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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 26 de março de 2008

II Cap. "Os 1ºs passos"

(ler Cap. I)
“No silêncio da terra.
Onde ser é estar.
A sombra se inclina. Habito!
Dentro da grande pedra de água e Sol.
Respiro sem saber, respiro a terra!”
ANTÓNIO RAMOS ROSA - “NO SILÊNCIO DA TERRA”


Dera-os a medo, como a medo daria todos os que se lhe seguiriam. Depois de muitos dias dentro de uma redoma de vidro, com cuidados médicos continuados, Lia veio finalmente para casa, onde a aguardavam primas e tias, vizinhas e comadres. Linda não tinha leite, secara com raiar dos primeiros dias seguintes ao parto. Ou não tinha o suficiente. Lia chorava a bons pulmões, um choro tão estridente que nada faria acreditar emergir daquele ser rosado como um bacorinho. A cabeça não tinha um único cabelo, a pele engelhada, negra nos primeiros dias, aos poucos revelara-se branca e rosada.

Quando finalmente abriu os olhos, Linda agradeceu a Deus o que estava a ver. Lia tinha os olhos de um azul-verde, de um verde-azul, tão profundo, tão intenso, como os tivera o avô materno. O tempo revelaria que estes se metamorfoseavam, tal qual um camaleão, em presença do mar, do azul do céu, do verde da floresta, ou ainda se tornavam cinzentos nos dias de Outono, cor de azeitona verde, no final da Primavera. A ira tornava-os mais belos, indecifráveis, a felicidade ou o riso, humedeciam-nos tal bruma, maresia. Linda percebeu que aquela criança era duma dádiva e uma ameaça. Sentiu desde os primeiros momentos que Lia ia muito para além do que seria uma criança normal. Revelara-se um bebé enigmático, misterioso, apocalíptico, que atraía desde o berço, e por toda a vida, ódios e rancores, invejas e antipatias. Que o digam o gato, que nos primeiros dias de vida lhe aterrou no berço, sulcando-lhe a cara com uma linha fina. Que o digam as melgas que lhe espicaçavam impiedosas o corpo pequeno, malgrado de, nas redondezas disporem de proeminências abundantes onde aterrar e, ao invés disso, optarem sistematicamente por construir na pele de Lia um brocado de pontos vermelhos.

A jovem mãe não sabia como resolver tais questões. Ninguém mais padecia de mal igual, a não ser a sua estranha filha. Criava em sua volta uma espécie de casulo de pano fino, por onde Lia espreitava o mundo, até ao dia em que a pequena criatura, ousou mergulhar de cabeça para outra dimensão, o patamar inferior do berço.
Aí entrou a sua primeira amiga, uma cadela rafeira, que desde a sua chegada a casa, naqueles fins de Janeiro, decidira montar guarda junto ao berço, protegendo desta forma a criatura dos avanços lambuzados das tias e primas e dos ataques enciumados do gato da vizinha. O bafo da cadela e o seu pelo espesso, foram o antídoto para que aquela aventura se não tivesse transformado numa viagem sem regresso.

Ousamos então a história:
Era Inverno, a criança dormia. A mãe decidiu que a poderia muito bem deixar por uns minutos e ir tratar da vida. A pacatez da aldeia era avessa a grandes cuidados. Pois ficaria, ficaria a dormir. Cerca de uma a duas horas depois, quando finalmente Linda regressou ao quarto, feitas as compras na mercearia da aldeia, encontrou o berço vazio. Lívida, correu em busca de socorro, achando que Lia havia sido roubada. Roubada, sim senhor, que a enfermeira nunca se convenceu que aquela criança não seria sua para sempre. Bem que a tentou, “a Linda é nova, pode ter muitos filhos, os que desejar, pois Deus não lhe há-de negar tal bênção … já eu, nunca casei, já estou velha, não posso ter ninguém para me acompanhar nos meus últimos dias...”.

A história repetida inúmeras vezes, na maternidade ainda e depois, quando a enfermeira apareceu na aldeia, alegando querer ver o bebé, uma e outra vez, foi aos poucos ensombrando de terror, Linda. Temia que alguma distracção lhe levasse a cria, e os seus maiores receios pareciam agora concretizados.

