[REPUBLICAÇÃO]
“somos o lugar e o domicílio de todas as solidões"
“somos o lugar e o domicílio de todas as solidões"
Constantino Corbain
Na "hora do lobo",
escreveu, quando lhe entregaram para que preenchesse um formulário
complicado. No espaço destinado ao "local", campo exíguo, por sinal,
apertou as palavras, contraindo-lhes o ar "domicílio de todas as
solidões". Deslizou a mão não fosse esborratar a folha e, no fim, no
campo das "Observações", declarou: Morte natural, nada mais a declarar. Para que constasse.
Levantou-se
rígido, encaminhou-se direito ao galinheiro, sangrou o galo capão,
molhou o indicador. Depois colocou no local da assinatura a sua marca
própria, de analfabeto funcional. Olhou o impresso, transparente como a
linfa, última invenção da sociedade burocrática. Max Weber haveria de
jubilar se conhecesse tal incremento da tecnologia. Sorriu de antecipado
gozo. Cumprida a missão. Leu [se] em voz alta. Havia falha de
informação – não sabia a hora ou sequer a data exacta a averbar em
certidão, o dia de morrer – o seu. Juiz em causa própria, morrera em
todos eles, como vivera. Disso tinha convicção plena. Sabia que morrera, águas
depois, marés mais tarde, que o cão, fiel companheiro de olhos doces de
saudade (também ele há vários anos solitário), seguidamente à hora da
gata de olhos de porcelana e miar de fogo. A tartaruga, inexpressiva,
como convém a tartaruga que se preze, mantinha a obrigação de exigir a
cabeça fora das costas a arrastar na tijoleira a carapaça. Contudo, o
brilho dos olhos estava há um horror de vidas riscado de solidão. Não
contava, portanto. Companheira, essa, voara como um fumo em dias
vendaval - não lhe sabia nem queria saber o onde ou para onde nem com
quem. Ficara-lhe apenas dela o cheiro em todas as fendas da casa, em
todas as gavetas que se recusava a abrir. Em todas as roupas que ela
usara e deixara suspensas em cruzetas, dobradas a rigor dentro de
cómodas, a par com saquinhos cheios de lavanda e alfazema. Ficara-lhe
dela os pentes, as escovas ainda com resquícios de cabelos (eram de
fogo os cabelos, talvez de cobre, não sabia muito bem…), ficara-lhe
ganchos, travessas, elásticos e bijutarias de algum valor, sobre a
cómoda de nogueira em caixas pintadas pelos seus dedos – via claro
agora que nunca os beijara, nem chupara. Teriam sabor diferente dos da
Filipa ou dos da Joana? Os dela, de Rosália, a que saberiam?
Inquietou-se. Um nó estranho apertou-lhe a maça do pescoço.
Desapertou-se. Dela ficara-lhe o cheiro impregnado na cozinha das suas
compotas, dos bolos, das iguarias com que durante anos o mimoseara e
aquela mágoa a que chamavam dor de corno, por não ter sido homem para a
segurar. Não lhe faltara com nada a não ser com o que, raios as parta,
desejam as mulheres – um beijo ao amanhecer e outro, se possível mais
longo e mais profundo, antes de dormir, Afinal, homem, podes nem
acordar. Ou eu, quem sabe? Ou eu….
Em certos dias nem lhe respondia, noutros, Sim, sim, tá bem, até amanhã, dorme que se faz tarde,
Virava o rabo, olhava as frinchas das portadas, contava carneiros se não adormecia de imediato – o que era raro –, Que falasse. Quanto a ele, em dois tempo roncava, C'os diabos era lá homem de lamechismos? Beijos dava-os às moçoilas quando rapaz, se as apanhava a jeito num esconso em que as subia e as trepava por todas as colinas, em que lhes prometia a mesa farta do seu corpo. Desse tempo, ficou-lhe o gosto, retomado a cada dia. Rosália era virgem quando a tomara sua e nunca passou desse estado a seus olhos ainda que neles bailassem luares a agourar a experiência íntima do excesso. Hélder era, por conseguinte canónico com a mulher e putanheiro com as demais. A sua era santa, e, se vinha em mácula – bebido ou tocado pelo pecado da carne fora de portas, não lhe tocava ao de leve, nem para o beijo de boa noite, Tu vives no Paraíso, Rosália, sabes lá o que é o mundo. É cão, morde as canelas dum gajo, o mundo é mar traiçoeiro a virar traineiras mesmo quando se anuncia mar-chão,
Às vezes o Paraíso, respondia-lhe em surdina, mata mais que o Inferno, mata mais profundo que o mar de onde vens, e tudo o mais. O fogo é lento e a água ferve em banho-maria, por anos e anos,
Tens tudo, nada te falta, Falta-me a vontade, Pois bem, sim, sim, faz rendas e bordados, não te obrigo a fazeres mais nada. Já te olhaste em espelho? Não tens marcas de esforços, estás lisa e luzidia, nem rugas tens (no corpo dela, havia, sem que as visse, marcas intrigantes de violência – iam e vinham, a espaços, como as marés – amareladas, pardacentas...)
