Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Era Inverno na estação dos pássaros!


“em volta da antiga torre… andei mais de mil anos”
(cântico ao Sol dos índios navajos)
cit. In “As pontes de Madison County” de Robert James Waller.


Jamais o telefone tocaria do outro lado. Olhava incessantemente o visor, vigiava o toque que, sabia, nunca adviria. O toque de mil caminhos cruzados a norte de si. O toque que se formara e fecundara em vítreo, sem que, contudo, dispusesse de útero macio para crescer. Morrera espartilhado entre a fenda labial e a palavra tolhida. Morrera antes de ser vida.
Recortava a água no cascalho lavado,

[…não sei como dizer-te que não te esqueci… que habitas a estação dos pássaros, das águas subaquáticas, dos limos e dos lodos, a sofreguidão dos lábios, os pulsos dos centeios e dos fenos… não sei, sabendo tanto, das funduras iniciáticas dos verdes campos quando ainda enverdecia o meu olhar em ti e o silêncio talhava o meu grito de fêmea no sangue exangue e desvanecido em eco. …não sei do branco dos girassóis nem sequer do amarelo das giestas (anverso inverso do teu retrato, do teu riso, do teu gosto…); não, não sei …]

deixava que apenas o lábio inferior tremesse ligeiramente, sinal de que a tempestade se formava agora, encruada em lágrimas de pedra e que, longinquamente, num lugar de sal e mar, de invasivo mar, num porto de mar, um homem, o único homem que amara em toda a sua vida, estaria, e também ele, preso a um toque que não tocava, a um gesto que ela mesma não tecia, porquanto, numa qualquer hora de um tempo em que o Sol madrugou a terra frígida, se tinham quebrado, irremediavelmente, todas as pontes que os aliavam. Todas as cumplicidades. Todas as intimidades. Ou quase todas…

[… não sei como dizer-te sem palavras de todas as noites imperfeitas, de todas as trevas, de todas as luas engolidas em abstractos fascínios de te contornar os olhos e os lábios em pós astrais de pele e dedos suados, de te enroscar nos trevos de quatro folhas, dos meus braços e pernas, num compasso síncrono de quatro por quatro, de deslizar no vento fermente e na forma de ser, batráquio, cobra, mulher …, ou leveza de pássaro. ... não, não sei dizer];

De novo o olhar se detinha no pequeno aparelho metalizado e de novo e uma vez mais, suspenso em suas mãos, vibrava sem vibrar. Compulsivamente. No tremor dos dedos, no agito dos pulsos, das veias comportadas. Como se das pradarias por si agricultadas em desertos, todas as flores, todos os pólenes, todas as borboletas e ínfimos insectos, murmurassem em uníssono o nome de quem a mantinha detida. Inominável nome.

[Longinquamente, numa flauta de osso de abutre, alguém ainda tocava uma estranha melodia. Por sobre a carne seca do que de si restava. Eram acordes celestinos de anjos em pousio, de duendes e druidas em espera de que, por sobre a planície das horas mortas se eclodisse Primavera… era Inverno na estação dos pássaros!]

Descalça, desnuda, desbrava lenta, caminhos de memória (tantas memórias), trauteando letras de poemas, cânticos de Sol, qual índia navaja. Repintava-se em telas e aguarelas dúcteis e serenas, revolteava em metafóricas, rimas e resmas de líricas que consumia, ébria, a cada final de tarde, por entre um trago de café bem forte e o vazio das enseadas: se não ninfa, sereia das falésias. Ou ilha, salinada ilha, donde não saíam barcos nem chegavam jangadas. Fundeava presa a uma bóia de chumbo.

[não sei como dizer-te desta coisa extraordinária, desta brisa que me invade os poros, que me lava os olhos em zimbórios de medo e espanto; e deste atrevimento; e deste poema branco que sou eu; e dos teus cânticos crepusculares e dos orgasmos dos sentimentos. não sei dizer-te, ainda, desta dança (heresia pura) em torno da fogueira, dos cheiros do sândalo e do incenso, desta luz que a noite em mim acende; da eira aberta onde se debulha o trigo; da plenitude bárbara desta baba branca que se escorre sobre o rio e que colapsa virgem em bagos de amoras tardias … e deste levante de tordos no turvo dos caminhos. o mar ao longe.]

Do oceano apático, adormecido, remanescentes memórias, minudências, diria, de actos e factos idos. De quando, em Paris, lhe mandara a mensagem: “ à Paris j'aime plus fort. …”. O trocadilho das letras, o azulecer dia na pista, o aparelho estanhado a aterrar e, já no ar, a ânsia de que, à chegada, senão ele, pelo menos as palavras dele, as suas palavras a pudessem abraçar. Ou, de quando, ele mesmo em rota, lhe enviara “da (…), um último beijo …”.

Jamais o telefone tocaria do outro lado. Era Inverno na estação dos pássaros!

“em volta da antiga torre… andei mais de mil anos”

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

"Sete-estrelo e umas botas"


Mirou-as demoradamente. Acariciou-lhe o couro com o olhar. Deteve-se no picotado do cano, na cor de terra. No brilho de coisa nova, nunca usada. Depois, na calma que a vida lhe trazia aos poucos, olhou o horizonte, em ocres iguais. O ocaso chegava já, num Inverno que ainda não era Natal e, contudo já se anunciava em cada rua, em cada esquina. Olhou o céu limpo, em busca do Sete-estrelo. Desde sempre lhe ensinara a procurá-lo: azul, qual reflexo do mar que a habitava…
Agora eram suas, como lhe prometera. Não, nunca as usara. Quando as terminara por fim, os seus pés não cabiam mais nelas. Crescera em demasia…
Abraçou-as, mediando o tempo desde que as vira a primeira vez, por sobre uma das múltiplas prateleiras empoeiradas que emolduravam grosseiramente o exíguo do espaço, a par de formas e calçados por consertar.
“...são tuas, um dia acabo-as e serão tuas...”

As linhas iam e vinhas no ritmo das sovelas a perfurar o couro, as solas batidas e rebatidas na pedra dura. As solas mergulhadas em água, por dias e dias. Pastosas. E depois moldadas ali, ao talhe dos pés.
“...um dia. Quando tiver tempo, faço-tas. Nunca terás de andar descalça, que te duraram uma vida. A vida inteira… nem que isso seja a última coisa que faça. Não terás de andar como eu, a ver “sete-estrelas” e umas botas … nos pés dos outros…"

As linhas iam e vinham no bico das sovelas, no cuspo das mãos, nas mãos magoadas. Pai…
“… um dia serão tuas, quando as acabar. Tem tempo. Agora tenho trabalhos em mãos, que te dão o pão da boca. Mas se tas prometo faço-tas”
E logo o olhar turvado sem brilho no brilho da lágrima contida:
“nunca lhas cheguei a fazer…”

As linhas de sisal iam e vinham, rangiam na sola, na sola dos pés o frio de tantas horas ali parado. Era Inverno…

“Sete-estrelo e umas botas.”
Naquela manhã o povoado acordou em sobressalto. Francelina, de pouco mais de quarenta anos e oito filhos menores, morrera. Uma forte dor na nuca. Nunca se soube ao certo. As bocas pequenas falaram da “porradas” que o marido lhe "amandava", quando ao fim do dia de jorna, aquecido no pingo da bebida, ajustava as contas com a vida no corpo não menos estafado da mulher. Comadre. Quando enviuvou do primeiro marido e pai das suas duas filhas mais velhas, arrimara-se a ela
“por bem querer, senhora Francelina, serei um pai para as suas filhas, um marido de respeito para vossemecê. Cuido-lhe do nome e das terras, minha comadre. Que fará vossemecê com duas filhas neste fim de mundo onde o diabo perdeu as botas? fraca e pequena como vossemecê, nem com os cântaros há-de poder, que via o senhor meu compadre – que a terra lhe seja leve -, a carregá-los serra a cima… casemos pois, senhora Francelina. Não dê outro padrasto a suas filhas e minhas afilhadas, que sou seu amigo e “mai-lo” delas…”

Casaram. Sem pompa, sem circunstância. Sem o agrado do povo, nem dos pais. Sem a bênção da família da viúva recente e já nubente. Que guardasse distancia e logo tomasse rumo. Mas assim? Em pouco mais de dois anos? Certo que Jorge era parente, conhecia os cantos à casa e nela trabalhava desde que os seus pais o haviam posto fora de portas
“Ora, coisas de rapazolas. Uma má palavra e o meu pai se deu por ofendido. Levantou-me a mão e perdi a cabeça…”
sempre ia dizendo a despeito da sua deserdança:
“que coma a terra, que por mim hei-de apanhar e chamar de meu, mais que aqueles palmos de terra”.

Achou. Achou a confiança do compadre, os olhares gulosos sobre as terras que eram suas e, porque não dizer?, sobre as ancas de Francelina “boa parideira, a minha comadre, tem um par de ancas que a benza Deus” e fome de lhe morder os seios e beber o leite que se lhe escorria “valha-lhe Deus, minha comadre, que esse leite é uma perda”… avançava, entre dentes, em falsa compaixão, sob olhares lascivos.

Tomou-a sua, ocupou o lugar do falecido nas terras e na cama e, desejoso de lhe fazer prole, acrescentou mais seis aos dois filhos de Francelina.
Esta respondia, no início, às investidas do marido, à fome das ancas e dos seios, com cansaços e pouco deslumbramento; na verdade nunca o amara. Nem pouco nem muito. Temera a solidão, o deserto do casal, o comando das terras. Era seu compadre, mal não lhe havia de fazer, por certo. Sempre era um homem, elas três mulheres…

Amor tivera ao falecido, que a cobria de atenções e mimos. Que a abraçava demoradamente antes de lhe avançar na carne. Que a olhava num olhar maior, quando lhe soltava em adoração de alma e corpo, os cabelos de um ruivo luminoso que a inundavam de luz, e que, sob o manto do céu tangido de Sete-estrelo, sob a bênção do Sete-estrelo, a desnudava por completo e se desnudava a si, para a amar profundamente. Quando em luar maior, lhe adoçava-lhe o gesto da posse. As noites eram sempre pequenas para os amantes e eles amavam-se…

Detinha-se íntima e introspectiva na Lua que, pressentia, alguma vez teria novamente, que se quedava agora sempre negra lá fora, nos braços dos salgueiros e nas urzes serranas. Amor tivera a quem a aconchegava de beijos antes que, bem amada, dormisse e, na manhã seguinte a acordava com uma chávena de leite quente. …

“agora” a cama gemia e acordava as crianças. A palha de milho roçagava o vento que se escapulia das telhas vãs. As noites eram longas demais e, não raras vezes, na manhã seguinte, à beira rio, onde lavava as ceroulas de Jorge, os cueiros dos filhos mais novos e as camisas dos mais velhos, as mulheres do povoado lhe viam as marcas enegrecidas da “paixão”.
“ó Francelina, que é lá isso, ó mulher? Tens uma negra nesse braço… e que é isso na boca? Tá a modos que rebentada…”.
“… não, senhor, não é nada … fui eu que me abracei no descuido com um cepo no quintal, que ia de cabeça no ar …”
De olhos baixos, esfregava primorosamente as fraldas até a pedra se queixar e as mãos enregeladas do inverno se abrirem em sangue. Chupava os dedos para que estancasse, dava por concluída a tarefa, e, de alguidar numa anca, bilha na cabeça, e por último a cria mais nova, sua filha de meses, escarranchada na outra anca, avançava a custo o íngreme do monte. Nos entretantos, a sós com Deus e com a sua vida, rezava em contas das próprias lágrimas. Agora era tarde para recuos, como tarde se anunciava o dia já a pôr-se enegrecido no ocaso. Apenas uma luz lá no alto lhe conduzia o andar nos pés mal calçados de solas safas. Perscrutava o Sete-estrelo …

A proximidade do casal já se sentia, no latido dos cães e nas correrias das crianças que, no instinto se acercavam dela. Soltava Rosa da anca, confiava-a a Manuela, uma das mais velhas, gritava o nome de Raimundo, de Carlos e dele, o dono temporário das botas…
Acorriam em algazarra.
“mãe, mãe…”
“rapazes, onde está o gado? Já o arrecadaram? E a lenha? Trazei-me dai uns cavacos que se faz tarde…e o vosso pai já deve andar por perto…”
Manuela ajudava no pendurar da roupa, os rapazes acendiam o lume, os mais novos corriam em torno das suas saias. Por instantes eram uma família feliz. Francelina abraçava os filhos, beijava-os, deitava sobre eles um olhar de esperança – um dia as coisas mudariam. Seriam eles a tomar conta das terras. Jorge afinal não era dono de nada, valha-lhe Deus… Um dia. Um dia … “Sete-estrelo”
“um dia faço a vossemecê, minha mãe, umas botas de cano grande, por via de não andar de pés no chão, nem com as pernas rotas dos silvados, vossemecê verá, senhora minha mãe… vou ser sapateiro, como o senhor Joaquim do Vale, meu padrinho.”
Afagava-lhe o cabelo encaracolado e loiro. Abençoava-o. O seu filho mais velho, daquele casamento desgraçado. E agradecia, contudo. Lindo o seu filho. Grata, olha-o …
“… um dia, filho…”

O latido aflito do cão de guarda mais ao fundo do portão indicava a proximidade do dono. Era ele sempre a primeira vítima. “…é cão duma peste, não te calas nunca!”. Um pontapé ou uma verdascada marcavam o ritmo do discurso iniciático.
As crianças sumiam. Cada um para o seu canto, para as camas improvisadas em cima das arcas do pão, com mantas trapeiras.
Francelina colocava apressada Rosa no berço, com uma chucha de açúcar e vinho. Dormiria. Tinha de ser…
“já comeram os rapazes? É bom que sim, que quero descanso”.

