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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Mensagem de Natal ...


A todos quantos (e tantos foram), anonimamente ou não,  por aqui passaram, quero,  para além de desejar que as minhas palavras sejam, em 2010, companhias vossas (e que me saiba acompanhada com a vossa presença), quero, dizia, acima de tudo, desejar-Vos, a cada um, pessoalmente, um Natal pleno de PAZ.

Fraterno abraço da Mel ...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Por uma mortalha de papel

"Dorme, meu amor — a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste e pode levantar-se como um pássaro assim que adormeceres."(1)



Ela como as bocas das cigarras. Muda de gestos e de promessas, subia-lhe a roupa até ao rosto que aquecia. Gelado. Hirto. Boquiaberto em espanto. Não a via. Dormia. Para sempre, dormia.

Sem lágrimas (já não chorava) revia passo a passo a matemática da música e do vento que soprava lá fora e que lhe vociferava sempre escombros pecaminosos de um tempo em que, na areia da praia, as mulheres antigas (tão loucas) cismaram de lhe dizer
“Ele não volta. Ele não volta … Esquece e segue, mulher ”…

E ela, eterna de Atenas, envolta em lã ou nuvens de algodão doce, tecia no xaile a noite que sabia de si, de todos os minutos e os segundos - luz e sombra -, enquanto retalhava os dedos contra as escarpas. Azeitonas negras, dizia, desapartadas de um baralho “ao vento que passa”, e que um dia haveriam, por mor de si, de ser, vidência, claridade.
Abria o corpo de si própria e das palavras, sem medo de sentir dor. Esperança vã de que, o dia de hoje não fosse intempérie sucedânea do de ontem, sequer antevisão do de amanhã.

Era o tempo de ser tempo, dizia a contento, pese embora o facto incontornável de que, relojoeiros desatentos, não sabiam ver, no rodar de ponteiros, o rastilho das horas gastas...
Colocava-lhe um monóculo na ponta aquilina do nariz e nem assim…Cegueira crassa.

- Sai dai mulher, tu nem de ti gostas. O mar está para além de embravecido, as ondas rasam o cais e as redes. Que fazes tu a tanto olhar o mar, se sabes, e tu bem o dizes e afirmas que o que amas, que aquilo que te retêm e te fascina, não bóia à tona d'água, sequer navega?
Volta para casa, ao telhado de zinco que te abriga, volta para casa - morada de mulher honrada, e tranca a porta, de ferrolho corrido, que se adivinha, noctívaga, forte, já a borrasca. Em terras altas e no mar largo …Por todos os caminhos onde o diabo perdeu as botas…

Mavilde não ouvia.
Ou se ouvia preferia não ouvir. Grilos falantes em forma de mulheres. Doninhas mal cheirosas, escumalha de mal amadas e invejosas, corças sem pernas a pretender dar saltos… e ria de si e dos seus pensamentos.
Na solidão da praia, sobravam os coices contra o estômago vazio que, de tanto esforço, de ser saco de boxe, sangrava sem parar. O sangue, vivo, saia-lhe por onde encontrava espaço…

Eleva-se sobre o casario.
Sobre as fugas das chaminés. Sobre os restos dos risos que as crianças ao fim das aulas deixavam soltos no pátio da escola. Pétalas maravilha, com que, apensas por pinças, amalgamava em escamas e bordava. Texturas de filigrana.
Seroava solitária.
Entre margens bebia tisanas de folhas que colhia dos bosques mais antigos e, ela, mulher-águia, sem tino nem juízo, sobrevoava a ilha, em voos ubíquos, sempre circulares, sem sair do mesmo lugar. Insulava-se. Do mundo e de si própria.
Ela a ínsula, nem duvidava.
Dele a certeza de que, velho que fosse, haveria de tornar. Por uma mortalha de papel. Por uma onça, por um copo de tinto ou, pelo branco de um cigarro que fumava ali, enquanto na linha do horizonte, longe da cabotagem, consumia sereias rápidas num fumo de cachimbo. Acetilénico, que não travava. Na ânsia de se exceder… Ela sabia. Que lhe importava?

Era madrugada. Acordou com a fúria da trovoada. Das portas a ranger nos gonzos, dos relâmpagos a desembocar na sala e no quarto. Dos ratos sob o sobrado e sobre o forro das telhas. No sótão onde guardava todos os monólogos invertidos. Todos juntos, estonteantes, uníssonos, numa fanfarra macabra.
E os gritos. Assim parecia.

Envolta na nudez do corpo, à luz das velas, no negro da noite mal dormida, em papos de galinha, esfregou os olhos. Assomou-se à janela. Um regimento de gentes maltrapilhas no quintal em frente, onde minutos antes (ou séculos) anjos celestiais a haviam embalado em baloiço de heras e cores de framboesas
- Mavilde, Mavilde… deu à costa. Veio preso nas redes. Dos pescadores da sardinha.

Levantou-se. Vestiu a calma que não tinha. Aprontou-se em segundos. Cobriu o rosto e a cabeça. Tomou lugar na cauda daquela massa anónima que, da falésia se dirigia rumo à praia.
Sob a palidez das candeias, ele. Voltara.

Dobrou-se sobre as vagas, tomou-o em braços.
Levou-o consigo. Deitou-o sobre uma mortalha de papel. Rezou um terço. E deu-lhe um nome.

Adamastor em forma de poema, domava-lhe, uma a uma, todas as suas mais compungentes vontades. A vida, a dela, jangada parada à mercê de um tempo.
E ela, não mais do que timoneira desgovernada na fúria de um sentimento que nada aplacava.
... Amaciava o vento, afagava-lhe o rosto, que beijava.

Sabes, meu amor,
"— a noite é um poema que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres." (2)

***
Fotografia de Dora Leal
Citações, 1 e 2, do poema " Dorme, meu amor" de Maria do Rosário Pedreira


“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...