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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Ninhos...

A tarde avançava por sobre o vermelho da vinha piriquita à sua direita, descendo a passos dóceis do escuro dum céu entre o rosa e o chumbo. Adivinhava-se o frio lá fora. A tempestade. Dentro do carro o termómetro marcava a temperatura externa. Escassos quatro graus. Temeu a saída. Suportava mal o frio. Sempre assim fora. Ainda o Inverno vinha longe e já se escondia literalmente nas imensas golas altas. Não raras vezes as fazia subir até por cima da boca, deixando apenas à vista o nariz e os olhos.
“lá está ela, isso é vício, sempre a esconderes-te por detrás das golas”.

Sorria… Adivinhava-se o sorriso no brilho levemente humedecido do olhar, porque, em rigor, continuava escondida, no agasalho das suas golas … na protecção tácita e premeditada de suas golas. Noite e dia o corpo não se lhe aquecia, por mais roupa que colocasse, camada sobre camada, em jeito de cebola (seria por isso que tantas vezes lhe vinham lágrimas teimosas aos olhos?...). Imaginar o frio e já os ossos se lhe encolhiam, se cravavam espinhos em pele, rasgando-a, no cieiro pérfido da dor. Nas frieiras que em menina lhe assoberbavam as mãos, impedindo os gestos. Hirtas as mãos. Gostava de chuva mas não de frio, de todo não …

Seguia em rota, a caminho de Montemor na A2 ladeada ora de pinheiros mansos, ora de azinheiras. Azinho. Os cheiros da lenha a crepitar na lareira, a mansidão das falas. Os ninhos empoleirados nos postes de alta-tensão. Os ninhos de cegonhas …

Outras viagens, outras épocas, nos tempos em que ao Alentejo das suas memórias, no pós-revolução de Abril, os trabalhadores das indústrias, os doutores, os trabalhadores do comércio, a população urbana no geral, acorria a fazer a reforma agrária.
E ainda aquelas, as que agora lhe vinham revisitadas nos ninhos de cegonha: Maria Luísa.
“… levaram-na para sempre, menina. Nunca mais voltou aqui ao nosso ninho. Foi um pássaro migrante sem retorno, sabe, menina?”.

Duas lágrimas teimosas marcavam o rosto do homem ali sentado à beira da lareira. Imaculadamente branca, a casa, respirava a poros abertos o cheiro do azinho, das chouriças curadas na “da vizinha”.
“… coma, menina. Vai ver que gosta. Nós não criamos porcos, bem se vê. A minha Jesuína ficou assim ainda não tinha trinta anos. Faz o que pode, e olhe que faz muito, sempre fez. Mas fora de portas não pode, bem se vê. Uns bicos ainda se criam, por mor de uma canja na doença, mas mais que isso não. Mas estas são de confiança. São além da vizinha do Alabastro. Um porquinho criado à mão, engordado só com o que a terra dá. Bolota. Nada de farinhas, não senhora. Coma menina que vai gostar…”

Pegava no canivete sacado do bolso das calças, limpava cuidadosamente e, sem mais, cortava as chouriças em pedaços fartos. Igual tratamento dado ao pão carrasqueiro, de grandes dimensões.
“…é além da vizinha Margarida. Coze em casa, sempre cozeu. Nós não, a Jesuína não pode amassar e, casados os filhos e migrados lá p’rá cidade, não vale muito a pena. Dantes eu mesmo o fazia, amassava. As raparigas tendiam e iam ao forno da vila a cozer… dava-se de pagamento uma parte da cozedura (um panito ou dois…) e pronto, ficávamos governados para toda a semana. Com azeitonas e uma cebola, tantas vezes foi o meu almoço além nas hortas…”

Ao lado, Jesuína ouvia com atenção as falas de Alexandre. De lenço amarrado por sob a boca já desdentada, de xaile de lã escura sobre os ombros, amparava a mão direita no cós do avental. Inútil. Mão inútil. Nada fazia, dizia. Tal como o braço. Tal como a perna que arrastava, sobre o pé virado em sentido inverso. Para trás. O pé, tal como a mão, ficara-lhe assim após uma trombose, aos vinte e poucos anos.

“a Luisinha, menina, foi-se e nunca voltou…”

Pegava de novo no fio da meada, numa lembrança que o magoava, que o tornava menor, nos seus mais de metro e oitenta. Turvavam-se-lhe os olhos, num verde já cansado. Desbotado no sal das lágrimas.
“Alexandre, o Grande”, recordava-se, tinha sido assim que interiormente o chamara, desde aquele dia em que o viu a primeira vez e ele, com um sorriso aberto lhe estendeu a mão e ela, atrevida, lhe beijou a cara. Viu-o ruborescer, ao mesmo tempo que lhe dizia: - “então é a menina que futura a ser minha neta? Faço gosto disso, fique sabendo. Ouvi falar já tanto de si…”.