Acenava que sim. Muitas vezes não, mas ninguém dizia nada. Ajoelhava-se aos pés do marido, ajudava-o a tirar as botas. Ele media-lhe o corpo enquanto se levantava rumo ao lume.
As couves fervidas a escaldar o pão. A “tiborna” com o alho. Tudo pronto.

Francelina baixava os olhos, mexia o caldo e servia o seu homem. Depois a sua malga. Comiam em silêncio. Jorge, por debaixo da mesa procurava-lhe as pernas. As mãos grosseiras, apertavam os joelhos, arranhavam desapiedadas a pele. Avançavam, subiam, buscavam o sexo. Achavam-o. Penetrava-o desvairado e, se o sentia húmido da corrida e dos labores, dos cansaços do dia, que fosse, começava ali o chorrilho de difamação “puta, ‘tas com ela aos saltos, não é?, quem é que te comeu hoje, minha puta?”. Levantava-se num ápice, empurrava-a contra a parede, abria a braguilha, soltava o bafo do vinho pelas narinas de besta e possuía-a ali mesmo, sem uma palavra. Mordia-lhe a boca, mordia-lhe o corpo, fazia soltar os seios do corpete alvo, apertando-os impiedosamente. Rodava-lhos os bicos já macerados de vezes outras, mordia, sugava-lhe o leite e o sangue que escorria – ainda amamentava -, . . “puta, agora estás satisfeita? É disto que precisas, não é? Cadela, puta... ”. ...
Por fim largava-a. Voltava para a mesa, comia outra malga de sopa, bebia, raras vezes se lavava. Deitava-se.

Francelina chorava sem um ruído. Arrumava o que havia a arrumar, engraxava de sebo as botas de seu marido, recolhia as roupas caídas junto ao leito e, quando o julgava adormecido ia levar as malgas aos filhos às camas. Finalmente, quando as crianças adormeciam, voltava ao quarto e tomava o seu lugar na borda da cama, no silêncio que a palha lhe permitia.
Noutros dias, naqueles em que ele a tomava e a achava seca, nem por isso as coisas corriam de melhor feição “puta, não queres o teu homem? Gostas mais dos moços de estrebaria é? Ou dos oficiais de cavalariça? – dizia-o em alusão clara ao facto do primeiro marido ser da tropa. -, “morreu, puta, deste cabo dele, não foi? Rebentaste-o debaixo de ti..., agora rebento-te eu, que vais ver o que é um homem.”

Francelina foi a enterrar. O povoado inteiro em torno das crianças. Os padrinhos a adivinhar a falta. Cada um para sua banda. Cada um por si, ou Deus por todos...

Ele seguiu o padrinho, sapateiro de profissão. O pai desceu ao Vale, três semanas mais tarde e naquele mesmo dia fez-lhe a trouxa, amarrou a um pau e deu-lha para a mão.
“… vai, o teu padrinho já te espera. Aprende a profissão. Aqui não há lugar para malandros”.

Tinha onze anos. Olhou pela última vez os cães, olhou a casa deserta das feições de sua mãe. Abraçou um a um os irmãos, desceu o monte, procurou o vale e lá a casa do sapateiro… era noite fechada. Guiou-se pelas estrelas “uma, duas, três, quatro … sete-estrelas e umas botas”.
Mãe...m ã e ... mm ãã ee ...”
Apenas o eco: Mãe...m ã e ... mm ãã ee ...” Um homem não chora! Não era homem: chorava...

“ ... um dia hei-de fazer-te as botas, filha. Se não as fiz para ela...”
Nunca a nomeou. Como se as lembranças o matassem dia a dia, como naqueles dias em que o via a ele a possui-la, à sua mãe, ali na cozinha de lenha, quando o julgavam já acamado. Jurou que um dia o matava... mas ela morreu primeiro. A sua mãe. Tinha onze anos e foi ser “maltês”...

Olhava-as agora, castanhas, na cor da terra, da terra que aguardava para sempre: as suas botas (que nunca usara), as dela, que nunca as tivera ...
Abraçava-as devagar. lenta_mente.
O céu em Lua cheia.

Soltou os cabelos cor de fogo, os que herdara dela e, num gesto insano possuída pelo tempo que não foi seu, jurou à Lua que nenhum homem a possuiria sem que a amasse de verdade, que nenhum homem encostaria um dedo que fosse no seu corpo sem que da sua alma se tivesse primeiro apossado em troca da que lhe tivesse confiado. Magicamente calçou as botas. Perfeitas. À sua medida.

Dizem que é Ninfa do Tejo, que o Sete-estrelo dança nas cores de seu olhar ...
Dizem!
___
Notas:
In Wikipédia: “Sete-estrelo”- Trata-se das Plêiades, um grupo de estrelas na constelação do Touro, que consistem de várias estrelas brilhantes e quentes, de espectro predominantemente azul. A névoa azul que as acompanha deve-se à fina poeira interestelar da região em que elas se encontram que reflecte a luz azul das estrelas.
Referências Bíblicas a Sete-estrelo:Livro de : 9-9 [...] quem fez a Urso, o Órion, o Sete-estrelo e as recâmaras do sul"; 38-31 "Ou poderás tu, atar as cadeias do Sete-estrelo, ou soltar os laços de Órion?" ; Livro de Amós: 5-8 "[...] procurai o que faz o Sete-estrelo, e o Órion, e torna a densa treva em manhã e muda o dia em noite; o que chama as águas do mar, e as derrama sobre a terra: o Senhor é o seu nome."

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Ninhos...

A tarde avançava por sobre o vermelho da vinha piriquita à sua direita, descendo a passos dóceis do escuro dum céu entre o rosa e o chumbo. Adivinhava-se o frio lá fora. A tempestade. Dentro do carro o termómetro marcava a temperatura externa. Escassos quatro graus. Temeu a saída. Suportava mal o frio. Sempre assim fora. Ainda o Inverno vinha longe e já se escondia literalmente nas imensas golas altas. Não raras vezes as fazia subir até por cima da boca, deixando apenas à vista o nariz e os olhos.
“lá está ela, isso é vício, sempre a esconderes-te por detrás das golas”.

Sorria… Adivinhava-se o sorriso no brilho levemente humedecido do olhar, porque, em rigor, continuava escondida, no agasalho das suas golas … na protecção tácita e premeditada de suas golas. Noite e dia o corpo não se lhe aquecia, por mais roupa que colocasse, camada sobre camada, em jeito de cebola (seria por isso que tantas vezes lhe vinham lágrimas teimosas aos olhos?...). Imaginar o frio e já os ossos se lhe encolhiam, se cravavam espinhos em pele, rasgando-a, no cieiro pérfido da dor. Nas frieiras que em menina lhe assoberbavam as mãos, impedindo os gestos. Hirtas as mãos. Gostava de chuva mas não de frio, de todo não …

Seguia em rota, a caminho de Montemor na A2 ladeada ora de pinheiros mansos, ora de azinheiras. Azinho. Os cheiros da lenha a crepitar na lareira, a mansidão das falas. Os ninhos empoleirados nos postes de alta-tensão. Os ninhos de cegonhas …

Outras viagens, outras épocas, nos tempos em que ao Alentejo das suas memórias, no pós-revolução de Abril, os trabalhadores das indústrias, os doutores, os trabalhadores do comércio, a população urbana no geral, acorria a fazer a reforma agrária.
E ainda aquelas, as que agora lhe vinham revisitadas nos ninhos de cegonha: Maria Luísa.
“… levaram-na para sempre, menina. Nunca mais voltou aqui ao nosso ninho. Foi um pássaro migrante sem retorno, sabe, menina?”.

Duas lágrimas teimosas marcavam o rosto do homem ali sentado à beira da lareira. Imaculadamente branca, a casa, respirava a poros abertos o cheiro do azinho, das chouriças curadas na “da vizinha”.
“… coma, menina. Vai ver que gosta. Nós não criamos porcos, bem se vê. A minha Jesuína ficou assim ainda não tinha trinta anos. Faz o que pode, e olhe que faz muito, sempre fez. Mas fora de portas não pode, bem se vê. Uns bicos ainda se criam, por mor de uma canja na doença, mas mais que isso não. Mas estas são de confiança. São além da vizinha do Alabastro. Um porquinho criado à mão, engordado só com o que a terra dá. Bolota. Nada de farinhas, não senhora. Coma menina que vai gostar…”

Pegava no canivete sacado do bolso das calças, limpava cuidadosamente e, sem mais, cortava as chouriças em pedaços fartos. Igual tratamento dado ao pão carrasqueiro, de grandes dimensões.
“…é além da vizinha Margarida. Coze em casa, sempre cozeu. Nós não, a Jesuína não pode amassar e, casados os filhos e migrados lá p’rá cidade, não vale muito a pena. Dantes eu mesmo o fazia, amassava. As raparigas tendiam e iam ao forno da vila a cozer… dava-se de pagamento uma parte da cozedura (um panito ou dois…) e pronto, ficávamos governados para toda a semana. Com azeitonas e uma cebola, tantas vezes foi o meu almoço além nas hortas…”

Ao lado, Jesuína ouvia com atenção as falas de Alexandre. De lenço amarrado por sob a boca já desdentada, de xaile de lã escura sobre os ombros, amparava a mão direita no cós do avental. Inútil. Mão inútil. Nada fazia, dizia. Tal como o braço. Tal como a perna que arrastava, sobre o pé virado em sentido inverso. Para trás. O pé, tal como a mão, ficara-lhe assim após uma trombose, aos vinte e poucos anos.

“a Luisinha, menina, foi-se e nunca voltou…”

Pegava de novo no fio da meada, numa lembrança que o magoava, que o tornava menor, nos seus mais de metro e oitenta. Turvavam-se-lhe os olhos, num verde já cansado. Desbotado no sal das lágrimas.
“Alexandre, o Grande”, recordava-se, tinha sido assim que interiormente o chamara, desde aquele dia em que o viu a primeira vez e ele, com um sorriso aberto lhe estendeu a mão e ela, atrevida, lhe beijou a cara. Viu-o ruborescer, ao mesmo tempo que lhe dizia: - “então é a menina que futura a ser minha neta? Faço gosto disso, fique sabendo. Ouvi falar já tanto de si…”.