“Foi ela, foi ela, espiou-me os passos e veio cá na minha ausência, roubou-me a criança, roubou-me, roubou-me.... Estou perdida, estou perdida...” Gritava entre soluços, num desnorte de sentidos. A seus pés, a cadela confusa, latia e lambia-lhe as pernas, como incentivando à procura, ao agachamento, ao encontro. Mas não, Linda estava certa de que algo de muito errado havia acontecido, que Lia estava já longe, talvez na cidade grande, ou quem sabe, se calhar a caminho de África, num qualquer paquete. Não havia a enfermeira dito que tinha família a bordo do Santa Maria? Vá-se lá saber a que manhas poderia ter recorrido para a afastar para sempre da sua criança.

Os vizinhos acorreram aos gritos de dor e perda. O ti’ Alonso, manco de nascença, corcunda disforme, o seu pai, um homem alto e magro, que havia perdido uma perna na guerra civil de Espanha, e que, em sua substituição tinha agora uma perna de pau, a nora e mulher do primeiro, alta e magra, de profundos olhos azuis (muitos anos mais tarde, esta relação haveria de causar a Lia grandes espantos), a empregada de ambos, também ela manca, vítima de uma queda em pequena e, por fim a prima Briolanja de Sollis, moçoila ainda, esguia e seca como a mãe.
“Onde está, onde não está?...” – indagavam-se em uníssono. Ralhavam, esconjuravam e repreendiam:
-Insensata mãe!!!
“Como é que te deu para deixares a menina sozinha, então não seria melhor ir lá leva-la a casa, um de nós tomaria conta dela?...”
Que sim, sim senhor, tinham razão, que não tinha querido incomodar...
Oh, como lamentava agora a sua parvoíce e, mais lamentava, ter ido algum dia parar àquela maternidade, que só lhe houvera trazido tristezas. Não fora lá que assinara a papelada para a venda do Casal dos Anjos, a desejo dos primos e tias? Ainda mal refeita estava dos trabalhos do parto, e já a seu lado, tal corvos agoirentos ou abutres sobre carne seca, o oficial de justiça, mais a primalhada, lhe houveram estendido a papelada? Que era o melhor, vendia-se aquela parte e pronto. Ainda ficava muita terra para cultivar, afinal todos estavam a seguir as suas vidas, nas fábricas novas junto ao rio. O ordenado era certo, quer chovesse, quer ventasse. Já no amanho da terra, um homem não podia confiar, conforme o vento, assim o sustento.
Que pensasse na filha que tinha nas braços, que se não criava com pó e água. E, se a cimenteira queria comprar, o melhor era vender, vender já, antes que mudassem de opinião e decidissem fazer a proposta de compra a outros.
Com o dinheiro da venda, dividido pelos herdeiros, cinco vivos, ainda poderiam construir umas casas novas, mais perto do rio, no sopé do monte, havia quem quisesse vender uns metros de terreno, a um bom preço, bem se vê que muitas vezes mais caro o metro quadrado que eles estavam a vender o Casal …

“mas também, rapariga, não compares, o Casal dos Anjos de Anjos só tem nome, é um inferno de breu, quando a noite cai, não passa lá vivalma, os bailes do Maré já há muito que acabaram, a mocidade já não atravessa a serra, em busca de diversão. Na aldeia é que está tudo, a escola, não queres que a tua filha vá à escola?... O médico – sim porque o médico da Juta, vai deixar de ir ver doentes aos montes, que já está a ficar velho, não te lembras o martírio que foi quando tiveste o tifo, que o médico te tinha de ir ver de dois em dois dias? O nosso avô vinha buscá-lo à vila na charrete, mas isso acabou, a galera já foi vendida, e as mulas estão doentes... o que esperas para assinar?”…

Assinou, a contra gosto, muito a contra gosto, mas assinou. No fundo, também achava aquela oportunidade de ter uns tostões e de construir uma pequena casa, uma oportunidade, talvez única. A sua vida até ali, não obstante ser neta de quem era, (por segundos recordou o avô, o dia fatídico em que foram dar a notícia da morte, daquela morte tão estupidamente trágica… o seu avô, António de Carvalho, lavrador abastado e respeitado das serranias aos juncais do rio…) decorrera num quadro da maior miséria e austeridade.
Por uns segundos, toda a sua vida de vinte e poucos anos, correu veloz na sua mente. Deteve-se de chofre no preciso momento em que encontrara o berço vazio. Que seria a sua vida dali por diante? Estava a ser castigada, Deus é grande, castiga a ferros quem a ferros mata. E ela, Linda, matara. Matara o fruto do seu ventre poucos meses antes da morte do seu pai, poucos meses depois da morte do seu avô (como lamentava aquela atitude... afinal tudo se havia de criar, pensara mais tarde... chorara mais tarde, tarde de mais. Mas quando se descobriu grávida, orfão de pai, orfão de avô... decidiu que não era tempo de ser mãe... matara!) E matara para sempre o amor do e pelo seu marido. Para sempre ...
Disso tomaria consciência gradualmente ao longo de uma vida inteira e em particular, no momento em que um fio de sangue vermelho escuro, manchou o branco do leito da sua morte...