Naquele dia os olhos ficaram cúmplices. Sempre que voltava, como naquela tarde, Alexandre ia à gaveta das suas memórias e, num vagar de tempo partilhado, contava-lhe da vida. Da sua vida. Da vida do seu Alentejo de safras escassas. Do tempo das meias sardinhas e da jorna quando o tempo permitia os trabalhos nas terras. De sol a sol, e ainda completados com as tarefas mais pesadas da casa. As mais pequenas feitas pela esposa e pelos filhos, ainda crianças…

Em simultâneo, da gaveta dos seus “tesouros”, oferecia-lhe alguns. Pequenos adornos de madeira que, à lareira, nas noites intermináveis, ia fazendo com a preciosa ajuda da sua navalha. Num esculpir de afectos, dando forma e utilidade a pequenos paus, sobras de cortiças. Oferecia-lhos.
“… leve este, menina. É um coxo, se tiver sede pelo caminho, já tem por onde beber…e este tem o seu nome, já viu? (mostrava um M, mal desenhado, talhado na cortiça, naquele caso, copiado a olho dalgum lado. Mostrava, orgulhoso...). Ou prefere este tarro? Pode levar uma bebida quente lá para o seu Liceu, que ouvi dizer que é friorenta”. Sorria.

Depois, lá mais ao fundo, as chinelinhas… e uma nuvem pousada no olhar. Enorme, a ameaçar tempestade. Como aquelas que agora vinham das bandas de Montemor. Tempestade pela certa.
“… sabe, fiz para a minha Luisinha. Nunca as calçou, bem se vê. Fi-las grandes, para quando tivesse três ou quatro anos. Quando ma trouxessem de volta…
E as lágrimas a traçarem os caminhos do não retorno. A tempestade a varejar as cepas piriquitras e o casario branco. Agora acompanhadas pelo choro baixinho de Jesuina. E logo determinado, “Alexandre, o Grande”:
“…não chores, mulher. Sabes que está bem. Que tem o que nunca lhe podias dar. Tem já filhos doutores, até. Foi à escola e é letrada. Ingrata mulher, estás a chorar por via de quê?... a Luisinha está bem, pois então… muito melhor que aqui. Teria comido meia sardinha e ceifado trigo de pés no chão. Carregado lenha e água além do poço e, lavado no rio, como as irmãs, que sofrem agora dos ossos”
“ … criamos todos os outros, homem. A nossa Luisinha também se tinha criado. Quantos pari depois de estar assim? E algum se perdeu? Deus Nosso Senhor não te ajudou a cuidar de mim e deles?... A nossa Luisinha também se tinha criado. Era nossa filha como todos os demais. Sete, criamos seis. Todos vivos e todos sãos. Não andaram à escola? Não, não senhor. Mas ensinamos-lhe da escola da vida. Hoje já levaram os filhos à escola. E alguns até já são quase doutores, engenheiros, não é como se diz? Como esses da reforma agrária que ai vêm, só que os nossos netos comeram com as colheres que tua fazes dos troncos, e das migas que eu consigo fazer com esta mão que Deus me conservou. A Luizinha nunca as comeu, homem. Era de leite quando se foi…”
“…coma, menina. Não se entristeça. A minha Jesuína está sempre a chorar a nossa filha. Mas ela está bem, está bem …”

Repetia para se convencer. Para se acalmar. Para acreditar, não acreditando jamais, que, deixá-la partir fora a melhor escolha. Afinal sempre lhe disseram que seria só por dois ou três anos. Iam a modos que para juntar uns dinheiros. Voltariam. Luisinha, a sua afilhada, voltaria e, nessa altura, por certo Jesuína estaria já melhor...

Viu-se a braços com a doença da esposa. Com sete filhos todos pequenos. Os padrinhos voltariam, pois então. Argentina não era lugar para se ficar, era o que lhe diziam. Só para ganhar uns tostões. Assinou. Não sabia ler, mas assinou, ou melhor, no registo colocou o dedo. Num aperto de alma, colocou o dedo.

Luísa não voltou. Nem nos dois anos seguintes, nem nas duas décadas, nem sequer nas quatro que já tinham passado desde esse dia em que a vira a sorrir nos braços da madrinha. Nem quis olhar. Fechou-se em casa.

No início ainda, a espaços, chegavam notícias: estavam bem, ficariam mais um ano ou dois. A menina já andava à escola. Ficassem pois tranquilos. Não sabiam escrever nem ler. Pediam a quem lesse, a quem respondesse. As cartas seguiam e, deixaram de ter resposta. Choraram a perda, a ausência. Filhos já criados, no ninho faltava sempre Luísa. Na mesa faltava sempre Luísa.

