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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 21 de maio de 2013

Hélder ou a encenação do silêncio

[REPUBLICAÇÃO] 

somos o lugar e o domicílio de todas as solidões"
Constantino Corbain

Na "hora do lobo", escreveu, quando lhe entregaram para que preenchesse um formulário complicado.   No espaço destinado ao "local", campo exíguo, por sinal,  apertou as palavras, contraindo-lhes o ar "domicílio de todas as solidões". Deslizou a mão não fosse esborratar a folha e, no fim, no campo das "Observações", declarou: Morte natural, nada mais a declarar.  Para que constasse.  
Levantou-se rígido, encaminhou-se direito ao galinheiro, sangrou o galo capão, molhou o indicador. Depois colocou no local da assinatura a sua marca própria, de analfabeto funcional.  Olhou o impresso, transparente como a linfa, última invenção da sociedade burocrática. Max Weber haveria de jubilar se conhecesse tal incremento da tecnologia. Sorriu de antecipado gozo. Cumprida a missão. Leu [se] em voz alta. Havia falha de informação – não sabia a hora ou sequer a data exacta  a averbar em certidão, o dia de morrer – o seu.  Juiz em causa própria, morrera em todos eles,  como vivera. Disso tinha convicção plena. Sabia que morrera, águas depois,  marés mais tarde, que o cão, fiel companheiro de olhos doces de saudade (também ele há vários anos solitário), seguidamente à hora da  gata de olhos de porcelana e miar de fogo.  A tartaruga, inexpressiva, como convém a tartaruga que se preze, mantinha a obrigação de exigir a cabeça fora das costas a arrastar na tijoleira a  carapaça.  Contudo, o brilho dos olhos estava há um horror de vidas riscado de solidão. Não contava, portanto. Companheira, essa, voara como um fumo em dias vendaval -  não lhe sabia nem queria saber o onde ou para onde nem com quem. Ficara-lhe apenas dela o cheiro em todas as fendas da casa, em todas as gavetas que se recusava a abrir. Em todas as roupas que ela usara e deixara suspensas em cruzetas, dobradas a rigor dentro de cómodas, a par com saquinhos cheios de lavanda e alfazema. Ficara-lhe dela  os pentes, as escovas ainda com resquícios de cabelos (eram de fogo os cabelos, talvez de cobre, não sabia muito bem…), ficara-lhe ganchos, travessas, elásticos e bijutarias de algum valor,  sobre a cómoda de nogueira em  caixas pintadas pelos seus dedos – via claro agora que nunca os beijara, nem chupara. Teriam sabor diferente dos da Filipa ou dos da Joana? Os dela, de Rosália, a que saberiam? Inquietou-se. Um nó estranho apertou-lhe a maça do pescoço. Desapertou-se. Dela  ficara-lhe o cheiro impregnado na cozinha das suas compotas, dos bolos, das iguarias com que durante anos o mimoseara  e aquela mágoa a que chamavam dor de corno, por não ter sido homem para a segurar. Não lhe faltara com nada a não ser com o que, raios as parta, desejam as mulheres – um beijo ao amanhecer e outro, se possível mais longo e mais profundo, antes de dormir, Afinal, homem, podes nem acordar. Ou eu, quem sabe? Ou eu….
Em certos dias nem lhe respondia, noutros, Sim, sim, tá bem, até amanhã, dorme que se faz tarde,
Virava o rabo, olhava as frinchas das portadas, contava carneiros se não adormecia de imediato  – o que era raro –, Que falasse. Quanto a ele,  em dois tempo roncava,  C'os diabos era lá homem de lamechismos?  Beijos dava-os às moçoilas quando rapaz, se as apanhava a jeito num esconso em que as subia e as trepava por todas as colinas, em que lhes prometia a mesa farta do seu corpo.  Desse tempo, ficou-lhe o gosto, retomado a cada dia. Rosália era virgem quando a tomara sua e nunca passou desse estado a seus olhos ainda que neles bailassem luares a agourar a experiência íntima do excesso. Hélder era, por conseguinte canónico com a mulher e putanheiro com as demais. A sua era santa, e, se vinha em mácula – bebido ou tocado pelo pecado da carne fora de portas, não lhe tocava ao de leve,  nem para o beijo de boa noite, Tu vives no Paraíso, Rosália, sabes lá o que é o mundo. É cão, morde as canelas dum gajo, o mundo é mar traiçoeiro a virar traineiras mesmo quando se anuncia mar-chão,
Às vezes o Paraíso, respondia-lhe em surdina, mata mais que o Inferno, mata mais profundo que o mar de onde vens,  e tudo o mais. O fogo é lento e a água ferve em banho-maria, por anos e anos,
Tens tudo, nada te falta, Falta-me a vontade, Pois bem, sim, sim,  faz rendas e bordados, não te obrigo a fazeres mais nada. Já te olhaste em espelho? Não tens marcas de esforços,  estás lisa e luzidia, nem rugas tens (no corpo dela, havia,  sem que as visse, marcas intrigantes de violência –  iam e vinham, a espaços, como as marés  –  amareladas, pardacentas...)

Morreu quando tudo à sua volta começou a morrer, o bolor tomou conta do frigorífico, as plantas do jardim secaram em pleno Inverno, as orquídeas deixaram de florir, o lixo se acumulou pelos quatro cantos da casa.  Morreu no dia em que a viu no jornal na coluna da necrologia. A custo leu a notícia de letras demasiado pequenas para a graduação dos óculos. Recriminou-a, palavroso – era obrigação dela,   só dela, ter providenciado a consulta atempada do oftalmologista, as mulheres têm papeis destinados desde a nascença - cuidar dos pais, dos filhos, dos maridos, Vês Rosália, agora nem sei se estou a ler em condições ou se as letras bailam a enganar-me como tu,  mulher sem préstimo. As lentes estão desfocadas, que bicho ruim não morre nunca, Rosália, o que leio é maquinação tua, mandaste escrever estas palavras para te ilibares e me incriminares a de mim,   puta que te pariu,  ingrata,
                 “Hélder do Carmo encenou a morte de Rosália Lira durante mais de trinta anos de vida conjunta mas foi pelas mãos da própria que a peça subiu a palco", puta que a pariu, repetia para se ouvir,   foi ela quem assim escolheu.

Pela primeira vez em muitos anos sentiu a face molhada. Não chovia. As águas da ria subiram o sobrado onde se encimara. Por ali ficou. Puta que a pariu...


Imagem da net, autor desconhecido.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...