A cadela latia agora incessantemente, as lágrimas rolavam grossas dos olhos abismados de todos os presentes, abraçados uns aos outros, impotentes, sem saber o que fazer, o que dizer, o que sentir.... Linda, mais do que todos, sentia-se perdida. Aos poucos um silêncio mórbido apoderou-se do quarto, a porta aberta para a rua, deixava entrar o frio de Inverno. Os corpos gelados, petrificados olhavam no vazio, quando, como que saído das entranhas da terra, um gemido ténue se fez ouvir. E outro, e outro, e uma berraria de choro, uma onda de som, atravessando o gelo, quebrando o silêncio, tudo a um só tempo.

Linda estremeceu, impulsionada por mil molas, olhou no sentido de onde vinham os berreiros, num crescente contínuo. Ao mesmo tempo todos os seis pares de olhos - cinco dos humanos mais a cadela -, acompanharam os seus e deram de chofre com uns olhos enormes, esbugalhados, verde-jade, verde-raiva. E viram um corpo franzino, envolto num coxim de malha, duas pernas roxas já de frio, duas mãos mais roxas ainda. Não sabiam o que dizer, o que pensar, o que fazer …como tudo aquilo acontecera, Santo Deus? Como?...

Como por magia, Lia, parou de chorar. Um sorriso escancarou-lhe a boca sem dentes, os braços estenderam-se na direcção do alto. Linda agarrou-a com fúria contra o peito, de tal forma que, por breves instantes, mãe e filha se fundiram numa só carne. Num abraço de carne. Desejou ainda não ter parido, desejou proteger no ventre redondo a carne da sua carne e logo depois, se penalizou por tal insanidade.

Desse dia, ninguém mais falou, a estória da enfermeira foi abandonada, mas Lia haveria de desaparecer muitas e muitas vezes, durante o primeiro ano da sua Vida, não para debaixo da cama, como desta vez, mas envolta num cobertor branco, que com o tempo tão bem conhecia, ao colo de um qualquer dos presentes nesse dia, para a casa vizinha. Para tanto, bastaria, que um familiar som
“Lia, anda, Lia linda vem... (o apelo, o ninho quente) … vem Lia … ahaaahh” se fizesse ouvir e, dois braços esticassem no ar o branco cobertor, para que, insana criança, não tivesse mais quietude. Saltava, tinha molas e, tal enguia, flutuava, rio adentro - que era como que se diria - na direcção do carinhoso chamo. Voava! Voaria para sempre...

Linda, já sabia que, se não a encontrava na casa, nos momentos em que se ausentava, era bem provável que tivesse voado pela janela contígua à janela da vizinha. Esses seriam os seus primeiros voos de andorinha, a caminho de um beiral amigo.
Lia era uma andorinha em corpo de menina …

in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia dos sentidos" © Todos os Direitos Reservados

sábado, 22 de março de 2008

I Cap. "A viagem"

Começara a viagem, há muito, muito tempo, há tanto que já não seria capaz de saber com exactidão o dia em que tudo tomara forma. Ouvira falar de uma noite, em 1961, em que um paquete, de seu nome “Santa Maria” fora por motivos políticos desviado da sua rota. O navio, propriedade da Companhia Colonial de Navegação, segundo apurou muitos anos mais tarde, fora tomado por oposicionistas ao governo salazarista, comandados por Henrique Galvão, em 22 de Janeiro de 1961, tendo acabado por fundear no porto do Recife, no Brasil, em 2 de Fevereiro seguinte, sendo perseguido em mar alto pela Armada Portuguesa e outras esquadras. Nessa noite da tomada, 22 de Janeiro, Linda Carvalho dera entrada de urgência na Maternidade Alfredo da Costa. Quarenta anos mais tarde, Lia, sua filha, iria ela própria, pela primeira vez, tocar o solo do Recife, voando a bordo de um Air Bus 310 da TAP.

