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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Na mão gigante do vento: Nazaret e o Caçador de Gergelins.

Castelo de Almourol by Enio Godoy Photography

Enquanto escovava os cabelos, Zaira revisitava  todas as pontes da sua memória.  A cabeça tombada na posição inversa ao corpo permitia-lhe o afago da nuca à correnteza das cerdas. Depois, amparando a cabeleira  com a mão direita, pela face inversa, percorria todo o caminho fulgurado desta, da raiz até às pontas. Por fim, após várias e repetidas passagens, devolvia o cabelo à posição inicial, sacudindo-o fortemente, não sem antes o acariciar, lânguida, ungindo-o num óleo miraculoso que lhe impedia o ressequido, o espigado. O cabelo era,  porventura,  o que mais cuidada em si e  um  precioso bem de que, em tempo algum se separaria. Tal como o dela: o carrapito preso com os ganchos de tartaruga, já baços, propalava  em formato de casca de caracol, da espessura maior, interior, à menor, exterior, soberbo. A ponta, a existir ocultava-a por debaixo da primeira, num entrançado certo, cuidado, dando mais vigor ao tom branco que a noite se incumbia de cinzelar. Ali na intimidade das falas retirava o lenço da sua viuvez, que a rua e os demais não haveriam, até ao dia do juízo final, de lhe ver o tom.  Ou o formato. O pudor acima de tudo, Zaira. O pudor! Dizia-se pertença de um só homem -  por ele se fizera mulher e para lhe agradar dera ao cabelo a forma das ondas do seu mar. Nesse mar navegaram dias a fio, extremosos, ele e ela tomados num ziguezaguear de músculos, de olhos, de vidas. Ele e ela. Por vezes quedavam-se exaustos em fragilidades próprias e nas complexidades das coisas simples: ora a chuva a cair impiedosa dos beirais da casa contra as lajes da porta, num chapinhado de patos bravios, ora o canto do vento descomprometido e livre nos canaviais das cercas dos terrenos. …  

Cruzou o umbral. Na outra margem do tempo em recta final, Egnácia trouxe-a de volta ao presente. Passou-lhe a escova nos cabelos escassos, conduziu-a para a sala onde tantos outros se avolumavam em risos ocasionais quando eram tomados do que imaginava serem sonhos nostálgicos. Apegavam-se às rotinas diárias em dissimulação de afectos como que negando cuidados terceiros, mas lá no fundo, bem no fundo, eram as rotinas que davam tempo ao tempo. Tinham deixado de Ser. – Quando se deixa de ser quem se é e não se consegue ser ou conviver com a alternativa, o tempo perde a sua notável agilidade evolutiva, dissera-lhe Egnácia certa vez. Ficara perturbada. E ela, Zaira, quem era? Ou quem deixara de ser? Em que umbral do tempo deixara dependurada a pele ou em que silvas se rompera o casulo antes da metamorfose das asas? Olhou-a de novo. Os olhos baços como que a pedir pouco, quase nada. Como que a pedir desculpa porque sim, por ser um fardo…