Naquele dia os olhos ficaram cúmplices. Sempre que voltava, como naquela tarde, Alexandre ia à gaveta das suas memórias e, num vagar de tempo partilhado, contava-lhe da vida. Da sua vida. Da vida do seu Alentejo de safras escassas. Do tempo das meias sardinhas e da jorna quando o tempo permitia os trabalhos nas terras. De sol a sol, e ainda completados com as tarefas mais pesadas da casa. As mais pequenas feitas pela esposa e pelos filhos, ainda crianças…

Em simultâneo, da gaveta dos seus “tesouros”, oferecia-lhe alguns. Pequenos adornos de madeira que, à lareira, nas noites intermináveis, ia fazendo com a preciosa ajuda da sua navalha. Num esculpir de afectos, dando forma e utilidade a pequenos paus, sobras de cortiças. Oferecia-lhos.
“… leve este, menina. É um coxo, se tiver sede pelo caminho, já tem por onde beber…e este tem o seu nome, já viu? (mostrava um M, mal desenhado, talhado na cortiça, naquele caso, copiado a olho dalgum lado. Mostrava, orgulhoso...). Ou prefere este tarro? Pode levar uma bebida quente lá para o seu Liceu, que ouvi dizer que é friorenta”. Sorria.

Depois, lá mais ao fundo, as chinelinhas… e uma nuvem pousada no olhar. Enorme, a ameaçar tempestade. Como aquelas que agora vinham das bandas de Montemor. Tempestade pela certa.
“… sabe, fiz para a minha Luisinha. Nunca as calçou, bem se vê. Fi-las grandes, para quando tivesse três ou quatro anos. Quando ma trouxessem de volta…
E as lágrimas a traçarem os caminhos do não retorno. A tempestade a varejar as cepas piriquitras e o casario branco. Agora acompanhadas pelo choro baixinho de Jesuina. E logo determinado, “Alexandre, o Grande”:
“…não chores, mulher. Sabes que está bem. Que tem o que nunca lhe podias dar. Tem já filhos doutores, até. Foi à escola e é letrada. Ingrata mulher, estás a chorar por via de quê?... a Luisinha está bem, pois então… muito melhor que aqui. Teria comido meia sardinha e ceifado trigo de pés no chão. Carregado lenha e água além do poço e, lavado no rio, como as irmãs, que sofrem agora dos ossos”
“ … criamos todos os outros, homem. A nossa Luisinha também se tinha criado. Quantos pari depois de estar assim? E algum se perdeu? Deus Nosso Senhor não te ajudou a cuidar de mim e deles?... A nossa Luisinha também se tinha criado. Era nossa filha como todos os demais. Sete, criamos seis. Todos vivos e todos sãos. Não andaram à escola? Não, não senhor. Mas ensinamos-lhe da escola da vida. Hoje já levaram os filhos à escola. E alguns até já são quase doutores, engenheiros, não é como se diz? Como esses da reforma agrária que ai vêm, só que os nossos netos comeram com as colheres que tua fazes dos troncos, e das migas que eu consigo fazer com esta mão que Deus me conservou. A Luizinha nunca as comeu, homem. Era de leite quando se foi…”
“…coma, menina. Não se entristeça. A minha Jesuína está sempre a chorar a nossa filha. Mas ela está bem, está bem …”

Repetia para se convencer. Para se acalmar. Para acreditar, não acreditando jamais, que, deixá-la partir fora a melhor escolha. Afinal sempre lhe disseram que seria só por dois ou três anos. Iam a modos que para juntar uns dinheiros. Voltariam. Luisinha, a sua afilhada, voltaria e, nessa altura, por certo Jesuína estaria já melhor...

Viu-se a braços com a doença da esposa. Com sete filhos todos pequenos. Os padrinhos voltariam, pois então. Argentina não era lugar para se ficar, era o que lhe diziam. Só para ganhar uns tostões. Assinou. Não sabia ler, mas assinou, ou melhor, no registo colocou o dedo. Num aperto de alma, colocou o dedo.

Luísa não voltou. Nem nos dois anos seguintes, nem nas duas décadas, nem sequer nas quatro que já tinham passado desde esse dia em que a vira a sorrir nos braços da madrinha. Nem quis olhar. Fechou-se em casa.

No início ainda, a espaços, chegavam notícias: estavam bem, ficariam mais um ano ou dois. A menina já andava à escola. Ficassem pois tranquilos. Não sabiam escrever nem ler. Pediam a quem lesse, a quem respondesse. As cartas seguiam e, deixaram de ter resposta. Choraram a perda, a ausência. Filhos já criados, no ninho faltava sempre Luísa. Na mesa faltava sempre Luísa.

Nas tardes de estio, Alexandre olhava os ninhos de cegonha e, intimamente, recordava o seu. Faltava sempre um filhote, uma filhota. A dona das tamancas que estendia na palma da mão a Maria.
“… veja, menina. As tamanquinhas de Luísa. Gosta?...”

Jesuina pegava agora as batatas. Com o braço parado amparava-as contra a barriga e, com a mão esquerda descascava-as primorosamente.
“… tudo se faz, menina. Teria criado a Luísa. E não seria menos feliz que os outros”.

“…podemos voltar a escrever, que acha? Tentar saber deles. Gostava, Senhor Alexandre? …"
“… sim, tanto. Ela pensa, disseram-me umas pessoas que vieram de lá depois do 25 de Abril, que eram lá refugiados (é assim que se diz?), que ela, a minha Luísa, é filha deles. Que nasceu na Argentina. Tem o nome deles e nem tem irmãos. Nunca conseguiram ter filhos. Dizem que, não sendo rica, vive bem… eles, os padrinhos, morreram. Já não tem ninguém para além dos filhos e do marido. E, veja a menina, tem tanta família a minha Luisinha… pode escrever? Faria isso por nós, menina? Hoje?... Hoje mesmo?... Vou à venda comprar uma carta, quer?.
“ tenho papel, podemos começar?...”
Abraçou-o. Pegou num bloco e numa caneta e começou a escrever:


"Ponte de Sor, 30 de Setembro de 1978
…Menina Luísa, vai estranhar esta carta. Não me conhece, nem conhece esta terra pois não? Chamo-me Alexandre, tenho setenta e dois anos e sete filhos.
Tantos netos que me baralho com os nomes…
Somos uma família pobre, a minha senhora teve uma trombose muito nova. Coisas da vida, do destino. Deus é que sabe as provações que nos dá. E a nós cabe encontrar caminhos…

Gostava de lhe contar uma história, ouvi dizer que é professora primária.
Não sei se sabe dos ninhos de cegonha. Se já viu alguma vez cegonhas. Por aqui, menina Luísa, dizem que as cegonhas trazem no bico os bebés. Quando nascem crianças, aos irmãos conta-se que a cegonha, um pássaro migrante, trouxe de longe, muito longe, o irmãozinho que chega. E, claro, as crianças alegram-se com a chegada da cegonha. E dos manos, bem se vê.

Foi assim quando a menina nasceu. Era Primavera, os dias começavam a aquecer. Eram as suas irmãs mais velhas, de poucos anos, pouco mais de meia dúzia, que iam ao rio lavar as suas camisinhas. A senhora sua mãe estava acamada (melhorou depois, graças a Deus). Era a sua madrinha quem nos ajudava a embalar o seu berço. Um dia, Luisinha, vocemessê fez o seu primeiro voo. Dizem que de avião. Nunca andei em nenhum nem quero andar… só queria que vossemecê um dia, se pudesse voltasse a este ninho que a espera: a sua casa, os seus pais, os seus irmãos … a sua terra e visse ninhos de cegonha…

Somos muito agradecidos aos seus padrinhos, que vossemecê cuida de serem seus pais, por a terem criado, educado, amado. Que a alma lhe esteja em descanso. Queremos que os guarde sempre no seu coração de filha. Mas nós, menina Luísa, é que somos os seus verdadeiros pais. Eu e a sua mãe, Jesuína. E os seus irmãos e seus primos, todos nós, somos a sua família verdadeira. E nunca a esquecemos.

Perdoe-nos por a termos deixado partir. Por agora não sermos capazes de ficar calados. Nada queremos de si, menina, não tema. Temos o pão de cada dia, que nos basta. Quanto a mim, apenas quero que receba estas chinelinhas que são suas… têm menos dois anos que vossemecê, faça-lhe as contas…

Receba um respeitoso beijo deste que se assina, Alexandre, seu pai. "


Luísa recebeu a carta. Levou meses a responder mas respondeu. Manteve anos a fio correspondência com os pais, até à morte de Alexandre. Mandou-lhe fotografias dos filhos e dos netos. Aprofundou as suas raízes. Mas nunca quis visitar os pais, nem o País. Por fim, após a morte de ambos, deixou de responder aos irmãos… na última carta dizia-se “filha única”.

Quatro gerações depois de Maria Luísa, uma sobrinha-neta nasceu e tomou o seu nome. Voará brevemente, desta vez no colo quente de sua mãe rumo ao frio da velha Europa…

A placa indicava agora a saída para Montemor. Para trás, os ninhos de cegonha.
Luísa…

terça-feira, 25 de novembro de 2008

"Maria Clara ou a Monalisa"

Um par de olhos pardos desfechou a porta. Tímida encarou quem chegava. Num sorriso entre o afável e o esquivo, franqueou-lhe passagem. Sabia ao que vinha, sabia quem era. Vencido o degrau descendente da soleira, a porta de ferro. Descobria-se a entrada, um espaço acanhado. Uma talvez marquise, um talvez pátio interior, uma talvez casinha de entrada, como é vulgar chamar-se na aldeia. Um misto territorial, um “sei lá” que dava acesso, à esquerda a uma casa de banho construída, concluiu, anos, muitos anos depois da casa propriamente dita. Seguia-se a cozinha. O poial à direita, ao centro a mesa de fórmica verde, pedra de mármore por cima, dois pares de bancos de pernas enferrujadas e assentos quadrangulares. Uma jarra com flores de plástico em vários tons desbotados compunha o espaço.

Sentiu-se invasiva. Estranha ao todo do habitat e, contudo, paradoxalmente confortável.

Os olhos pardos mediam-na de alto a baixo, menos tímidos, mais afáveis. Foi avançando. Mesclados, os cheiros, inundaram-lhe as narinas, oriundos da casa de banho “…desculpe, estava a fazer as minhas necessidades …”; da máquina de lavar roupa que rodava a custo o tambor e se adivinhava cheia, cheia demais. Das traseiras da mesma, donde subia contra os vidros semi-bolorentos uma fumarada de vapor. Trabalhava a mais de setenta graus “…tem de ser… para ficar desinfectado, não é assim?...”; das torradas esturricadas que espreitavam da torradeira de inox dúbio; “… ai valha-me Deus… queimou-se o meu rico pãozinho todo… e como está caro…, valha-me Deus …" e logo de seguida, como se o discurso fosse um contínuo lógico " ...custa-me tanto a obrar, é um martírio, nem com chá lá vai… demorei-me demais que a conta, foi o que foi …"

Dito isto, avançava para a torradeira, sacava duas fatias quase trespassadas de negro, raspava-as para um prato de bordas desbeiçadas numa tentativa inglória de lhes devolver a tez dourada , enquanto balbuciava … “valha-me a santa, valha-me a santa senhora D’Alcamé… hoje só bebo café ao dejejum, tá visto…nem lhe ofereço, claro, não está em condições …”.

Abanou a cabeça, agradeceu a compreensão com um sorriso. Adiantou assunto:
“...está lá dentro. Por aqui Senhora Doutora… o meu Fausto Humberto está lá ao fundo do corredor, pois onde devia de estar?... deitado, sempre deitado… se não se mexe. Só grita por mim todo o santo dia, faz-me a cabeça em água, ai, valha-me a Santa … será que aguento isto muito tempo, será que Deus nosso Senhor me dá forças para esta cruz?...”

Flávia seguia pelo corredor pouco iluminado dois passos atrás da sua interlocutora. À sua direita vários quartos, de luzes apagadas, deixavam escorrer a claridade vinda a nascente dos tapa-luzes semi abertos. Enquanto avançava, espraiava o olhar pelos espaços tentando medir o grau de dependência da família, o grau de conforto e de necessidade. A casa em si, de pinturas meio desvanecidas, parecia-lhe já ter vivido melhores dias. Sem luxos, tinha contudo sinais de que, talvez na década anterior, a família que ali morava vivera de forma desafogada. Mobílias simples, mas de boa madeira, alguns bibelôs de porcelana, rendas por sobre as cómodas e mesas…
“… claro que terá força, D. Cesaltina. Sei que é uma mulher de armas…”
Não a deixou continuar…
“… isso era dantes, Senhora Doutora. Dantes é que não me temia a canseiras nem a coisa nenhuma… antes dos desgostos da vida, dos desgostos dos filhos, do acidente do meu marido … dantes, quando depois de um dia inteiro na máquina de costura ainda vinha a correr fazer um manjar dos deuses para o Fausto, por via dele nunca me botar defeitos… um homem conquista-se pela boca, sabia? O meu Fausto sempre foi homem de comer bem. E modéstia à parte, cozinheira de mão cheia eu sempre fui. Fazia-lhe umas papas de milho como só eu sabia… com um segredo só meu. ...