Mas retomemos a nossa estória …

No paquete, com 970 pessoas a bordo, vivia-se um clima de terror. Ninguém sabia ao certo o que estava a acontecer, as motivações dos revoltosos e, mais do que isso, o que ali estava a começar. Galvão de Melo, cabecilha do assalto ao paquete, nunca imaginaria que, ao mesmo tempo que decorria a operação a bordo, numa qualquer sala de um qualquer hospital, três pessoas se debatiam em fazer nascer uma criança que, contrariando todas as expectativas, decidira tenazmente abrir os pulmões para a vida, não rodeada de mesinhas caseiras, parteiras de aldeia e caldos de galinha, mas assistida por profissionais, na cidade grande.

A noite havia caído gélida naquele Janeiro de 1961, depois de um dia inteiro em que o Sol teimara em não brilhar. A humidade trespassava os ossos, penetrava nas roupas, gerando em torno dos corpos uma auréola fria e espessa. Linda fora sempre uma mulher lutadora e não seria a ameaça de mais uma noite sem dormir suficiente para que se deixasse dominar pelos medos.

As dores iam e vinham, a espaços, envolvendo-lhe os rins num calor avassalador. Lia, ainda dentro do ventre de sua mãe, iniciara a “Viagem”. São Sebastião da Pedreira, seria o primeiro ponto no conto da sua vida.

Voltemos a Linda: Os cabelos escuros em desalinho, as gotículas minúsculas de suor, na sua base, eram os únicos vestígios da luta que estava a travar à quase quarenta e oito horas, com aquele ser. As entranhas revoltas, pungentes de vida impunham-lhe e impunham-se, obrigando a que todos os ritmos da casa parassem.

Primas, tias e comadres, aguardavam na casa de entrada, o choro da criança; na cozinha a água continuava a ferver, em grandes caldeirões, as toalhas brancas do enxoval há muito que haviam sido lavadas, libertas de gomas, esperando agora momento oportuno para serem introduzidas nas panelas, escaldadas.

A parteira, tia e madrinha da parturiente, revezava-se à cabeceira da cama, com as tias velhas. Linda olhava à sua volta, observando o circo, com um misto de tristeza e ansiedade. O luto visitara havia pouco a sua família, levando-lhe o pai para sempre. Mas não fora só esta figura masculina que perdera nos últimos meses.

O avô, a personagem mais carismática de toda a sua infância, também ele havia partido há pouco mais de um ano atrás, numa manhã de soalheira de Abril. Partira como vivera, em apogeu e pompa, sentado no alto da galera, vestido com o seu melhor gabão, apoiado no bengali de que se não separava nunca. Uma lomba da estrada fora para ele o encontro com o além e, num dos raros momentos em que a Estrada Nacional 10 era atravessada por algo mais do que burros e mulas, António de Carvalho, cruzou a sua vida com um automóvel Ford preto, recém adquirido, de carroçaria reluzente. Fora o brilhar da viatura ou o refulgir dos primeiros raios de Sol, o certo é que os cavalos se assustaram, se empinaram, a galera perdeu o norte, num ápice, cavalos, cavaleiro, bengali e gabão, serpenteavam o asfalto.

Diz quem o viu, que o sangue lhes escorria em fio das narinas – às montadas e ao montador. Dizem ainda que, malgrado o que se passara, António de Carvalho, partira desta Vida com um sorriso rasgado nas feições duras.

A noite havia-a passado na casa de uma amante, e os primeiros raios de Sol despertara-o para a urgência de voltar ao Casal dos Anjos e da Oliveirinha. As tarefas agrícolas não se compadeciam da luxúria, e nisso, António era o ser humano mais exigente.

Preparara a sua filha mais velha para lhe suceder. Na restante prol, cinco ao todo, não reconhecia competência. Mas o destino quisera que mesmo a sua primogénita se afastasse de si, perdida de amores por um homem letrado da cidade. Tantos anos despendidos a fazer dela um macho de comando, a investir na sua acreditação junto dos ranchos de mulheres, a fazer dela a sua melhor obra, tudo perdido a troco de nada.

António havia em 1901 comprado o Casal dos Anjos e quatro anos depois, o Casal da Oliveirinha. Duas belas propriedades que se espraiavam por duas encostas de serra, num declive acentuado, culminando num planalto. Aí havia erguido a sua casa, criado os seis filhos que a vida lhe dera, amado a esposa roliça e ruiva, noite a dentro, com volúpia e mestria, até ao dia em que esta, cansada das traições do marido, lhe trancou para sempre as portas os seu quarto, e o privou em casa própria dos prazeres da carne.

