o pão de côdea fina, onde, palavras são lâminas a lamber as minhas feridas.

queria ter-te aberto o meu peito
- esta janela de par em par -,
para que nele encontrasses o espelho de comum verdade…
esta janela, este peito que o AVC acabou de rasgar. rasgão de verbo, pretérito mais que perfeito,
escurece...
          tic-tac; tic-tac;
asas, máscara, massagem, máscara, massagem, asas, fénix
pássaro
subo 
e o mundo sem pernas para andar …
tic-tac; tic-tac...

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...