Naquela manhã os pássaros estavam silenciosos no seu piar. Em demasia. Zaira retomou o fio da meada dos dias. Ali estava a cuidar das avós dos outros, a buscar colo que lhe amenizasse a dor da perda. Cuidadosamente, escovava-lhe os cabelos ralos e finos. A custo tentava que se acomodassem aos ganchos que, obstinados, escorregavam cabeça abaixo. – Ora bem, findámos. Está linda, concorda? Abanou a cabeça em aprovação. - Obrigada.E, sem aviso: – Liso, era liso o meu cabelo, menina, tão liso como as lezírias prateadas  de  trigo a chorar à fala da  foice. Difícil de prender, de se acomodar aos ganchos, à rede. Tanto que o ceifei para o vender aos ciganos, que, de castigo, a terra fecundou-me os pés, e, às tantas,  eu e o cereal que crescia nas várzeas éramos uma seara só. Se foi o trigo que me viu ser mulher aos braços da maré grande, se foi ali, além, nas searas que pari os meus filhos, se foi o rio que me lavou as mãos, depois. Um sorriso alvo brilhou-lhe o olhar, algo diabólico. Não havia arrependimento nem mágoa. A boca enrugada revelava duas fileiras de dentes certos de fazer invejar a muitos jovens. A ela própria. Zaira não resistiu, elogiou - Que belo o seu sorriso, os seus dentes são maravilhosos, Dª. Nazaret, são verdadeiras torres marfiniticas de um castelo altaneiro...
Cortou-lhe a palavra:  Almourol!- Conheço tão bem, mas tão bem, que nem a menina imagina. Sou da Barquinha, da sede do concelho, - a vila mais bonita de que há lembrança, ou melhor, era. Agora não sou de lugar nenhum e nem a minha vida pertence a ninguém mais. Nem a filhos, a marido ou amado, muito menos a meus falecidos pais. Estão todos mortos! Os que sim, que Deus os guarde e por eles rezei e peregrinei anos a fio, quando já não tinha nem cama, nem casa, nem eira nem beira. Por eles, mortos, acendi memórias e velas de aleluia em todas as igrejas e capelas da região, da Senhora dos Remédios à Matriz de Atalaia. Na capela de Roque Amador, ou a do Senhor Jesus, quando Deus queria e me guiava ai, lá estava eu curvada em sua glória. E noutros dias, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Igreja Matriz de Vila Nova da Barquinha. … acho que não me esqueço de nenhuma, menina; Bem vê, em todas lhe acendi agradeci e entreguei a minha alma na mão gigante do Infinito. E os que não, os vivos ainda, que os matei nos meus olhos quando se esqueceram do meu nome, nome de lugar sagrado; fui-os matando aos poucos quando, na arrogância e desvario dos obstinados ou pobres de valores e de espírito, se apoderaram das casas, lugares de criação, quase em ruínas, e dos terrados, lugares de vinho, azeite e pão, e dos linhos da arca que me estavam reservados para a mortalha, dos barros da greda, das talhas de azeite e da minha trança. Dizendo isto, Nazaret, turvou perigosamente o semblante, agora prenúncio de trovoada. Na sala, em surdina, crescia um canto penumbroso equiparado ao rastejar de cobras. Incomodativo. Os olhos apequenavam-se afiando-se em lâmina contras as têmporas, a boca perdia espessura descaída em arco, o queixo trémulo, os ombros hirtos. Da minha trança, repetia. Vendia-a bastas vezes para lhes alimentar a boca mas não imaginei nunca que um dia seriam eles a vendê-la para se arruinaram à mercê do vício. Vinho e drogas. Depois de África (diziam-me que negociava em corno de rinoceronte, em presas de elefante). Foi para lá fazer a tropa e, quando voltou, dele não restava nada se não o nome: Inácio. E o vício. Os vícios. Logo ele que dizia “o vício não pode ser maior que o homem”. Dizia-se negociante. Dizia-o à boca cheia, afugentava os pedintes “façam-se à vida, cambada, o que mais não falta é trabalho”… 
Vi-o a última vez, antes daquela em que o matei dentro de mim, o meu mais velho, nas margens do Tejo, nas Festas do Rio e das Aldeias, num 15 de Agosto. Os festejos espalhados pelas duas margens. A procissão fluvial já a chegar a Tancos. Os barcos engalanados. Vi-o e antes não o tivesse visto. Vinha tomado da ira, aprochou-se a mim, varreu-me a carteira, estava vazia, tinha comprado um pão, umas migalhas tremoço, um gergelim; lançou-me um fedor de vinho e a sentença: - amanhã volto e alguma coisa haverá de ter para me dar. Se não a trança! Ou os dentes, que os têm bem bons ainda – hão-de valer dinheiro… E voltou, nunca foi homem de renegar uma promessa, lá nisso saiu-me a mim. Voltou acompanhado com quem o desviou do caminho. A tesoura da poda a que nunca se afeiçoou ainda estava dependurada na adega. Foi com ela que levou o orgulho de uma vida – foi o orgulho que me levou, menina Zaira… coloquei um lenço, enviuvada de novo de uma viuvez de parto. E nova sentença: - A seguir, arranco-lhe os dentes. Corri à adega, apoderei-me da roçadora … não me lembro de mais nada. Os mais novos, dois, rapaz e rapariga, esses, dizem-nos na Europa, eu não sei o que é a Europa, o mais longe que fui foi ao Arripiado, do outro lado do rio, mas sei que deve ser um lugar de esquecimento onde há quem perca a memória e a vontade de regresso. O chão tinha a cor das alcachofras e da beterraba. Não percebi. Tomei-me de dois baldes e esfreguei até não ter mais pulsos. Coloquei um lenço. Na margem do rio pedi ao barqueiro que me levasse ao castelo, pedi a troco de um punhado de tremoço, riu-se de mim, mas levou-me, abençoado homem, e, pergunte-me agora menina, que lhe vejo a pergunta a bailar nos olhos, em que dia e em que data, cheguei aqui. Pergunte. Não sei, só sei que o cabelo me chegava à curva das pernas e que os meus dentes estavam brancos, disse o Doutor, de tantos anos a comer raízes… nunca mais voltei à Barca – era assim que se chamava a minha terra antes de tudo isto, quando eu era princesa, mais tarde Rainha do meu homem,  e habitava o castelo. Quer que lhe fale dele? Do castelo? Conheço-o como ninguém.

Nazaret perdera-se de novo. Como em tantas manhãs ir-me-ia falar da Ordem de Cristo, da Reconquista, da arquitectura militar, do Beijo do Vampiro. E dele, o Caçador de Gergelins. Nada e crescida nas Lezírias, pouco mais do que alfabetizada, de onde lhe viera tanto conhecimento? 

Encontrara-a quando, a pretexto de fotografar o castelo na lua cheia, pernoitara desautorizado por lá. Do afloramento granítico secular surgira sem aviso por uma brecha imprevista qual figura do Neandertal. Apavorado, duvidou que fosse gente. Dela só o alvor dos dentes. Estendeu-lhe uma mão cheia de tremoços e um gergelim e o pedido: leve-me de volta à vida. 

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...