Fora de portas, no milho, nas vinhas, no trigo ou no curral, António exercia sem pudor o direito de pernada, deixando marcas da sua passagem desde as orlas do rio que corria grande alagando as lezírias, até à serrania mais próxima, onde os pinheiros mansos, de tão fechados não deixavam ver o chão.

Deste avô, Linda herdara a temperança e o determinismo, com que havia de pontilhar, a ponto pé-de-flor o matiz da sua Vida.

A perda destes dois homens deixara um manto negro na casa. Janeiro reforçara este pendor, de uma forma tão intensa, que nem o cheiro a cera recém aplicada no soalho de madeira, nem os lençóis aureolados a renda, pareciam ser capazes de o romper.

Aguardava-se a chegada deste bisneto de António como se de um Deus se tratasse. A casa grande urgia de risos e correrias. As primeiras perdas já haviam acontecido, com a separação dos filhos, com a venda de bens e haveres. A década de sessenta foi para o Casal dos Anjos e Oliveirinha o começo da derrocada, a pedreira iria reduzir nos anos que se seguiram, uma boa parte dos terrenos a pó e nada…

O episódio ocorrido em nessa noite de 1961, protagonizado por Henrique Galvão, a tomada de assalto ao navio e a declaração de que este era espaço português independente do Governo - com o intuito de chamar a atenção dos media internacionais para a situação política portuguesa – realmente bem noticiado na imprensa internacional, em Portugal, face a uma informação demasiado controlada, chegou numa versão oficial pouco intensa em relação à dimensão dos acontecimentos. Marcou contudo de forma determinante a hora do nascimento de Lia. Viria a ser, ao longo de muitos anos tabu, do qual pouco se falava, se bem que a população, vivendo uma ditadura, procurava saber mais, interpretava e reinterpretava o que ouvia, do que se falava em voz baixa, à mesa da taberna, entre amigos. Na família o registo fazia-se mais em torno da fabulação do nome, Maria Santa, que, por momentos, a criança estivera quase a ganhar.

Nesse mesmo mês no norte de Angola desencadeia-se a abertura da primeira frente de guerra em África. Alguns repórteres no local registam o que se passa, antevendo-se já um futuro sem hipótese de fuga ao conflito...

Nesse mesmo ano, 1961, o astronauta soviético Iuri Gagarine torna-se o primeiro Homem no espaço, ao ser colocado em órbita, a bordo da nave "Vostok 1".

Na rádio surgem as primeiras notícias. Os acontecimentos de 23 de Janeiro de 1961, são relatados na emissora nacional, pela primeira vez, passam escassos minutos da meia-noite.

Linda está agora deitada na cama do hospital. O negro que antes a envolvia não existe mais, a luz é difusa, amarelada, um forte cheiro a éter paira no ar, a calmaria do ambiente que se encontrara horas antes, quando a ambulância a deixara à porta principal, de repente, de uma forma inexplicável, quebra-se. Os murmúrios e o bichanar nas salas contínuas elevam-se gradualmente. Linda apercebe-se de que algo de muito estranho se estava a desenrolar.

A curiosidade aguça-lhe os sentidos, quer saber, quer participar, mas não pode, contudo. Está fora do seu ambiente, no meio de estranhos envoltos em batas brancas e, ao invés das tias e das primas, estes pouco se interessam pelo estado do seu ventre, pelas dores que a cada momento vêm e vão mais rápidas. Só um pequeno objecto, em cima da mesa do canto, parece colher as suas atenções. Os corpos vão-se acotovelando, sobrepondo, sentidos alertas, suspensos às palavras parcas da emissora. Desejam-se notícias, detalhes, pormenores.

Repentinamente, como um trovão, o ventre abre-se, refulja. Linda grita, perde o controlo, clama socorro, invoca os mortos e os vivos, abre-se. Um líquido quente inunda-lhe o baixo-ventre, ensopa-lhe a cama, algo nunca sentido a atravessa como uma espada, arqueja, agarra-se às barras da cama de ferro esfolada e velha, deixa que aquele mar a invada sem medos.

No alto mar, a trovoada faz-se sentir, o paquete inclina-se perigosamente numa curva de cento e oitenta graus, os gritos dos mareantes juntam-se aos dos tripulantes, o comandante acalma as hostes.

O médico aproxima-se rapidamente da cama, a parteira afasta as pernas num ângulo raso, uma pequena cabeça irrompe pelo orifício massacrado, a parteira recebe-a com ambas as mãos, roda-a lentamente “força, rapariga, faz força agora, disseram-me que eras valente, onde está essa garra e essa genica?”.

