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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 6 de julho de 2013

a matemática das asas: Selma

não creias que a tarde finda apenas porque a noite cai, extrema, nos teus braços. 
seria redutor pensar dessa forma, bem sabes - em cada momento, o seu contrário, em latitudes inversas. neste verão, explicam-me os gajos da "menterologia", chove. chove granizo e tempestades, algures, onde não faz necessidade alguma;  aqui, à boca da rio, morre-se a sede das águas. 
mas é assim. estava escrito.  
para os crentes, por obra da ordenação divina, para mim, porque me convêm à narrativa: a chuva confere sempre um quadro melancólico à coisa, um cenário lúgubre, um certo misticismo de conteúdos e de formas, matiza de desconhecido, afastando, o chilreio ácido dos pássaros. esquadrinha as coisas sólidas em lamas que se alojam sob as unhas já de si enegrecidas de quem, como eu, dá a mão à palmatória. e por ali fica, pegajosa, tempos e tempo, a esponjar a alma, a toldar-lhe a consistência. custa a sair, a chuva, dos olhos e da pele. e o sol é astro distraído que nos repele em uv's demasiados e nos torna secos e ásperos, como lixa, como sola de sapatos.  sobram os pássaros. em certos dias, são eles que, há falta de tudo, me enchem as tardes. coabitamos de forma pacifica, nem sequer tento individualizar-lhes, verdadeiramente, os sons, os trinados, as melodias fobocrónicas. e nem preciso. conheço-os de ginjeira, nos voos picados com que descem ao solo da mais crua verdade e logo sobem em estertores cadenciados. adivinho-lhes momentos a anteceder a própria morte, a agonia, e fico daqui a pensar se gostarão mais de morrer a prestações, ou se não lhes seria mais vantajoso um golpe de vento certeiro, um golpe d'asa contra um poste. só se perde o feitio. o resto, a massa, a volumetria,  fica toda, ainda que dispersa pela paisagem em cacos disjuntos.  às vezes resulta, concordas? ou morrem mortos ou despertam, aprendem com os gatos o fôlego de viver sete vidas. e vivem felizes. aconteceu assim comigo, posso até contar-te, mais logo. mas agora não. digo-te, somente, de como os oiço, e quando os oiço, e, o tanto que tal me basta. 
silencio-me a observá-los, tão fina quanto um fio de água que se esgrima em disputa ávida contra o chão e acaba com as noites de sombras e insónias nas sancas da calçada. ou das paredes da casa, tanto faz. é por aí! nesses dias, confirmo-te, 
a praia é das gaivotas e  eu sou aquilo que não me lembrei de imaginar. 
simples como a matemática das asas – não conheço nenhuma ave que voe com apenas uma, são sempre aos pares. quando era pequena e me perguntavam o que eu queria ser quando fosse grande eu não sabia - faltavam-me os referenciais, os modelos, ou os exemplos grandes de ordeiros ou vilões, faltavam-me os carismáticos que,  mais tarde, bem mais tarde,  haveriam de encher de "ah's", a minha vida, e, reconheço, as vontades de ser qualquer coisa. qualquer coisa que fizesse sentido para eles, os que se inquietavam a colocar-me com tais questões.  a não ser... 
a não ser que, 
pudesse ser cereja no tempo de cerejas. erva das primeiras chuvas, melancia aguada com cheiro a verão e a lezíria. pão trigo acabado de cozer. ou bafo de forno em dias de inverno... disparates, portanto. 
daí a não ser nada do que não me lembrei de imaginar foi um passo de recém-nascido, um esticar lento de nervos e articulações, na carne e na alma, uma força merdosa a embrulhar-me os passos, amedrontada, ao e com, o peso da gravidade, e, talvez por isso, me tenha enchido de "talvezes" tantas vezes, ao longo da vida. mas que importa isso agora? nada, mesmo nada, é apenas o palanque donde (re) começa a narrativa. chamo-me Selma, o meu nome tem importância e não têm. têm porque assim sempre podes dizer "a Selma", não têm carácter, não tem peso na engrenagem,  a Selma, "coisa pouca", é ninguém. e, no final, dizer: puta que a pariu, escolheu o caminho mais fácil. 
seja. sou a Selma, por conseguinte. cinco letrinhas apenas,  fraca figura, porte de gazela assustada, mosca morta, rata de biblioteca. feito o descritivo, onde é que a Selma entra na história? recordas-te? vou avivar-te a memória. comecemos pelo início. estavas sentado no topo do teu pedestal, no gabinete do fundo. revias a lista interminável do teu dia. um time shequedule complicadíssimo, por sinal, vejo daqui, agora, com este olhar adquirido nesse dia. 
repentinamente, a sirene estilhaçou-te os ouvidos. atropelaste os corredores, engoliste o eco de um grito que, vá lá saber-se porque, te pareceu tão familiar, focaste a lente de repórter de imagem, enquanto que, numa fracção de segundo, todo o filme te passa. te passa ao lado. literalmente. passa-te ao lado. ainda assim, queres que te relate como aconteceu? foi simples, tão sub-liminarmente simples; a linha que separa a vida e a morte é, dizem, de apenas uns segundos, atravessei a rua, subi a escada, subi em busca de um espaço onde o ar não se ramificasse, fosse raiz e caule. procurava, um lugar limpo, arejado, libertário. subi ao terraço, intentei subir além do beiral, e, Ícaro, icei-me à parte mais alta da cobertura. foi quando senti, finalmente, o vento e a vontade de dobrar a aragem de mim própria, de ser qualquer coisa. era a hora. 
e ela chegou; liminarmente, chegou. como um pássaro fugindo da própria sombra. 
vinte uma grama, pesa a alma. agora estou mais leve. ela - desidrato de personalidade -, ficou colada numa estrela, algures; que assim seja, Ámen! é-me confortável tal possibilidade. 
de resto, creio, subiu em forma de pássaro azul; 

agora sou matéria, simplesmente, e, os meus olhos são livres de se despirem dos desejos ocultos, e a mim, finalmente, cabe,  em direito, o direito à descida vertiginosa ao mar onde as ondas são igualmente livres na interpretação dos nadas,

... e  posso,  por conseguinte,  ser aquilo que nunca me lembrei de ser, ou sequer, de imaginar:  Selma. 



imagem da net, desconheço autor

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...