Sorria. De pardos agora os olhos azuleciam num azul ternurento, algo matreiro … "...comia-me as papas nos miolos era o que era, que matreiro era ele. Matreiro e mulherengo, pois então… e isso ele não perdeu de mão, senhora doutora, naquele estado e não se cala… ai se soube-se, se a senhora soube-se da missa metade, haveria de ver que tenho razão. Dou em doida, ó se dou. É uma dor só. Ali, naquele estado e só fala nela….

Flávia não entendia a dimensão do que ouvia. Olhava agora Fausto deitado na sua cama de grades, sobre o colchão anti-escaras. Uma trombose colocara-o em dependência total. Sem controle de fezes e de urinas, sem controle de movimentos. Acamara. Totalmente dependente, nem sequer conseguia alimentar-se sozinho. Portador de Alzeimer, baralhava o discurso e os tempos, repetia-se ou ausentasse por horas a fio. E, quando voltava, não raras vezes lhe assolavam ventos de ternuras, doutros tempos, doutras viagens. Camionista de profissão vira muito alcatrão Europa fora. Bebera em muitas bicas de beira-estrada. Tomara muitos “porres” da vida, como se dizia por ali. Em casa nada faltava. Nem dinheiro, nem sequer atenção aos seus. À sua mulher. Não se gabava das conquistas, isso jamais. Mas que as tinha, tinha… “um homem não é de ferro, sabe, e elas gostavam de lhe dar trela …um belo homem, era o meu Fausto, sim senhor… fechei sempre os olhos, que as tivesse e lhe fizesse bom proveito, mas que nunca as nomeasse na minha presença e olhe, é isso que faz agora. É disso que mais me queixo. Mais do que estar aqui presa vinte e quatro horas por dia, mais do que não ser senhora de fazer nada fora de portas – tenho de o tratar, pois claro -, mais do que tudo, sabe, mais do que tudo, o que me custa, o que mói é esta lamuria dele sempre a chamar por ela … sempre. Chega a chorar por ela o meu Fausto.”

Ia anotando mentalmente o que via. O que ouvia. Tentava avaliar do estado psíquico daquela mulher. Até onde tudo aquilo não passaria de alucinação. Sabia que em certos casos o Alzeimer baralha, confunde. Mas também sabia que, se baralha o presente, o passado é o que se esquece mais tardiamente… por quem chamava então Fausto? Por quem delirava? Sentia agora frio. Um frio incómodo, como que uma mão de gelo sobre o sol da manhã. Temia a verdade. Que verdade?...

A resposta, como que predestinada, chegou naquele instante, pela voz do doente. O olhar ausente fixava-se num quadro com a Monalisa, uma estampa já descorada como todo o resto. De grandes dimensões, enfeitava a parede em frente à cabeceira do doente. Era ali que o seu olhar repousava… Duas lágrimas escorriam-lhe avultadas as faces magras.
“… Maria Clara, Maria Clara, meu amorzinho, vem cá. Vem dar beijinho ao teu Fausto, que chega tão cansado… Maria Clara, Maria Clara, onde estás? Estás a rir de mim, Maria Clara? E não sais dai? E não me abraças Maria Clara? Não me abraças? Tanto caminho que fiz até aqui só a pensar em ti… Maria Clara, sou eu, Maria Clara, pois tu não vês?, não me vês? … ai, Maria Clara, como me deixas triste. Olha para mim Maria Clara, meu amor, meu amorzinho… sou a Fausto, o teu namoradinho, bem sabes … ai, Maria Clara…”...

Na dor da perda continuada debatia-se em busca de movimento num corpo que não lhe obedecia. Flávia olhava Cesaltina que chorava de mansinho. Abraçava-a, afagava-lhe o cabelo grisalho. Não encontrava palavras. Não sabia que dizer, em rigor.
“… D. Cesaltina, não valorize. O seu marido está a falar com um quadro, não com uma pessoa…”

“… não me diga nada, Doutora. Ele ainda a guarda, sabe? Do meu nome já quase esqueceu e do dela? Ela, a Maria Clara, ela (nem sei quem é), é que dorme com ele, é com ela que ele sonha. É com ela que morrerá, tenho um pressentimento … e, sabe, isso é que me doí. Afinal, que importa uma vida inteira de desvelos se para ele só existe um ser? Se nem me reconhece mais… chama por mim, sim, mas é para o tratar. Que para amar, para falar de amor, a chama e a chora a ela… e, sabe? Apesar disto tudo, gosto dela. Gosto, sim. Porque ela o mantém vivo para mim. Ele vive na ilusão que ela um dia sai do quadro e o abraça. E por isso não aceita a morte …”

Olhava agora os três daquele quarto. “Maria Clara” continuava enigmática a sorrir do alto do seu pedestal. Fausto, exausto pedia água. Cesaltina, molhava-lhe delicadamente os lábios com um algodão embebido “para não se engasgar, depois dou-lhe água… primeiro que se acalme…”. Tudo era silêncio. Tudo era branco e sombra. Sombra e branco...

Por fim, o tambor da máquina, num grande estrondo, entrou em centrifugação “aquela máquina um dia destes dá o berro, ó lá se dá, e ai é o cargo dos trabalhos…”.

Cesaltina fungava, limpava as lágrimas e o pingo do nariz à orla da bata de xadrez e avançava rumo à cozinha.
Enroscada em si, no casulo das suas emoções, Flávia procurava o fio da meada. Ao que viera? Já nem sabia…
“volto amanhã, posso, D. Cesaltina?”
“volte sempre … hoje não consigo falar com a senhora, talvez amanhã. Agora vou estender a roupa, que o sol está duvidoso… ainda chove e a roupa nem seca… volte amanhã, se faz favor …”
Saiu. Já na rua, procurava na paisagem vestígios de Maria Clara. Quem fora em rigor “Maria Clara”? Ao passar ao rés da janela do quarto julgou ouvir de novo os brados de Fausto:
“Maria Clara … Maria Clara, meu amorzinho … que saudades nossas, meu amor …”…

Voltou dias a fio. Falou com Cesaltina, entendeu Cesaltina... "ninguém é de ninguém, D. Cesaltina, sabe?...".
Sim sabia ... Mas ela só fora de Fausto. Só dele ...

***

Fausto foi a enterrar faz tempo. No fundo do cemitério diz quem viu, um vulto de mulher. Um sorriso enigmático. Um ramo de rosas chá. Dizem que Cesaltina num acesso de raiva apunhalou a Monalisa… Dizem! Diz-se tantas coisas …

sábado, 22 de novembro de 2008

Escolhera

Escolhera!

Escolhera não se deixar morrer como boneco empalhado, não se permitir falecer por dentro quando tudo em si falava a linguagem do desejo, da ardência e da volúpia. Quando, ao acordar sentia a tumescência do sexo hirto, e, ao lado, dormia um outro corpo, a sua companheira de uma vida inteira na placidez dos anjos eunucos, assexuados. Sentia na pele a necessidade absoluta de corporização dos seus instintos. Sentia necessidade da partilha, de comunhão de pele e sal. E, contudo, escolhera.

Escolhera …

Amava-a. Não duvidava disso. Não em qualquer instância, em qualquer capítulo da sua pródiga imaginação. Nem sequer ai, duvidava. Amava-a, com a mais inteira certeza, talvez agora como se amava uma criança, que, por indefesa, frágil, se deseja proteger até ao fim. Mas que, porque criança, amamos doutra maneira.

Claro que não fora sempre assim, tempos houvera em que os seus corpos se fundiram na voz da carne, na voz do cio, do gozo e do sobressalto. Tempos em que as noite eram pasto incandescente de loucura e, as manhãs os acordavam sem sequer terem adormecido… Mas isso fora há tanto tempo… tanto tempo… Aos poucos, a rotina do dia a dia, como erva daninha, havia minado os caminhos, o coração já não falava a voz da boca e vice-versa. E o corpo, esse, esqueceu-se de como era amar a carne daquele corpo em braseiros incandescentes. A febre passou. Tudo passa. A paixão passara…

O casamento, lera em algum lado, era uma canga. Um contrato… um contrato social e socialmente necessário. Todavia, os afectos, esses, sabia largamente, não se regulavam por decretos … a lei era outra, era a da química, da matéria pulsante, iónica e ionizante … a propagação das ondas, como a que sentira na noite anterior, quando falara com Marisa, enquanto Constança dormia placidamente na sala ao lado … naquela noite, como em tantas outras, em que a televisão exercia sobre ela o poder de um berço… e o deixava abraços com uma solidão cada vez maior. Física, psicológica, emocional…

Vitoriano olhava agora o tecto e, a luz difusa da realidade, da crua realidade do momento, projectava-lhe o filme da própria vida. Da sua vida. Tão cheia e tão vazia… Sentia o estômago embrulhado no orgânico das suas próprias emoções. Cena a cena, o filme passava, lento.

Outros corpos, outras camas… outras mulheres que amara e que guardava, eram já memórias difusas. Chamas que lhe afagavam a pele ainda. E que a incendiavam no rubro da amência. Amantes …

Em certas alturas, confundia-lhes os gestos, os afectos, mistura-lhes os atributos, as formas, os modos de e como amara, a cada uma. E como fora amado. Noutras, não tinha absoluta certeza se as possuíra de facto ou efectivamente, as possuíra só em sua mente. Acolhia-as, de qualquer forma, no mais secreto de si. E, desta espécie híbrida, biblioteca babilónica de memórias, alimentava o seu presente.

Escolhera. Escolhera permanecer com Constança, a esposa que um dia aceitara em altar, com quem gerara filhos. Com quem dividira uma vida. E, contudo, a escolha era uma espécie de pau de dois bicos. Por um lado, a estabilidade, o sossego, o calor de um lar, de uma família, a garantia de uma companhia a cada final de tarde e, por outro, em especial agora que a aposentadoria chegara, uma canga, uma prisão sem grades, que o impediam de dar um passo sem que dele tivesse de dar contas. Sentia-se algemado dentro de um corpo que exigia, ferozmente, liberdade. Um corpo que, porque livre, não aceitava sequer o BI da sua idade… E uma mente demasiado lúcida para se deixar aprisionar sem rebeldia. O conflito era eminente. Fustigava-lhe a carne, em chicotadas ferozes.

Agora não havia reuniões de negócios, não havia almoços com empresários, não havia as mil razões com que sempre havia justificado as suas ausências, os atrasos. Agora todos os tempos eram tempos de Constança. Do nascer ao fim do dia. De Constança eram também os olhares que o vigiam afincadamente. Do teclado ao telefone… Constança era uma mulher dependente de si. Ao seu absoluto cuidado… (era esse, pressentia, o seu “truque” para o manter cativo. Declarar-se dependente. E, porque a amava, era seu “escravo”… do supermercado ao cabeleireiro... seu motorista, seu acompanhante).

O coração batia-lhe desenfreadamente… A noite de lua cheia trouxera-lhe a voz dos lobos de alcateia. O desejo, a fome de um corpo febril de uma mulher. O enroscar-se nas coxas de uma mulher… o suspiro saciado de um mulher, em orgasmos de si. De ambos. O adormecer no após o acto, de corpos suados e extinguidos. E voar de novo, nas asas do desejo desperto a meio da noite…

Vitoriano queria amar de novo, sonhar de novo, e novamente. Esculpir-se labareda em fogo nos braços duma mulher … Não de uma mulher qualquer… não de uma mulher paga para o “amor”, de todo não, mas daquela por quem agora o adolescente ser que o habitava se sentia perdidamente atraído.

Não, não se diria apaixonado… não diria que a amava (ou talvez sim…), mas, indiscutivelmente, a cada esquina do seu dia, a sua imagem, o seu olhar, a boca e, até o balançar de ancas que nunca vira, eram devaneio, tentação, arrepio de pele, suor frio… calafrio em tibiezas de pernas, de joelhos.