Nas tardes de estio, Alexandre olhava os ninhos de cegonha e, intimamente, recordava o seu. Faltava sempre um filhote, uma filhota. A dona das tamancas que estendia na palma da mão a Maria.
“… veja, menina. As tamanquinhas de Luísa. Gosta?...”

Jesuina pegava agora as batatas. Com o braço parado amparava-as contra a barriga e, com a mão esquerda descascava-as primorosamente.
“… tudo se faz, menina. Teria criado a Luísa. E não seria menos feliz que os outros”.

“…podemos voltar a escrever, que acha? Tentar saber deles. Gostava, Senhor Alexandre? …"
“… sim, tanto. Ela pensa, disseram-me umas pessoas que vieram de lá depois do 25 de Abril, que eram lá refugiados (é assim que se diz?), que ela, a minha Luísa, é filha deles. Que nasceu na Argentina. Tem o nome deles e nem tem irmãos. Nunca conseguiram ter filhos. Dizem que, não sendo rica, vive bem… eles, os padrinhos, morreram. Já não tem ninguém para além dos filhos e do marido. E, veja a menina, tem tanta família a minha Luisinha… pode escrever? Faria isso por nós, menina? Hoje?... Hoje mesmo?... Vou à venda comprar uma carta, quer?.
“ tenho papel, podemos começar?...”
Abraçou-o. Pegou num bloco e numa caneta e começou a escrever:


"Ponte de Sor, 30 de Setembro de 1978
…Menina Luísa, vai estranhar esta carta. Não me conhece, nem conhece esta terra pois não? Chamo-me Alexandre, tenho setenta e dois anos e sete filhos.
Tantos netos que me baralho com os nomes…
Somos uma família pobre, a minha senhora teve uma trombose muito nova. Coisas da vida, do destino. Deus é que sabe as provações que nos dá. E a nós cabe encontrar caminhos…

Gostava de lhe contar uma história, ouvi dizer que é professora primária.
Não sei se sabe dos ninhos de cegonha. Se já viu alguma vez cegonhas. Por aqui, menina Luísa, dizem que as cegonhas trazem no bico os bebés. Quando nascem crianças, aos irmãos conta-se que a cegonha, um pássaro migrante, trouxe de longe, muito longe, o irmãozinho que chega. E, claro, as crianças alegram-se com a chegada da cegonha. E dos manos, bem se vê.

Foi assim quando a menina nasceu. Era Primavera, os dias começavam a aquecer. Eram as suas irmãs mais velhas, de poucos anos, pouco mais de meia dúzia, que iam ao rio lavar as suas camisinhas. A senhora sua mãe estava acamada (melhorou depois, graças a Deus). Era a sua madrinha quem nos ajudava a embalar o seu berço. Um dia, Luisinha, vocemessê fez o seu primeiro voo. Dizem que de avião. Nunca andei em nenhum nem quero andar… só queria que vossemecê um dia, se pudesse voltasse a este ninho que a espera: a sua casa, os seus pais, os seus irmãos … a sua terra e visse ninhos de cegonha…

Somos muito agradecidos aos seus padrinhos, que vossemecê cuida de serem seus pais, por a terem criado, educado, amado. Que a alma lhe esteja em descanso. Queremos que os guarde sempre no seu coração de filha. Mas nós, menina Luísa, é que somos os seus verdadeiros pais. Eu e a sua mãe, Jesuína. E os seus irmãos e seus primos, todos nós, somos a sua família verdadeira. E nunca a esquecemos.

Perdoe-nos por a termos deixado partir. Por agora não sermos capazes de ficar calados. Nada queremos de si, menina, não tema. Temos o pão de cada dia, que nos basta. Quanto a mim, apenas quero que receba estas chinelinhas que são suas… têm menos dois anos que vossemecê, faça-lhe as contas…

Receba um respeitoso beijo deste que se assina, Alexandre, seu pai. "


Luísa recebeu a carta. Levou meses a responder mas respondeu. Manteve anos a fio correspondência com os pais, até à morte de Alexandre. Mandou-lhe fotografias dos filhos e dos netos. Aprofundou as suas raízes. Mas nunca quis visitar os pais, nem o País. Por fim, após a morte de ambos, deixou de responder aos irmãos… na última carta dizia-se “filha única”.

Quatro gerações depois de Maria Luísa, uma sobrinha-neta nasceu e tomou o seu nome. Voará brevemente, desta vez no colo quente de sua mãe rumo ao frio da velha Europa…

A placa indicava agora a saída para Montemor. Para trás, os ninhos de cegonha.
Luísa…

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...