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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 30 de junho de 2012

descodificação dos poentes



sentava-se, por vezes, na tarde que passa, a descodificar os poentes. entre o rio e a estrada. 
se não contas a tua história, estás a falar de histórias vazias, balelas, frases feitas, em que, para teu comodismo, e, porque não, para os demais, os outros, aqueles que  te escutam, dizes o mundo plano; simplificas em demasia, e, nessa simplicidade radicular, retiras a beleza óbvia ao contorno dos gomos das árvores que ocultam a casa morena dos teus olhos …

colocou-lhe dois dedos unidos sobre os lábios. a mão dele, húmida, trémula, reteve a sua. mediu-lhe o pulso na tempera dos dias tristes. olhou-o, plena, imensa, a acolhê-lo, como só ela sabia. havia  um vagar doce e magoado, uma cor de asfalto, esculpido e portentoso, no timbre nortenho da  sua fala. uma constatação súbita de percurso, a mensuração irrefutável de um destino ainda não alcançado, havia,

eu oiço-te, disse-lhe. ainda que nada fales. oiço-te.
redobrou-se a olhá-lo,  redonda na ogiva terrena dos seus olhos de terra. confirmou-o num gemido, numa súplica.
fica. fica!!!  não lho disse. nunca lhe disse,  contudo.
ao invés, atirou-lhe, súbita:
 ...que códigos imobilistas são esses em que tropeças e te impedem a progressão óbvia dos passos? ...
queres mesmo que fale?

estavam ali, finalmente a respirar o mesmo ar, a beber do calor que lhes vinha de dentro. um neblina subia, vaporosa,  canícula a derreter percursos. o  alcatrão pastoso. e as palavras.
fala... fala... 
suspensos.
...sim, claro. falaremos. quem começa? eu, falo, disse-lhe ela.
...do que me recordo, assim - quando as nascentes eram escassas e a água não alimentava os peregrinos, tu chegaste qual bênção.  talvez por isso, a imagem não nos fosse alternativa única e/ou necessária - havia, em rigor, rente às tuas margens, na quadrícula exacta onde projectaste o holograma do meu corpo indizível,  o rumor ázimo das minhas fontes num latejar de tempo novo, acérrimo e intuitivo...
interrompeu-a, 
... e as batidas ritmadas das pedras?, e, do que recordo, ainda, quando cerro os olhos à tua falta,  um relógio de sol, pousado no teu corpo de dor e  d'água, 
... simmm...sim...
disse-lhe num fio de voz, de negação infirmada. 
Erica, Erica... fica. por favor.
olharam-se, nus,  na casa ossuda dos corpos envelhecidos, pela primeira vez. despidos, como sempre imaginaram. leves. como se pássaros fossem. na curva onde o rio se insinuava,  era-lhes, àquele tempo,   distante o mundo  e  uníssono o  querer e o sentir.
lembras-te? eu abria-te, moroso, o fecho do corpo, o teu vestido de sombra  tombava
açucenas
nardos a teus pés, 
...sim, e agora?
nada....
deu-se conta disso quando o ventre  respondeu ao movimento das palavras. não sentia nostalgia nem saudade - apenas uma espécie de quirozene a  levantar-se dos ponteiros do relógio de cuco suspenso na parede por um prego enferrujado. cento e trinta anos de espera... cento e trinta!!!
que importa? 
Erica, meu amor...

caminhavam as searas. o verão, cão raivoso, aferrava-lhe os músculos tensos. olhou-os, atenta, na busca de lhes encontrar movimento. inquietava-se desnecessariamente. no estore veneziano,  por vezes (e só nessas circunstâncias), quando as pestanas, árvores metamorfoseadas a azul cobalto, lhe impediam a visão límpida, um glaciar antigo parecia cortar o tejo. ai, aluviónicas, as sementeiras  e as maças do rosto contraiam as verdades indesmentíveis contra o céu da boca. fazia-se silêncio. pão em sua boca. e aquela fome de amá-lo...
Erica...
o que faço com que tenho dentro de mim?- disse-lhe. há, pressinto,  uma engrenagem de processo, um amontoado de peças, sobressalentes, por certo, sempre dispostas a colmatar as falhas mais visíveis, e estas folhas, virgens dos teus dedos, que agora lês - não sou eu e também sou, somos sempre o rastilho da tinta antes que o bico raspe a folha,  aparo rangente, impiedoso,  a imitar o som do vento...
somo-nos,
sobreviventes!  é isso...

no pousio da hora, regressava ao tempo em que o conhecera - era Dezembro, estava frio, o Natal tilintava nos copos de vinho que a obrigavam quase a beber; nunca bebera. todos sabiam. e ainda assim...
és dona de ti, Erica. ninguém te pode obrigar a nada. mesmo a nada. bebeu. no néctar adivinhou a grainha. as cepas retorcidas. o sol nas folhas. a terra ressequida. bebeu de  novo, a comungar o cálice.
ele vogava entre os demais, aceso num cigarro que teimava em bengalar-lhe os dedos; parecia ter milhões de anos sobre os ombros de tão corcunda. o cinzento da estrada sobre os cabelos. cinzentos. um gemido uterino de dor apossou-se dela. bebeu de novo. sentiu vontade de o proteger, de o amparar, de lhe dar, naquela hora, e já, um abraço perene, que lhe devolvesse o porte, a dignidade, a força que lhe adivinhava, convicta de que lhe era caminho. ao invés, amparou-se a si própria no terror do escuro. que fazia ali? em tudo há um propósito. talvez.
Érica!!! o acento no nome dela. a sílaba tónica. 
Érica!!!!
...

ao fim de, para ser quase exacta,  trinta de dois mil e um cigarros, sugados até ao sabugo dos dedos, e destes, fogo-fátuo, a alumiar-lhe a estrada, foram os olhos dela que o guiaram,  linhas difusas,  ou, como ouvira um dia, sabê-la, exacta, e  ilha sua, contida na raiz da baixa-rio...

                                       de  quantos cigarros se fazia uma jangada?



“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...