O sexo explodia-lhe agora por sob o pijama de verão. Vitoriano sentia uma lágrima a percorrer-lhe a face… e via-a: a sua infanta … tão mulher e tão criança. Os quase vinte anos de diferença não se constituíam obstáculo. Recordava um livro que lera em tempos em que, tal como entre eles, de idades diferentes, o amante chinês ensinara a sua amada a amar … Vitoriano intuirá desde o primeiro instante que Marisa não sabia amar. Que, por detrás daquela imagem de mulher bem sucedida se escondiam fraquezas e fragilidade de afectos. Fossem quais fossem. Haveria de as descobrir, de as desvendar. E, se lhe fosse dada a ventura de a tomar sua…ensiná-la-ia. E reaprenderia ele mesmo tudo de novo.

Cobiçava-a, desejava-a, desde o primeiro dia em que ouvira a sua voz do outro lado da linha. Uma conversa de circunstância, em resultado de um assunto técnico e rotineiro. Fora a cavilha que detonara a bomba. Nele (e queria acreditar que nela, de igual modo).
Desde então, procurava todas as razões para lhe ligar… falavam amiúde, sempre que lhe era possível.

Com a sua aposentação recente, as coisas haviam-se complicado drasticamente. Todavia a semente já estava lançada e, ambos, para além das questões técnicas, encontraram razões para manter contactos … eram amigos, afinal… íntimos já!

Fantasiava cada momento em que a via, em que a tomava, e, num ímpeto de loucura e de paixão, indiferentes à conjuntura, se escorreriam na voz andaluza dos corpos alagados, em lutas de titãs, de espadachins e de cruzados …num corpo a corpo, abraçados. Em que as suas bocas, ávidas, se fundiriam, reconhecidas, em beijos insaciados. Em que as salivas, misturadas, seriam alimento das suas insípidas vidas… as de ambos.

Nesses instantes, incontido, marcava o número da sua “amada” e, como um miúdo enamorado, enviava-lhe mensagens, ora ternurentas, ora mais audazes… e rezava ao senhor dos “naufragados” para não lhe causar problemas. Depois, sorria, reconfortado. Sabia que um dia, num qualquer dia, de que não via a hora, na demora, aquela mulher que escolhera, aquela mulher que ainda nem sequer conhecia, ficaria tatuada na sua pele. Pressentia, que para sempre. Para sempre! Era a sua escolha! Marisa era escolha sua.

De novo lhe vinha a memória cada palavra trocada, cada ternura incendiada no não dito, no sugerido, não proscrito e proibido. Marisa era uma mulher casada. E, tal como ele, vivia uma relação esmaecida. Desbotada em fímbrias de tempo ausente. Todavia, nunca até então passara em sua mente ver-se de novo enamorada… amada, ainda que de uma forma diferente. Marisa não fugira. Aos seus "ataques", não fugira. Ficara. Ficara suspensa da sua voz pausada, da sua sabedoria arrecada ao longo duma vida inteira. Assustada, contudo. Sabia-o senhor de muitas viagens e, porque o sabia …assustava-se. Mas, a cada momento, a cada frugal instante em que as suas vozes se abraçavam em ondas hertzianas, mais se sentia intimamente ligada a um ser que desconhecia. E, ansiava, e esperava expectante, um novo toque, um novo momento. E a espera era-lhe cada dia mais difícil de suportar. Não se entendia. Não se conhecia nem reconhecia a actriz em que se estava a tornar. Num palco da sua própria vida.

Introspectivamente, admitia o enlevo, o fascínio que sentia. E, estranhamente, não se coibia de o sentir. Como se não houvessem razões, normativas ou sociais, que a pudessem julgar. Apenas respondia ao seu coração e, esse, desejava dar a Vitoriano ternura, afecto e, acima de tudo, paixão … a paixão que sentia no calor de sua voz. E da qual, ele lhe falava sem pudor. Sim, desejava-a. Amava-a, dizia-lhe, vezes sem fim …

Marisa sorria, desmistificava, tentava que não se envolver, não o envolver. Colocava ponderadores nas palavras...Tentava, a algum custo, colocar água numa fogueira que, cada dia mais, ameaçava incendiar os astros mais distantes … Da terra ao cume do universo.

Temia sofrer, mas, particularmente, temia que Vitoriano sofresse. E, não obstante, sentia que, também ela o escolhera. Escolhera-o para que ele, e só ele, a conduzisse a ela mesma. Ao que não sabia de si, ao que nem sequer suspeitava … e, a passinhos cautelosos, sentia-se guiada. E ousava. Desafiava o destino e era leve em suas mãos… fosse o que fosse que o vocábulo "destino" significasse.

No canto do cisne, como ele mesmo lhe dizia, dar-lhe-ia de si, o melhor presente - dar-lhe ia o mar, o mar que o inundava em vagas de desejo, dar-lhe-ia a serra, a serra donde um dia viera, dar-lhe-ia a criança que ainda guardava dentro de si, na pureza de um coração que se não aquietava... dar-lhe-ia o sonho... - e ela, na sua ingenuidade, acreditava que, ele, o “sarraceno infiel”, a amaria (e)ternamente …

Escolhera.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Chamemos-lhe Paula.

Chamemos-lhe Paula. Sentei-me à sua frente na sala de refeições da Instituição. Hora de pequeno-almoço. Hora de “descanso do guerreiro”, hora para quem, tendo iniciado a jornada muitas horas antes, nas labutas caseiras em sua própria casa, a continuava ali, na prestação de cuidados formais a idosos.

Sentei-me à sua frente, não sem antes ter enchido, para mim própria, uma chávena de vidro de café e colocado dois mini-croissant, ainda mornos, num pires - dos mesmos que havia sido servido aos idosos, minutos antes. Estávamos sós.

Paula molhava o pão numa chávena de leite com café (mais leite que café, como me referiu … “não posso abusar do café”) . A falta de intimidade entre nós, “obrigou” a que se justificasse:
- Não me leve a mal comer assim … é como me sabe bem…
Sorria, num sorriso entre o desafio e a retracção. Decidi usar o tempo e o assunto para o diálogo – afinal a formação não se faz somente em sala e disso faço gala em ser peremptória. A formação é um contínuo entre o que nós, formadores, somos no dia a dia, o modus operandi como nos vamos revelando, como nos projectamos em espelho no quotidiano institucional, os conteúdos formais transmitidos em sala e, não menos importante, a formação que passa através dos diálogos informais, como aquele que ali nascia …
- De todo não, Paula. O modo como cada um aprecia a comida, desde que circunscrito às regras básicas de higiene, não me ofende, não me incomoda. Se gosta de molhar o pão no leite, sinta-se à vontade …

Olhou-me de frente. Olhou-me nos olhos, como que adivinhando que, se aquilo eu não questionava, alguma coisa lhe iria dizer. Não se enganou. Continuei.
- … na verdade, Paula, o que me incomoda são outro tipo de comportamentos (a Paula sabe do que falo), aqueles que, embora não os tenha feito por mal, não acrescentam bem estar aos que nos rodeiam …
- naquele dia estava enervada, Doutora, descontrolada. Mas já passou. Sou assim, o que tenho para dizer, digo. dito …
- não Paula, não pode ser, a Paula sabe disso. Existem momentos que são sagrados, aqui como ali, que é como quem diz, aqui nesta casa, como na sua casa, por exemplo. A hora das refeições, é disto exemplo, deve ser calma. Tem que ser calma. Isso não impede que possamos falar e, porventura, até não concordar… mas nunca devemos perder a noção de que, se estamos a trabalhar com pessoas – no caso idosos -, as nossas angústias passam para eles, e que estes, não sabendo a origem da discussão – como aquela entre si e a sua colega, no outro dia - e, não podendo intervir para apaziguar, ficam tensos e incomodados.
Afinal, Paula, todas vós sois a família de cada um deles. A que têm “mais à mão”. Aquela com quem convivem no dia a dia e, Paula, creia que se preocupam genuinamente connosco. Digo connosco porque os oiço a falar de mim: se me atraso na hora de saída e vou conduzir de noite, se, aos olhos deles, estou triste ou doente … tudo captam e tudo os preocupa. Dai que nos caiba a nós minimizar estas preocupações em suas vidas. Sublinho: somos a sua família afectiva, certo?...

Paula olhava-me com atenção. Sim, tinha razão, devíamos ter atenção ao modo como agiamos, mas essa de ser “família” é que não…
- Nunca colocaria os meus pais numa casa destas… e já disse aos meus filhos: - "se me colocarem num lar, mato-me". Um lar é o fim de tudo, de tudo … Jamais…

Desarmada com aquela súbita revelação tentei perceber o que me estava a ser dito. Então alguém que trabalhava com idosos, não desejava nem para si nem para os seus, a institucionalização, em caso algum? Não acreditava no processo? Não acreditava no quão de bom podem ser para alguém, o constante acompanhamento, os cuidados especializados? A medicamentação a horas, o asseio, o desvelo? Ou, no fundo da questão estavam valores ancestrais da família em que, o nascer e o morrer, eram actos íntimos e em que a cadeia de solidariedades começa e acaba umbilicalmente?...

Indaguei razões:
- Porquê Paula, que vê de mal numa casa como esta? Se aqui trabalha ...
- Trabalho e até gosto de aqui trabalhar... Tudo. Nem que não durma ou não coma todos os dias! A mim é que cabe cuidar de meus pais, como eles cuidaram de mim e eu cuido dos meus filhos. Sempre assim foi na sociedade, não foi Doutora? Isto são modernizes das gentes que só olham para o dinheiro, modernizes de sociedades consumistas, como dizem na televisão … só fui/vim trabalhar quando os meus filhos foram para a escola – trabalhava em casa; poupava o mais que podia. Não tinham três camisolas, tinham duas. Trocavam e eu lavava e andavam sempre limpos. A questão é que tinham a mãe por perto, tinham quem os tratasse quando adoeciam… a Doutora tratou os seus? E dos seus paizinhos, desculpe, tratou até ao fim? … Não pode, não é?... anda nesta corrida…? E isso, desculpe uma vez mais, traz-lhe felicidade? Mais felicidade? …

Paula sem saber tocava em todos os bastões dos meus sentimentos. Nas memórias mais recentes e noutras mais antigas de tempos em que, com lágrimas nos olhos, deixava meus filhos nos infantários e partia à luta … e quando voltava, tardiamente, os encontrava tantas vezes já só com uma auxiliar … Por quem corria? Por eles ou por mim? Que buscava em rigor? O bem-estar deles ou a minha realização pessoal?...

Paula continuava a molhar o pão no leite quase no fim. Quanto a mim, devorava o pequeno-almoço sem lhe tomar o gosto sequer. Em minha boca agora o travo amargo das incertezas.

Que sociedade é esta que nós, os técnicos, “defendemos” ou se não defendemos, não questionamos? Na verdade, há muito que se defende a permanência do idoso em meio familiar. Na verdade, qualquer um de nós sabe que, por melhor que seja uma Instituição (e tenho o prazer de estar a colaborar com uma em cuja a componente humana é muitíssimo valorizada), por melhor que seja, dizia, nunca será o ideal. O meio familiar, se possível, será, esse sim, o melhor espaço social e, porque não, emocional, para qualquer um de nós encontrar o dia derradeiro.

E, todavia, são as Paulas semi-analfabetas deste mundo que nos colocam perante cruas e amargas verdades e destas, a de que, em pleno século XXI, não nos educamos a nós mesmos no rigor dos valores. Na pirâmide dos valores ...

Destes, o primordial é sem dúvida, a constituição e manutenção de laços familiares sólidos, estruturantes, permanentes, assentes na disponibilidade, na busca da disponibilidade, para estarmos com os nossos filhos, para partilharmos afincadamente e dedicadamente o crescimento físico e intelectual de nossos filhos, de modo a que estes, uma vez adultos, não sintam eles mesmos dificuldades em nos acolherem o mais possível, dado que, interiorizada a mensagem, só em casos extremos equacionarão romper o tecido dos afectos….
Na verdade a institucionalização de um idoso é sempre a última das soluções. Há mesmo que modificar na base o que de errado encerra procurar fazer deste recurso o meio mais fácil…

Chamemos-lhe Paula. Por mim chamar-lhe-ei o sininho da minha consciência social …

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Lançamento de "No Princípio era o Sol"



___
A todos os amigos que de alguma forma se associaram a este evento (e tantos foram) e que, aqui e ali, divulgam o meu trabalho, um enorme bem-hajam...

