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A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 28 de maio de 2011

o limoeiro

Tomava-lhe conta dos ombros nus uma brisa frouxa ao  mesmo tempo que, do chão, a lentura do orvalho matinal lhe arredondava os passos.  Sempre que a cidade grande a não obrigava à formalidade do fato e os dias ensolarados lho permitiam, Etelvina dava asas à rústica que a habitava. Nesses dias chamava a si as tarefas mais pesadas, simultaneamente as que lhe conferiam mais prazer.  Depois da casa, o jardim de cheiros (nem sempre por esta ordem), onde se inebriava de aromas - o funcho, a cidreira, a hortelã, o cebolinho, os coentros ... gostava de, uma vez concluídas as tarefas a que se impunha, gozar do reluzente dos espaços, lavados, arejados,  desbravados  e embelezados por suas mãos. Coisas prosaicas e materiais, sabia.  Acrescia-lhe o gosto  óbvio pela terra, pela água, o gosto por, como lhe dizia a voz de dentro, chafurdar-se de si mesma e das raízes até mais não poder —  mais  tarde seria ainda a água a sua inefável companheira, quando, liberta de todos os espartilhos,  se deixava possuir inteira. A entrega, o culto,  a cadencia lenta, algo egóica, o esbracejar contra a indiferença, a rotura audaz com a certeza da sua própria impermanência.
Tudo, até a água, era transitório e por momentos não era, sendo textura palpável de instantes apoteóticos, seus, de plenitude e de quietude, no caos da vida.

Num rasgão súbito viu-se reprojectada na  parede do fundos entre a lei e um colo de pertença. Viajava  na nostalgia saudável de um ciclo de partilha em que o tempo se dilatava muito além da demarcação dos ponteiros de qualquer relógio, e, apenas os bagos debulhados na pele dos olhos  (dos que  em emudecimento beijava) contavam de notícias que, sem se saberem aforismos e  metáforas, eram-lhe alimento, ambrosia, e  saberes inultrapassáveis.  Histórias simples, inverossímeis,  como a daquele dia em que se viu ali, sob um chapéu cinzento,  o Elba ao lado – havia sempre um rio que lhe corria lateral às veias, a medir-lhe o pulso –,  tomada pelo braço, conduzida ou conduzindo, nunca saberia, num passo certo e ritmado, redescobrindo vestígios da sua própria existência — Dentro do possível.  Dentro do possível,  repetia-se, porque é nele, disseminado,   que se delimitam o umbral de rosas bravias,   as coroas de louros, os espinhos tangenciais  à face em que, e  segundo Woody Allen, se divide a humanidade "entre o miserável e o horrível" (discordava), o cheiro das aspas, as reticências,  a essência  citrina, igual à que lhe chegava agora,  algo almiscarada a lavanda e a baunilha,  o céu e  o inferno.
Do purgatório, num patamar intermédio, nem se inquietava em expurgações antes do tempo. Directa,
o céu e o inferno. E o fogo,  capaz de transformar as frutas mais robustas, mais sadias, em pastas,  em doces, geleias e compotas, 

No labirinto das memórias repartidas do canto perdurado, quase pássaro, quase bicho, desatou os nós górdios da insónia. Rumou-lhe,  letárgica, tomada na jangada das suas gotas.  O sol do meio-dia,  a  pino,  irradiava-lhe a pele tornando-o quase transparente.  Afadigada,  encostou-lhe a cabeça,
o corpo em arco glissando os dedos na demora, num ruído de fricção  dolente, espécie de fret noise de notas intermédias de um violão antigo,
buscou uma nesga de sombra. Semicerrou as pálpebras.  Gemeu baixinho, tão baixinho, 
(em que lugar de si  morria primeiro? havia tempos que este pensamento a atormentava...).
depois mais alto. Por fim,  como se não houvesse nem hoje nem amanhã, deixou de controlar o caudal do grito. Acordou a cal do muro que, farrapo a farrapo, chorou dos olhos das paredes fronteiriças,

aninhou-se quanto pode, ínfima formiga, 
     desejou que a afagasse, lhe repusesse num gesto de verdade o sentido da vida — o limoeiro, baloiço da sua meninice,  era, de todas as árvores, a sua preferida. A par com o pé de lima.  
              

"Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.Hilda Hilt


Foto da autora.

terça-feira, 17 de maio de 2011

no ardil das manhãs


no ardil das manhãs Carlota cola um penso rápido na face da espera  na senda de suportar o insuportável; sabe que as pedras não sangram nem os verbos sobem o curso dos rios rumo a nascente; sabe que os telhados de zinco são marcas de estábulos vazios  a denegrir a paisagem,  e que, na encosta do espanto o colmo faz tão mais sentido que qualquer cobertura meliante apostada à alvenaria,  e, ainda assim, coleccionadora de borboletas, nega-se a espetá-las à face crua do tempo. quer que respirem.

[Carlota é uma criança que vive numa casa que é uma espécie de árvore de  seiva e sangue,  tem um papagaio de papel bordado na orla da saia. não sabe mais de si,

a não ser
               vontade de (te) dizer as palavras grandes.]


