sentava-se, por vezes, na tarde que passa, a descodificar os
poentes. entre o rio e a estrada.
se não contas a tua história, estás a falar de histórias
vazias, balelas, frases feitas, em que, para teu comodismo, e, porque não, para os demais, os outros, aqueles que te escutam, dizes o
mundo plano; simplificas em demasia, e, nessa simplicidade radicular,
retiras a beleza óbvia ao contorno dos gomos das árvores que ocultam a casa
morena dos teus olhos …
colocou-lhe dois dedos unidos sobre os lábios. a mão dele,
húmida, trémula, reteve a sua. mediu-lhe o pulso na tempera dos dias tristes.
olhou-o, plena, imensa, a acolhê-lo, como só ela sabia. havia um
vagar doce e magoado, uma cor de asfalto, esculpido e portentoso, no timbre
nortenho da sua fala. uma constatação súbita de percurso, a mensuração
irrefutável de um destino ainda não alcançado, havia,
eu oiço-te, disse-lhe. ainda que nada fales. oiço-te.
redobrou-se a olhá-lo, redonda na ogiva terrena dos seus
olhos de terra. confirmou-o num gemido, numa súplica.
fica. fica!!! não lho disse. nunca lhe disse, contudo.
ao invés, atirou-lhe, súbita:
...que códigos imobilistas são esses em que tropeças e
te impedem a progressão óbvia dos passos? ...
queres mesmo que fale?
estavam ali, finalmente a respirar o mesmo ar, a beber do
calor que lhes vinha de dentro. um neblina subia, vaporosa, canícula a
derreter percursos. o alcatrão pastoso. e as palavras.
fala... fala...
suspensos.
...sim, claro. falaremos. quem começa? eu, falo, disse-lhe ela.
...do que me recordo, assim - quando as nascentes eram
escassas e a água não alimentava os peregrinos, tu chegaste qual bênção.
talvez por isso, a imagem não nos fosse alternativa única e/ou
necessária - havia, em rigor, rente às tuas margens, na quadrícula exacta onde
projectaste o holograma do meu corpo indizível, o rumor ázimo das minhas
fontes num latejar de tempo novo, acérrimo e intuitivo...
interrompeu-a,
... e as batidas ritmadas das pedras?, e, do que recordo,
ainda, quando cerro os olhos à tua falta, um relógio de sol, pousado no
teu corpo de dor e d'água,
... simmm...sim...
disse-lhe num fio de voz, de negação infirmada.
disse-lhe num fio de voz, de negação infirmada.
Erica, Erica... fica. por favor.
olharam-se, nus, na casa ossuda dos corpos
envelhecidos, pela primeira vez. despidos, como sempre imaginaram. leves. como
se pássaros fossem. na curva onde o rio se insinuava, era-lhes, àquele
tempo, distante o mundo e uníssono o querer e o sentir.
lembras-te? eu abria-te, moroso, o fecho do corpo, o teu
vestido de sombra tombava
açucenas
nardos a teus pés,
...sim, e agora?
nada....
deu-se conta disso quando o ventre respondeu ao
movimento das palavras. não sentia nostalgia nem saudade - apenas uma espécie
de quirozene a levantar-se dos ponteiros do relógio de cuco suspenso na
parede por um prego enferrujado. cento e trinta anos de espera... cento e trinta!!!
que importa?
Erica, meu amor...
caminhavam as searas. o verão, cão raivoso,
aferrava-lhe os músculos tensos. olhou-os, atenta, na busca de lhes encontrar
movimento. inquietava-se desnecessariamente. no estore veneziano, por
vezes (e só nessas circunstâncias), quando as pestanas, árvores metamorfoseadas
a azul cobalto, lhe impediam a visão límpida, um glaciar antigo parecia cortar
o tejo. ai, aluviónicas, as sementeiras e as maças do rosto contraiam as
verdades indesmentíveis contra o céu da boca. fazia-se silêncio. pão em sua boca. e aquela
fome de amá-lo...
Erica...
o que faço com que tenho dentro de mim?- disse-lhe. há, pressinto,
uma engrenagem de processo, um amontoado de peças, sobressalentes, por
certo, sempre dispostas a colmatar as falhas mais visíveis, e estas folhas,
virgens dos teus dedos, que agora lês - não sou eu e também sou, somos sempre o
rastilho da tinta antes que o bico raspe a folha, aparo rangente, impiedoso,
a imitar o som do vento...
somo-nos,
sobreviventes! é isso...
sobreviventes! é isso...
no pousio da hora, regressava ao tempo em que o conhecera -
era Dezembro, estava frio, o Natal tilintava nos copos de vinho que a obrigavam
quase a beber; nunca bebera. todos sabiam. e ainda assim...
és dona de ti, Erica. ninguém te pode obrigar a nada. mesmo a nada. bebeu. no néctar adivinhou a grainha. as cepas retorcidas. o sol nas folhas. a terra ressequida. bebeu de novo, a comungar o cálice.
ele vogava entre os demais, aceso num cigarro que teimava em bengalar-lhe os dedos; parecia ter milhões de anos sobre os ombros de tão corcunda. o cinzento da estrada sobre os cabelos. cinzentos. um gemido uterino de dor apossou-se dela. bebeu de novo. sentiu vontade de o proteger, de o amparar, de lhe dar, naquela hora, e já, um abraço perene, que lhe devolvesse o porte, a dignidade, a força que lhe adivinhava, convicta de que lhe era caminho. ao invés, amparou-se a si própria no terror do escuro. que fazia ali? em tudo há um propósito. talvez.
Érica!!! o acento no nome dela. a sílaba tónica.
és dona de ti, Erica. ninguém te pode obrigar a nada. mesmo a nada. bebeu. no néctar adivinhou a grainha. as cepas retorcidas. o sol nas folhas. a terra ressequida. bebeu de novo, a comungar o cálice.
ele vogava entre os demais, aceso num cigarro que teimava em bengalar-lhe os dedos; parecia ter milhões de anos sobre os ombros de tão corcunda. o cinzento da estrada sobre os cabelos. cinzentos. um gemido uterino de dor apossou-se dela. bebeu de novo. sentiu vontade de o proteger, de o amparar, de lhe dar, naquela hora, e já, um abraço perene, que lhe devolvesse o porte, a dignidade, a força que lhe adivinhava, convicta de que lhe era caminho. ao invés, amparou-se a si própria no terror do escuro. que fazia ali? em tudo há um propósito. talvez.
Érica!!! o acento no nome dela. a sílaba tónica.
Érica!!!!
...
ao fim de, para ser quase exacta, trinta de dois mil e
um cigarros, sugados até ao sabugo dos dedos, e destes, fogo-fátuo, a
alumiar-lhe a estrada, foram os olhos dela que o guiaram, linhas
difusas, ou, como ouvira um dia, sabê-la, exacta, e ilha sua, contida
na raiz da baixa-rio...
de quantos cigarros se fazia uma jangada?
de quantos cigarros se fazia uma jangada?