Todos nós, os que escrevemos e publicamos gostamos de ser lidos. E, pese embora, muitas e muitas vezes optarmos por quando visitamos um blog não deixar qualquer comentário, o certo é que, se optei por dar este 2º passo no mundo da escrita, a todos vós o devo: As estatísticas, dos vários locais por onde vou passando, são indicadores do vosso carinho.

A mim cabe-me, a cada dia, tentar proporcionar a quem me visita, aqui e ali, momentos de descontracção e de bem estar. De emoções? Sim, claro. De reflexão? Sim, claro ...

Mas afinal não é de tudo isto que se faz o mundo?

Mel

domingo, 9 de novembro de 2008

Do lançamento ... agradecendo



Venho reconhecida agradecer a todos quantos me acompanharam no lançamento do meu livro. A todos quantos me dispensaram o seu tempo e o seu carinho no envio de mensagens, na divulgação do lançamento, etc.

Todavia, meus leitores, meus amigos, tal como me disse Xavier Zarco, poeta que me previligia com a sua amizade,

" editar um livro não se esgota na sessão de lançamento.É algo que se alonga no tempo, porque possui vida própria que vai muito além da editora ou do autor", e, existe uma razão de fundo que me faz desejar que a deste em especial, seja longa e muito intensa. Que este Sol se transmute em (Sol)idariedade.
Quem me conhece de mais perto sabe que desde sempre repito o seguinte pensamento, de autor anónimo "se não podes fazer coisas grandes, então fá-las de uma grande maneira". E, a grande maneira que conheço para se estar na vida é não ignorar, não fechar os olhos, é não avançar como se nada fosse.
"Vemos, ouvimos e lemos ... não podemos ignorar".
Porque existe quem de nós necessite, porque sendo pouco (tão pouco, imensamente pouco) pode fazer toda a diferença, porque desejo e luto por uma sociedade inclusa, vos peço ajuda para poder ajudar quem ajuda ...
"Ao adquirir este livro esta a contribuir com 10% do valor de capa para a AIPNE - ASSOCIAÇÃO PARA A A INTEGRAÇÃO DE PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS".
Preço de capa: 12 euros.
Local de Venda: Aqui
Grata.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

"No princípio era o Sol",8 de Nov., Sábado próximo...


Local: Salão Nobre do Paço do Sobralinho
Hora: 16H
Editora: Edium Editores
Com o apoio institucional da CMVFXira e JFSobralinho

Como chegar: A1, sentido Norte, sair em Alverca, tomar a Nacional 10, 1ª localidade à esquerda, sentido Norte (SOBRALINHO).
ou Nacional 10, sentido Norte, entre Alverca e Alhandra/Vila Franca de Xira, 1ª localidade à esquerda (SOBRALINHO).]
***

Meus amigos, aproxima-se o dia em que o meu novo livro nascerá.

Razões maiores me afastaram nas últimas semanas do vosso convívio. A vida, pese embora as perdas - irreparáveis no caso -, segue o seu curso. E eu, como os demais, não tenho mais que fazer que não dar continuidade ao traçado dum percurso. E porque dalguma forma sempre acreditei que o destino nos coloca em ombros a carga que podemos suportar, projecto agora o olhar no dia 08 de Nov. , conforme estava anunciado, na Sessão de Lançamento de "No princípio era o Sol" com a chancela da Edium Editores e que conta com o apoio institucional da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e da Junta de Freguesia do Sobralinho, como poderão ler em Comunicado de sua Excelência o Senhor Presidente de Junta, e com várias contribuições de amigos afectos a outras artes (dança, canto, declamação ..., etc.)

Sintam-se uma vez mais convidados. A vossa presença é-me muito importante. Afinal, quem escreve gosta de ser lido, tal como quem pinta gosta de ser visto, como um actor gosta de olhar a plateia repleta de gente. Se assim não fosse, a arte, seja qual fosse, não se exporia, ficaria nas catacumbas da escuridão.

Grata pelas manifestações de carinho, pela vossa presença em minha vida. Até breve.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

bicho-de-contas

Talvez hoje gostasse de ter escrito uma linha em teu olhar. Longa, contínua, como as que projectava quando, ainda criança, lhe ensinaram a manipular o tira-linhas e a tinta da china…
Destemperava o papel em borrões pretos e, um pouco a medo, persistia. Uma e outra vez. Era certo que a mão tremia, que as linhas teimavam em acompanhar o pulsar nervoso do coração. O medo do borrão. O preto do borrão. Continuava. Enchia o peito de ar, enchia o tira-linhas de negra tinta e, nos temores de menina em veste branca, tenaz, avançava. E por fim, linhas rectas e encurvadas, no rigor do esquadro e da régua-cobra, sulcavam determinadas o papel cavalinho a que estavam destinadas. As linhas? O papel? O papel, as linhas? Um binómio indivisível, do que se recordava...

Talvez hoje gostasse que lhe tivesses inscrito vastos horizontes em seu olhar… nem sequer corria uma aragem… estava serena e calma. Pálida, sorria. Sorria apenas …
Em frente, ao largo, no perto e no longe, o mar da palha … e o rio, e mais longe ainda a ponte e para além dela o Bugio (imaginava …).

Depois havia bancos de pedra, havia as riscas brancas e azuis, o azul do rio. O céu plúmbeo. Eram azuis ou verdes as caravelas nas pedras da calçada? E as sebes? Nesse instante já nada via e do que via, desfocava …

Sabe que chovia. A chuva lambia-lhe aguada a cara, os olhos, a boca… a chuva encharcou-lhe as botas, o negro das botas, e destas se tingiram de negro igual as pernas brancas (o borrão, o papel...); a chuva empapou-lhe as calças, gelou-lhe joelhos dobrados no cotovelo incerto do tempo. A chuva escorria agora, lenta, nas sancas das janelas...

Por essa altura, desalentada, enrolava-se em contas fortuitas de bicho-da-seda. E contas outras, de bicho-de-conta…

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

"marcos-falos" [republicação]

Enquanto viajava detinha-me sempre nos marcos quilométricos da estrada. Uma referência ao destino que, à falta de GPS, me ia conduzindo, dia após dia, a distâncias de mim (ou proximidades) na medida exacta que me aproximava do local para onde caminhava. No caso o espaço onde trabalhava à época, numa perdida aldeia Ribatejana, vizinha do rio.

Era Inverno, no seu início. Os dias estavam já pequenos, bolorentos e tristes. Os frios sentiam-se dentro e fora de casa. E nas almas; e nas palmas das mãos e nas espinhas/esqueletos e nos corpos. E nos corações… no meu, no deles…; no frio congelavam os sorrisos e os afectos. Como conchas, cada um a seu modo, engolia o molusco que o habitava, num processo de pré-hibernação. Envoltos em mantas, uma espécie de múmias vivas. Ali!

“O Inverno, Doutora, aqui é sempre muito triste, depois verá …”. Laura, a cozinheira foi-me adiantando logo nos primeiros dias que cheguei … Era então Verão, num Julho a torrar as uvas das vinhas circundantes. Num sol estuante e inóspito. Não saíam de casa; calor em demasia …, cansavam-se. afogueavam-se…, “...mas no Inverno então, verá… isto é um desconsolo. um dó de alma.”

Via-lhe a verdade do discurso no olhar e nos maneirismos do corpo. E temia que tivesse razão. Temia o Inverno, retinha estas e tantas outras conversas, retalhos amiúde com que ia construindo as mantas trapeiras da minha própria velhice, e que guardava, a contento, em baú de sândalo. Memórias que dançavam agora à minha frente.

Respirava fundo, bebia a estrada, focaliza os marcos. Concentrava-me nos pequenos paralelepípedos de topo boleado a emergir da berma, altivos … na estrada e na vida. Alguns jaziam quebrados no chão de alcatrão empapado pela neblina matinal, nalguns locais gelo, estado vítreo…

Um dia lera de um autor que, a ele, lhe pareciam falos. Falos decepados pela metade (mais ou menos esta seria a ideia, que não me consigo sequer recordar onde e quando a imagem de “marcos-falos decepados” entrou na minha caixa de “parafusos desapertados" …). Pouco importa. Incorporou-se em mim e, em ausência exacta de referência bibliográfica, perdura per si a imagem: “marcos-falos decepados” no rubor da tumescência, no ardor de uma qualquer paixão, ou à falta desta, de excitação induzida, vulgo masturbação.

Viajava, conduzindo maquinalmente e, naquele dia, mais que em qualquer outro, os marcos e as conversas da tarde anterior com Bonifácio, queimavam-me os neurónios, ainda semi-despertos, à falta do café da manhã, e na falta de respostas sociais e socialmente certas.

O que era o certo? O que são as (in)certezas livrescas perante as realidades pungentes da vida? O que é lá isso de “envelhecimento activo?”. Afinal não era esta a temática que me havia num qualquer dia da minha própria utopia, proposto a estudar? - “Envelhecimento activo”… a que níveis? Com que níveis e grau de satisfação? Em que condições? … “marcos-fálicos” …

“...menina, somos velhos mas não somos capados como os porcos, nem sequer nos cortaram o pirilau, entende …, mas olham-nos como se fossemos. Para a maioria desta gente, ser velho é o mesmo que perder tudo. Perder a identidade, perder a vontade, perder a dignidade, inclusive perder o interesse por uma mulher …somos quase robôs, autómatos… “vá para ali, chegue-se para acolá” … lavam-nos e vestem-nos como se fossemos bonecos desarticulados, e, tantas e tantas vezes não entendem que ainda somos gente…”

Dizia-me tudo isto num rompante de palavras, como se, se o não fizesse, perdesse definitivamente a oportunidade de o fazer e, simultaneamente a coragem de, num qualquer dia, numa qualquer tarde, abordar o assunto. Dizia-me enquanto bebia o sal das lágrimas que lhe incendiavam a espaços o olhar mortiço. Dizia-me enquanto as face enrugadas, vincadas aos ossos e aos registos dos tempos, se enrubesciam de genuína vergonha.

Jaime olhava-me fixamente, tentando entender sinais de mim, ao mesmo tempo que olhava, estupefacto, o seu companheiro de quarto Bonifácio, sentado na cadeira a seu lado. Nos sofás em frente, outros idosos residentes olhavam distraidamente o ecrã da televisão, ou, em alternativa, dormitavam… não falavam, quase que não comunicavam entre si. Eram assim os dias de Inverno de que Laura me falara nos primeiros dias …

Bonifácio agarrava-me o braço num gesto de quem quer uma bengala, de quem quer da parte de alguém a quem chama de “Doutora” a afirmação lógica e científica do “não despautério” que acabava de dizer …, então não lhes diziam sem dizer que já estavam meio-mortos?

Agarrei-lhe a mão. Transpirava abundantemente, gélida. Olhei-o nos olhos, não sabia que dizer. Envolvi-o num afago de olhar apenas. Não lhe disse nada… Continuou:

“...sabe, a minha mulher que Deus haja – que a tenha em bom descanso, que já se me foi há quase dez anos -, era uma companheira e pêras, percebe Doutora? Entre nós havia amor, e, nem a Igreja, nem o Senhor Padre (o que morreu, bem se vê...) nos viesse dizer o que, entre a cal das nossas paredes, podíamos ou não fazer… éramos crentes a Deus e casámo-nos e amámo-nos à luz dos Sagrados Mandamentos mas também muito para além do que nos queriam fazer querer ser a palavra de Deus para o matrimónio: gerar família, procriar, cuidar dos filhos e da fé...

Só para procriar? Não, Senhora Doutor (sorria)…, sempre que podíamos, ouviu? Às vezes – tanta vez -, vinha numa corrida à hora da janta aqui a casa por via de poupar a minha esposa a canseiras de ir levar-me a merenda ao campo. Vinha àquela casita além, que a Doutora sabe, onde antes vivia, e, perdão da palavra … que se lixasse a sopa, porra… que se lixasse ...

Comia um naco de pão seco na volta com um punhado de azeitonas … a gente a modos que se devorava um ao outro…. Ai menina … só se perderam as vezes que não foi assim (sorria de novo…); fui feliz menina, com perdão, Senhora Doutora, mas e agora? Como quer que me resigne a esta solidão, a este desamparo? Não fiz voto de castidade, não sou padre e mesmo eles, vossemecê acredita que são castos? Ora, ora … Valha-me Deus que tudo superintende… nos céus e na terra, nos mares e na guerra santa...