Em certos dias nem lhe respondia, noutros, Sim, sim, tá bem, até amanhã, dorme que se faz tarde,
Virava o rabo, olhava as frinchas das portadas, contava carneiros se não adormecia de imediato – o que era raro –, Que falasse. Quanto a ele, em dois tempo roncava, C'os diabos era lá homem de lamechismos? Beijos dava-os às moçoilas quando rapaz, se as apanhava a jeito num esconso em que as subia e as trepava por todas as colinas, em que lhes prometia a mesa farta do seu corpo. Desse tempo, ficou-lhe o gosto, retomado a cada dia. Rosália era virgem quando a tomara sua e nunca passou desse estado a seus olhos ainda que neles bailassem luares a agourar a experiência íntima do excesso. Hélder era, por conseguinte canónico com a mulher e putanheiro com as demais. A sua era santa, e, se vinha em mácula – bebido ou tocado pelo pecado da carne fora de portas, não lhe tocava ao de leve, nem para o beijo de boa noite, Tu vives no Paraíso, Rosália, sabes lá o que é o mundo. É cão, morde as canelas dum gajo, o mundo é mar traiçoeiro a virar traineiras mesmo quando se anuncia mar-chão,
Às vezes o Paraíso, respondia-lhe em surdina, mata mais que o Inferno, mata mais profundo que o mar de onde vens, e tudo o mais. O fogo é lento e a água ferve em banho-maria, por anos e anos,
Tens tudo, nada te falta, Falta-me a vontade, Pois bem, sim, sim, faz rendas e bordados, não te obrigo a fazeres mais nada. Já te olhaste em espelho? Não tens marcas de esforços, estás lisa e luzidia, nem rugas tens (no corpo dela, havia, sem que as visse, marcas intrigantes de violência – iam e vinham, a espaços, como as marés – amareladas, pardacentas...)
Morreu
quando tudo à sua volta começou a morrer, o bolor tomou conta do
frigorífico, as plantas do jardim secaram em pleno Inverno, as orquídeas
deixaram de florir, o lixo se acumulou pelos quatro cantos da casa.
Morreu no dia em que a viu no jornal na coluna da necrologia. A custo
leu a notícia de letras demasiado pequenas para a graduação dos óculos.
Recriminou-a, palavroso – era obrigação dela, só dela, ter
providenciado a consulta atempada do oftalmologista, as mulheres têm
papeis destinados desde a nascença - cuidar dos pais, dos filhos, dos
maridos, Vês Rosália, agora nem sei se estou a ler em condições ou se as
letras bailam a enganar-me como tu, mulher sem préstimo. As lentes
estão desfocadas, que bicho ruim não morre nunca, Rosália, o que leio é
maquinação tua, mandaste escrever estas palavras para te ilibares e me
incriminares a de mim, puta que te pariu, ingrata,
“Hélder do Carmo encenou a morte de Rosália Lira durante mais de trinta
anos de vida conjunta mas foi pelas mãos da própria que a peça subiu a
palco", puta que a pariu, repetia para se ouvir, foi ela quem assim escolheu.
Pela
primeira vez em muitos anos sentiu a face molhada. Não chovia. As águas
da ria subiram o sobrado onde se encimara. Por ali ficou. Puta que a
pariu...
Imagem da net, autor desconhecido.