Imagem da net.

domingo, 8 de maio de 2011

Uma questão de higiene

Chamava-lhe simplesmente “a velha”. Não exactamente pelo sentido depreciativo do termo, mas porque na verdade, era velha – idosa, politicamente falando.
Nada a unia a ele a não ser que “a velha” era nem mais nem menos a sua senhoria. A pessoa a quem, aquando da sua vinda para o Politécnico da Guarda, alugara um quarto que dividia democraticamente com outro estudante. Um quarto que em nada lhe lembrava o seu deixado no Alentejo, meticulosamente branco, sempre a cheirar a cera de abelha, todos os dias arejado, todos os dias alindado. As rendas brancas, os tapetes de Arraiolos feitos propositadamente para aquele e não para outro quarto, as estantes geometricamente dispostas e rigorosamente limpas…
Filho único e órfão de pai desde os cinco anos de idade, Renato fora sempre alvo de todos os desvelos e cuidados extremados, quer da mãe, quer das tias e tios, e, claro, dos avós.
Cultivara o gosto da arrumação, do aprumo, da ordem. Tornara-se se não obsessivo pelo menos fóbico em relação a cuidados de higiene. Ou ambas as coisas!
Na hora da escolha do curso, parecera-lhe evidente que teria de cursar medicina. Sem margem para dúvidas. Não porque as pessoas em si, o interessassem por ai além, mas porque, se bem cuidadas do ponto de vista médico sanitário, seriam, em ultima instância, um perigo menor para a sua saúde e, claro para o seu bem-estar.
Todavia a entrada em medicina estava-lhe vedada. Não era um aluno brilhante, apenas um bom aluno.
Em segunda escolha, e porque pela “boca morre o peixe”, decidiu-se por Higiene Oral. Seria Higienista. Teria a seu cuidado a porta através da qual todas as porcarias mundanas se alojam no ser humano. Ou melhor, uma das portas. E das mais vulneráveis.
 A casa era exígua, as paredes não viam tinta há séculos. As mobílias eram mais velhas que a sua dona, e, para além de tudo estavam para além de ressequidas pelo tempo e pelo pó. Carentes de óleo de cedro como jamais se vira. Pelo menos como ele jamais vira… A cozinha por certo nunca beneficiara de uma limpeza de raiz…
Hesitou antes de alugar o quarto, pensou duas vezes e concluiu que, apesar de tudo, era económico e, com os cobres restantes podia muito bem fazer umas noitadas com as caloiras. Sorriu de si para si, numa boca imaculadamente limpa, do esmalte dentário à cavidade bocal propriamente dita, mercê de gargarejos e desinfectantes adequados. Não, não fumava …
Postas as coisas deste modo restava-lhe então cuidar o melhor possível do espaço que lhe estava destinado – o do quarto e a serventia de cozinha, loiças inclusas. Assim o fez. Lavou e arejou, separou cobertores que colocou na lavandaria e que usaria logo que o tempo esfriasse mais um pouco e, claro, demarcou meticulosamente a loiça a que doravante chamaria sua. Procurou que fosse a mais velha, a mais feia (assim nenhum dos outros ocupantes da casa cairia em tentação de a usar). Comprou anti-séptico adequado e emergiu todos os pratos, copo, chávena, talher. Agora sim, poderia usar sem mais. Sorria satisfeito: “Boa Renato, tá fixe…” . 
As aulas começaram, Renato estava pouco tempo em casa, dividido entre namoriscar caloiras e cabular para os exames. Estudar de vez em quando, como convinha.
Como dizia, em casa o tempo era mínimo, até porque aquela não era a “sua casa”…
Um dia Renato sentiu-se indisposto e decidiu voltar mais cedo que o costume. A casa, mau grado estar um dia húmido e frio de Inverno, não tinha a lareira acesa. Virada a sul beneficiava contudo do sol da tarde e, para espanto seu, viu a janela do seu quarto aberta. Aquela e as duas que lhe estavam próximas. D. “Velha” estava a fazer limpezas … Facto inédito e inusitado. Azar de vida, logo naquele dia em que queria sossego e uma cama para tombar a cabeça. E um colo, de preferência …
Meteu a chave à porta, não sem antes bater. Não obteve resposta. Entrou, dirigiu-se à cozinha, colocou a chaleira para fazer um chá (daqueles que trouxera do seu Alentejo), procurou a sua chávena de estimação (a tal, a mais usada, a que destinara a si mesmo), procurou de novo e nada … Decidiu-se por usar um copo de vidro grosso, em que colocou uma colher, não fosse o mesmo rachar com o chá, encheu-o, adoçou-o com o mel, igualmente do seu Alentejo, e predispôs-se a ir e a levá-lo consigo para o quarto.
Assim o fez. Fechou a janela, deitou-se e esperou que o chá arrefecesse para que o pudesse beber. Cerrou os olhos, desejou a mãe por perto … Um vómito incontrolável subia-lhe e descia-lhe da boca ao estômago e vice-versa… Nos fundos da casa "a velha” cantarolava qualquer coisa de imperceptível. Um novo vómito e uma corrida, uma mão na barriga e outra a segurar a boca, para a casa de banho (única na casa) …
De cabeça literalmente dentro da pia amaldiçoava a noitada e as “bejecas”… Porca de vida!!! Branco, mais branco que as paredes que o rodeavam, levantou-se por fim. Lavou a cara, passou a mão molhada no cabelo, e, finalmente,  abriu os olhos … encarou a luz tremeluzente de 50 Watts projectada no espelho…
Sombras formigavam por sobre os fungos dos azulejos. As formas difusas da casa de banho tomavam agora contornos fantasmagóricos. Julgou-se morto e estava vivo… agarrou-se ao lavatório apoiado contra a parede, e, de repente, cuidou-se assaltado de  visões, possuído pelos demónios: na sua caneca, na sua caneca e não noutra, na sua caneca, naquela que procurara para o seu chá… na sua caneca,  ali mesmo, de molho, duas fileiras de dentes, desconchavados, velhos e amarelados, riam-se dele descaradamente…
Esfregou os olhos, encheu as mãos de água, lavou-os repetidamente. Não podia ser, porra, não podia ser…
Um vómito saiu-lhe disparado contra a imagem projectada no espelho …


Republicação (2008)
Imagem da net.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...