Não acha normal que ainda sinta vontade de amar, de namorar outras mulheres? Que ainda sinta vontade de abraçar e beijar outras mulheres? Ora diga lá, que a senhora deve saber se, por um homem ser velho – tá certo, tenho quase oitenta anos -, não tem coração? …”

Bonifácio não sustinha as lágrimas. Tremia. O lado esquerdo estava-lhe paralisado de um AVC, ia para mais de seis anos, mas em termos cognitivos e de memória estava lúcido. Gastava o tempo a fazer palavras cruzadas. Tinha feito o exame da 3ª já homem, à luz do candeeiro de petróleo - contara-me noutra ocasião. Ao lado Dulce, sua mulher, que o acompanhava noite a dentro enquanto remendava as calças farpadas dos trabalhos do campo e, que, nem sempre entendera aquela vontade de conhecer letras. Queria que se fosse a deitar. Entende, menina... perdão, Doutora? ... mas que mais tarde, quando ele já sabia ler e ela não, era pelas letras dele que ouvira lindas histórias…

“...contei-lhas, Doutora. Li-lhe as Farpas, O Cavalo Espantado… conhece, Senhora Doutora??? Ela gostava tanto... Nunca aprendeu as letras, nem grandes nem pequenas, não andou à escola em menina, em adulta não tinha tempo, pensou aprender quando fosse mais de idade ... e depois padeceu de cataratas ainda menos … ”;

Homem capaz de enumerar factos e datas, suas e da sua aldeia, sem vacilar. Capaz de ordenar rigorosamente quem havia chegado e partido do Lar depois de para ali ter entrado… A biblioteca a que as funcionárias recorriam quando queriam confirmar este ou aquele dado… mas, pese embora esta realidade, eram, tantas e tantas vezes, ainda que sem consciência do quanto o magoavam, elas as primeiras as que, em surdina, censuravam os seus olhares sobre uma mulher quando saiam em passeios, por exemplo. Na Festa da Flor, no Magusto... escassos momentos em que se viam rostos outros que não os dos residentes como ele e os delas próprias a quem guardava respeito como se fossem suas filhas. Suas irmãs. Sem sexo e sem corpo. "sabe Senhora Doutora, nas noites, nos turnos, oiço-as ali na sala a falarem umas com as outras, a rirem das vidas delas. Fico feliz, são a minha família agora ...". Mas troçavam em surdina, sim... E, disto Bonifácio, como de todas as outras realidades, se apercebia e com isto se magoava. E nada dizia. E tudo calava. E morria todos os dias um pouco. Agora estava Lícinia no Lar. Tinha sido sua parceira na dança no Rancho de Folclore Espigueiros do Tejo. Agora o seu coração palpitava de novo. Agora queria dar-lhe a mão e levá-la a ver o jardim em frente… e, porque não, ler-lhe a Morgadinha dos Canaviais, ou o Crime do Padre Amaro ...

“Acha o quê, Senhora Doutora? Que pensa? ...Bem sei que estamos os dois aqui, que não devemos dar maus exemplos … mas gosto dela, Senhora Doutora… vossemecê que me diz? Diga-me por amor da Santa Senhora D’Alcamé… é mau um velho ainda amar? É?..”…

“marcos-falos”… Espigueiros do Tejo, 1Km. … A quantos o fim da estrada, Bonifácio?

domingo, 21 de setembro de 2008

Entarde(ser)

Entardecia lentamente. Mau grado tudo fazer para manter janelas abertas a nascente, verificar o nível dos afluentes sobre o seu espaço primordial, lançar redes às lampreias barrigudas que subiam o rio em busca da desova, às tainhas cabisbaixas com olhos de carneiro mal morto que lhe pediam acalentos de navalha, afagos de vísceras, o facto era que o o Ti’Manel dos Anzóis, assim conhecido nas redondezas da Vala, se sentia a entardecer todos os dias… como o sol poente em busca do bucho do mar.

Naquelas tardes em que Florival não o acompanhava na jogatina das damas no café do Teixeira, em que nem o Bartolomeu da fruta aparecia para dar fé do modo como, nos casais a norte do Tejo se anunciava e entregava às viúvas desvalidas de cio ou às moçoilas que, castamente ainda mantinham esperanças secretas de que, nos seus mais de setenta anos, de artroses e má vida, se aninhasse definitivamente na plumagem fulgurante dos seus desejos e que lhes “ensinasse as artes de embelezar maçãs gold”, naquelas tardes, dizia, Ti’Manel colocava a boina preta gasta e surrada das mãos e das ventanias. Avançava a beira rio, em passos lentos por entre juncos e rãs ensurdecedoras.

Era debaixo de um choupo centenário que fumava o cachimbo das memórias – as vividas e as inventadas -, era ali que recordava e desfolhava, uma a uma, todas as suas conquistas, todas as suas amantes…, e, não raras vezes, como quem escreve uma lista destinada a um qualquer evento social, no receio de não querer esquecer alguém, puxava de um bloco de notas quase gasto, tão surrado como a boina, tão desbotado como a sua pele rugosa, de um lápis com pouco mais de três centímetros que afiava a canivete e anotava os nomes, as alcunhas, os títulos nobiliários, destas e daquelas e daqueloutras, que, desordenadamente, lhe vinham à memória.

Não sabia de “Excel”, claro que não, isso de computadores era coisa dos tempos modernos, do neto que andava nas “Lisboas” e “estudava nos computadores”, como o da canção da rádio…, mas sabia de traçar uma espécie de rede (ou grelha), onde, à direita de cada nome, colocava uma data, um atributo…

“Em terra de toiros, quem não é toureiro é toiro … ou lá se é, ou lá se é…”, ditote antigo que, vezes sem fim, no carrascão a escorrer a garganta seca, soltava de rompante… Coisas dos galegos, que vinham do Norte à apanha do tomate e que, em jeito de provocação lançavam aos naturais da Lezíria.
Se não era toureiro, nem campino..., mas toiro não seria… então era o quê?
Levantava a boina, coçava a cabeça e detinha-se em conjecturas … Olá, lá ...

Recentemente ouvira falar de um livro na rádio em que o autor referia que escrevera sobra “encornados, encornadores e pássaros avisadores …”. Ora bem! Nem mais. Estas três categorias eram-lhe familiares. Pássaros avisadores. Grilos falantes. Aqueles que não queremos ouvir mas que nos livram de tantos dissabores… Como o da história do Pinóquio, o boneco de madeira. Fora o caso do Pinóquio ter escutado o seu “grilo falante” e, certamente não iria parar à barriga da baleia…

No entarde(ser) das sua memórias, Ti’Manel dos anzóis, começou a riscar, de cima para baixo a sua lista infinda de mulheres… Ana Madalena, Beta do Sino, … Flávia dos cestos, Florivália, Graziela, Micaela …, .
Parava, respirava fundo, bebia o rio e as lezírias, decalcava-se em regulações temporais, nos suores que lhe empapavam a camisa, amainava a tempestade que lhe avassalava a alma em turbilhão, soltava uma fumaça do cigarro de mortalha, travava outra… riscava mais uma, hesitava na seguinte, enchia-se de coragem e zás: riscava também.

Entardecia. No final do dia, quando apenas os pirilampos beijavam a noite no vagar do tempo escuro, Ti’Manel dos Anzóis meteu chaves à porta.

Aquela era a sua casa, de beirado certo onde os pássaros migrantes vinham ano após ano fecundar-lhe os olhos de excitação, encher-lhe os ouvidos nos tinidos costumeiros. Nos cantares de acasalamento. Ali se sentia seguro, com ou sem bloco de notas… Ali amara de verdade e fora amado. Ou nem isso?...

Meteu chave à porta, a chave que sempre trazia amarrada a um lenço por via de a não perder … o lenço com que limpava o suor da testa e as lágrimas que, teimosamente, lhe beijavam a boca (só as lágrimas já o faziam …).

Entardecia. Jogou-se vestido e sem ceia na tarimba feita de caruma de milho. Uma nuvem de pó encheu-lhe as narinas. Um ataque de tosse encheu a casa vazia, misturou-se com o cheiro do tempo e da demora. Demorou a aceitar a vida, pois então … “nós somos o que somos, menina Mel… quem gosta, gosta sempre … e, se não tem… inventa”, disse-lhe naquela tarde, quando lhe falou de si, do tempo antes de ali chegar…

Finalmente adormeceu. No seu sonho misturavam-se agora valetes e damas de copas, bichos da fruta e formol de conservação…. entardecera afinal. Num ciclo que, definitivamente teria de aceitar, sem fantasmas outros que não aqueles que o Sol do meio-dia desenhava em sombras… ou seja,nenhuns. E não era belo o Sol Poente, diga lá, querida Mel?, perguntara-lhe.

Sorriu. Era, definitivamente era. Abraçou-o. Afagou-lhe a alma e o cabelo escasso…

Naquela manhã, quando içou redes do mar da palha, no seu barquito de madeira, viu um objecto estranho a brilhar no emaranhado dos detritos habituais. A custo guindou-o para dentro da embarcação. Quando finalmente conseguiu chegar-lhe descobriu uma lanterna antiga, daquelas que no início do século usara tantas vezes. Com a ponta da manga da camisa esfregou-a vigorosamente … e, olhando de frente o dia, formulou um secreto desejo …

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Cap. IV - Tratadora de aves

“Sou fera? Vá, que me domem!
E vos outros que sereis?(...)
Ricos, prostrai-vos: é a hora!
Sou Deus, esmago Satã:
Do sangue nasce a aurora,
Nas almas é já manhã!”
MÁRIO BEIRÃO - “A EPOPEIA DOS MALTESES”
(Ler Cap. III)

As muralhas do Palácio acolheram durante anos aquela tratadora de aves, estranha e pragmática a quem nada metia medo. Em dois tempos, as gaiolas reluziam, a horta ganhava mais dois braços, o laranjal despia-se dos seus frutos, as mesas, em contrapartida, recobriam-se destes. O pessoal temia-a e respeitava-a a um só tempo. Nas tardes de sábado ou de Domingo em que o trabalho no Palácio a chamava, às vezes, nem sempre, porque "crianças só atrapalham", levava-a com ela.

Mal cruzava os largos portões do Paço, “soltava a mão a Lia, deixando-a por conta própria”.

Portugal era, à altura, um país de contrastes - estávamos na década de sessenta -, o grupo dos jovens, que em 1960 representava 29,2% do total da população, viria reduzir-se a 16,9% em finais do século. Simultaneamente, o grupo dos idosos, tal como eu própria sentiria ao longo de todo o meu percurso, não parava de crescer. Se em 1960, o ano da minha concepção, os tios velhos representavam 8,0% do total populacional - dados que muitos anos mais tarde - quando a Demografia entrou sem aviso na minha Vida, e com a qual desde logo estabeleci uma relação de cumplicidade, viria a apurar-, em 1998, representavam 15,2% do bolo populacional. A famosa pirâmide, de que eu só tinha memórias associadas às viagens de que ouvira relatos, numa bela tarde de Inverno, na minha sala da terceira classe (as pirâmides do Egipto, um lugar tão longínquo, misterioso, fascinante) aplicavam-se ali, àquela nova ciência, a Demografia.

E tal como eu, a Demografia havia virado o Mundo, o meu pequeno Mundo Nacional, de pernas para o ar.

A Pirâmide estava invertida. Gostei dela e pronto: Reservei-lhe um quarto soalheiro no castelo encantado dos meus saberes. Um feudo, cercado de terrenos inóspitos, onde só entravavam matérias novas se explicáveis à luz dos saberes da minha infância. Foi sempre assim, creio que assim será para os fins dos tempos. Neste espaço de tempo –o espaço de tempo em que decorre esta história, o fenómeno do envelhecimento viria a traduzir-se por um decréscimo de 35,1% na população jovem, isto é, com idades compreendidas entre os 0 e os 14 anos, e um incremento de 114,4% na população idosa, ou seja, com 65 e mais anos. Era um mundo de mulheres, em particular de mulheres velhas, de “Meninas-Velhas”, com quem tanto, mas tanto, haveria de aprender. Os homens, emigrados ou na guerra, os homens, figuras carismáticas da geração anterior, estavam ausentes. As crianças, cada vez em menor número, cresciam votadas a si próprias ou, na melhor das hipóteses, na companhia das mulheres. O grupo dos jovens, que em 1960 representava 29,2% do total da população, reduzir-se-ia a 16,9% em 1998. Simultaneamente, o grupo dos idosos não deixava de crescer. No mesmo período, elevou-se de 8,0% para 15,2% Em 1960, existiam 92 homens por cada 100 mulheres em Portugal. Passados cerca de 40 anos, a relação de masculinidade subiria, ainda que ligeiramente, para 93 por cada 100.

Mercê de uma forte emigração das décadas de 60 e 70, o mínimo foi atingido em 1973, posicionando o rácico de 88,9. Esta relação de masculinidade, tal como viria a perceber, diminuí na medida em que se avança na idade; este fenómeno, é explicado através da sobre-mortalidade masculina, propagando-se como uma onda, nas diferentes classes etárias.

Enfim, uma série de dados estatísticos e sociais, que, valendo na prática o que valiam, explicavam a realidade da minha aldeia …

À altura do casamento de Linda, 1960, residiam em Portugal 66 homens idosos por cada 100 mulheres idosas; em 1998, ano da sua morte, eram aproximadamente 69. Em 1965, época em que eu vivia as aventuras do Palácio, a relação de masculinidade da população idosa atingiu o valor mínimo em 1965 (64,1). Por cada 100 mulheres, seria possível encontrar 64,1 homens. Era assim na minha aldeia, que bem o sentia.... para onde quer que olhasse só via negro, mulheres de negro, almas de negro.

A vida do e no Palácio situado onde no final do séc. XVII terá sido o Paço pertença dos "Manuéis", Condes de Vila Flor, ampliado e renovado no séc. XVIII por um dos seus mais notáveis proprietários, o 1º Duque da Terceira, D. António José de Sousa Manuel e Menezes Severim de Noronha que nele viveu entre 1792-1860, no decurso do reinado de D. Pedro IV, rei que ao Paço se terá deslocado pelo menos três vezes sua esposa D. Estefânia, a expensas dos próprios e do erário público e habitado posteriormente, por outras famílias ilustres, a exemplo de, em 1940, a família do Dr. Armindo Monteiro, Ministro das Colónias e Embaixador de Portugal em Londres, para Lia (modesta narradora destes contos), era apenas e tão só, palco de um conto de fadas. Os que inventava, os que, retirados dos seus livros de menina, transpunha para palco certo: o seu Palácio cor-de-rosa.

Das noites invernosas recordaria ainda aquelas em que, a avó tratadora, contava do modo cruel que este havia sido devorado pelas chamas, ia alto o ano de 1944; de como, do Casal da Oliveirinha, situado na encosta norte, adjacente aos terrenos do Paço, se chegara a temer o pior: uma rajada de vento e o fogo, desgovernado, teria reduzido a cinzas toda a encosta. Que o povo acudira em massa, e não fora isso, a esta altura, não haveriam araras, tucanos ou pelicanos, comprados pela famílias dos actuais proprietários.

Falava ainda de que D. Rafaela de Burgos* e seu marido, o Capitão Rudolfo D’Ávila*, haviam-se encantado pelo sítio. Em verdade nele viveriam até 1989, altura em que o “meu Palácio” viria a ser comprado por uma firma com sede em Hong Kong. Quis o destino que, devido à guerra do Golfo, esta não cumprisse as suas obrigações com o BPA, tendo-lhe perdido a posse....

Em 1993, foi finalmente adquirido pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, posto ao serviço da população. Em 1995/96, aqui se instalam os serviços de Museu e Património do Departamento de Acção Sócio-Cultural. O Palácio da minha infância, em a sequência de um Projecto de adaptação a núcleo museológico e patrimonial do Concelho e, igualmente de um projecto de reutilização integrada de património cultural e paisagístico, é hoje o local onde, se procede ao levantamento, preservação e restauro de todo o património histórico e arquitectónico concelhio. Os salões de que me recordo, deram espaço a arquivos do acervo museológico e uma oficina de restauro, realização de encontros científicos e culturais, concertos, projectos de animação pedagógica e diversas iniciativas de índole cultural. Os jardins proibidos, onde tantas e tantas tardes, me escondi do mundo, decadentes aquando da compra da firma de Hong Kong, sofrerem agora aturada manutenção, forma criadas novas áreas ajardinadas, funcionando, no período de Verão uma piscina aberta á população jovem local.

O meu Palácio, e o seu património natural, os Matos do Sobralinho, representam uma parte do meu próprio património emocional. …

* nomes fictícios

in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia dos sentidos" © Todos os Direitos Reservados

domingo, 14 de setembro de 2008

Balbina, mulher sem vícios

Quando a conheci já era bastante entrada na idade. Não a diria “velha”, contudo. De porte direito nas suas generosas curvas, de ancas e seios opulentos, de cabelos sempre presos num carrapito igualmente generoso, de faces vermelhas e um sorriso largo, era o protótipo de uma verdadeira campesina.

No queixo, no buço, pelos grossos e já brancos, que aparava à tesoura, davam-lhe um ar de “macho de saias” bonacheirão. Um andar indolente, cambaleado, ajustavam a figura.

Vivia no planalto da serra onde a pedreira ainda não tinha chegado e por onde ainda se pastoreavam os últimos rebanhos, se cultivavam as últimas vinhas, onde ainda se colhiam frutos dos escassos pomares que haviam resistido ao ímpeto devorador da "máquina do pó"…

Naquela altura, a distância da sua à nossa casa no sopé da serra, pareciam-me léguas. Pelo meio nada havia a não ser um ou outro casal em declínio, a ruir nas fundações e nas estruturas abandonadas. Não se via vivalma. Os terrenos da família, da nossa família – parte já vendidos à “máquina do pó” -, ainda iam produzindo a esforço. Quando a máquina soltava pedras na encosta, vomitava urros pelas narinas e pó pelas ventas, não havia bago que se aguentasse e as colheitas ficavam invariavelmente perdidas. Todavia alguns dos herdeiros, primos e tios, persistiam teimosamente em lhes deitar sementes, em as cultivar. Trocavam-se serviços nas courelas de cada um, numa economia escassa de subsistência.

Era nesse tempo que nós crianças a encontrávamos. Era na sua casa que se buscava entretêm nas tardes frias ou nas demasiado soalheiras enquanto os adultos se ocupavam das tarefas da apanha da uva, por exemplo, ou da azeitona.À época não haviam farturas nem guloseimas outras que não aquelas que a terra nos dava. E Balbina, a quem a vida não dera filhos, sabia como nos agradar. Na sua paciência infinita, nas tardes de estio, descascava pinhões, enfiava-os em linhas e, dia após dia, ia-nos dando os colares. Ou então, figos passas com nozes dentro, que chamava de “casamentos” … e, quando nada disto tinha à mão, espetava um pedaço de pão de centeio num garfo de dois dentes, torrava no lume sempre aceso, besuntando com a banha dos torresmos de cor alaranjada que retirava de uma panela de barro negra das múltiplas utilizações. O leite, esse, íamos nós mesmos com a sua ajuda ordenhar das ovelhas ou das cabras. Bebia-se quente, deixando na cara de cada um um largo bigode branco de espuma. Era a risada, a nossa e a dela. Cada um espelho do outro, que espelhos só mesmo um velho e picado da humidade no quarto dos fundos onde guardava uma arca de tarecos antigos com os quais nos mascarávamos de gente grande ...

Eram estas as tardes de Outono em que a pequenada encontrava uma avó sem pressa, de saias a roçar os tornozelos e avental de peitilho preso com dois alfinetes de dama - os mesmos que lhe serviam para retirar os moluscos dos caracóis de dentro das carapaças… aqueles que apanhávamos nas ervas e que nos assava com sal grosso.

Balbina era generosa, na verdade, e disso fazia gala o seu Pedro.

“ A minha Balbina é uma alma grande, vossemecês sabem … e uma cozinheira de mão cheia, valha-me Deus, faz cada petisco (dizendo saliva no prazer antecipado)...mulher sem vícios é a minha Balbina … grande mulher a minha Balbina, grande mulher...”

Sorria. Sorriam-lhe os olhos do azul mais intenso que alguma vez vi num ser humano. Sorria-lhe o corpo seco e hirto e a voz, por natureza gaga – gago que só ele -, naqueles momentos, em glória da sua valquiriana esposa, saía limpa e escorreita.

“ Quis Deus que não tivéssemos filhos, mas a minha Balbina tem sempre a fralda da saia apinhada de crianças e, a nossa mesa é farta. Dá de comer sempre a mais um… não se teme a trabalhos nem canseiras...”

Era a mais pura verdade. Se, aquando da cava chovia, logo Pedro se assumava ao topo do casal e gritava a todos:

“… homens, vossemecês não têm uma horta nas costas pois não?, ora vinde até aqui que a Balbina já cuida de vos arranjar de janta…”

O casal dos Esteves, à semelhança dos demais da zona, era um composto de casa de habitação, lagar e adega, celeiro, cortes dos animais … No caso, a cozinha de lenha dava de paredes meias com adega, onde Pedro colocara uma mesa improvisada de troncos de choupo abertos sobre cavaletes de madeira. Era ali mesmo, no ébrio da fermentação que acolhia os passantes, entre os figos passas, as romãs colhidas no quintal, o toucinho retirado à salmora e assado no braseiro. Da talha as azeitonas retalhadas nas horas do serão pelas mãos da sua Balbina, do fumeiro os salpicões, os buchos,as linguiças com pimentão da horta, O mel das colmeias dispostas no fundo da eira, as compotas do tomate e a jeropiga caseira …

Balbina ia e vinha, de cá para lá, trazendo a loiça, levando as sobras para o maceiro dos porcos … Os homens comiam e bebiam, de navalhas em riste ao pão trigueiro. A galhofa esquenta, os dominós cruzavam a mesa e a tarde, que, do lado sul, do rio abaixo, subia agora a encosta, atrevida … entre um copo e uma mão cheia de azeitonas ou tremoço, se fazia noite e se estreitava amizade.

“… Ti Balbina, coma a “mor” com a gente…”
“… Comam vocês, eu cá m’arranjo…"
“… Ti Balbina, beba um copinho do seu com a gente …”
“… Ó Manel, a minha Balbina não bebe, ó homem, até a ofendes … h’ome essa, querem lá ver? é que nem do cheiro Balbina gosta, por via disso nem come aqui com a gente… a minha Balbina só água, nem leite que dizem que até faz bem… mas não, homens, a Balbina é mulher de água só … sem vícios, sem vícios ...!”

A hora ia progredindo e as faces de Balbina cada vez mais rubras. Guinchos finos atravessavam de quando em vez os raros momentos de silêncio. Gemidos silenciados, travados nos passo …

“… Ti Pedro, vocemessê tem ratos na cozinha? …”
“….H’ome essa … n’senhor, tenho o Tareco de atalaia, e olha qué fino o bicho … ratos é que não… ai, Marcelino, tu tens cá umas ideias, ó rapaz …”



Era época de poda, no Fevereiro adiantado. Os homens estavam de posse à vinha. Naquele dia, sem que nada o fizesse prever, de um céu limpo, uma cabazada d’água caiu de repente ensopando todos até aos ossos. Pedro gritou aos homens que desferrassem do trabalho, por entre dois trovões. A coito da casa, esbracejava em gestos efusivos…

“O Marcolino, ò Jeremias… vinde dai e ide à cozinha, que a Balbina tá por lá. Que acrescente a panela. Não podeis regressar ao povoado encharcados desse modo…”

Marcolino, nos seus ainda frescos quarenta anos, em segundos, entrando pela adega, chegou à soleira da cozinha …

Balbina, de caneca na mão e de bigodes tintos de vinho carrascão encarou-o na surpresa… abriu um sorriso, e, de rompante soltou:

“… Ó Marcolino ... meu rapaz, como é que adivinhaste que te ia a levar esta pinga, homê?”

Riram ambos. Naquela tarde, Balbina, como em tantas outras, "soltou os ratos na cozinha", nos lamentos da torneira a abrir lentamente … do barril reserva que Pedro guardara para os anos de sequeiro …

... E soltou largos sorrisos no seu ar costumeiro e bonacheirão de mulher sem vícios!

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...