Afaga-lhe o ventre refulgente, como se de um melão se tratasse, segura-lhe as costas, impulsiona-lhe o corpo, fala manso, com uma voz quente e segura, a sala é invadida por mil espíritos. Linda invoca os seus, chama pelo pai, pelo avô, por todas as suas perdas, confia-lhe o seu tesouro, fecha os olhos e deixa-me conduzir. Nesta passagem, como nas que se seguiriam, sente que não está sozinha.

Sorri. Duas grossas lágrimas sulcam-lhe o rosto, misturaram-se com o suor, com o sal que vem do mar, do mar de Lisboa, na espuma das ondas, de um mar revolto.
Lia, por fim, depois de mais de cinquenta horas de luta, desperta para a vida, envolta num manto de emoções contraditórias.

Nasce negra, muito negra, de muitas e muitas horas de sofrimento. O corpo minúsculo não reage, não solta um choro.
"Maria Santa, chamar-se-á Maria Santa” – assevera a parteira, imbuída com o espírito da aventura daquele dia – Santa Maria. “Fedelha, estás a ouvir, Maria Santa?... Reage, chora"!...!

Não que não queria! Lia não queria chorar! E choraria tanto, tanto, ao longo da sua vida, desta vida que agora se (re)acendia num corpo branco e numa alma retinta... ninguém viu, deu sinais, mas nunca ninguém viu... era negra, de pele branca vestida. Sorriu... ninguém viu!

Elevam-na, a parteira segura os pés, o corpo de cabeça para baixo – foi daí certamente que lhe ficou o vício – o mundo às avessas, tudo ao contrário.
As mãos encontraram as suas pequenas nádegas, a dor impulsionou-lhe o ar, os pulmões abrindo, o choro a invadir a sala. Linda olhava agora aquele ser minúsculo: uma menina. A sua menina. Negra (todas as andorinhas têm uma face negra).

Lia era uma andorinha num corpo de menina. Mas isso só saberia muito mais tarde, na longa viagem da sua existência.

Contrariando o desejo do médico e da enfermeira, a criança não seria Maria Santa, em homenagem ao paquete, e aos heróis de cuja vida pouco saberia durante os primeiros vinte anos da sua existência, mas Lia, como a madrinha. Também não seria Mavilde Celina, como Linda desejava, nem sequer Ana Maria, para glórias do pai, mas Lia. Apenas Lia, um pequeno nome seguido de um nome enorme, com “des” e tudo… e, contudo, curiosamente, aquele nome, o que desejara para a sua filha, era um nome Africano.
“Não há coincidências”...

Rumo a Port Everglades, na Florida, o Santa Maria havia prosseguido a sua viagem, agora já sob o comando dos homens fiéis a Henrique Galvão. Tal como com Linda - cuja rota fora alterada à última hora, fazendo com que, e contrariamente a tudo o que estava estabelecido, rumasse rumo a Lisboa para dar à luz a sua criança - , também o Santa Maria vê alterado o seu rumo agora para Leste, aproximando-se da Ilha de Santa Lúcia. Seria porventura esta manobra comprometedora do êxito final, a verdade é que, ao desembarcar dois feridos e cinco tripulantes, Henrique Galvão, colocara em causa a possibilidade de atingir África sem ser detectado, o que viria a acontecer efectivamente, no dia 25. Ao cruzar-se com um cargueiro dinamarquês, o Santa Maria trai a sua posição e, em consequência, é localizado por um avião norte-americano, sem ter conseguido chegar a bom porto: África.

O nome de origem africana. “Mavilde Celina”. África, para onde deveria ter rumado o Santa Maria, África para onde rumam todos os anos as andorinhas. Lia era uma andorinha num corpo de menina, sim! Percebeu tudo isso muitos, mas muitos anos depois. Então, havia sido, noutro tempo, num tempo para além do tempo “Mavilde, Mavilde Celina”. Um nome, uma melodia...
Curioso, tão curioso …ouvia agora claramente... "Celina, Celina..." Uma estranha melodia …
A vida, Lia, a vida e o passado, não se esquecem de nós! Jamais.

A prova, outra prova! Então havia sido Celina... e agora Ana, sua filha, dizia-lhe que, se um dia fosse mãe de uma menina, esta seria “Melina"... Ana nem sabia desta estória... a proximidade fonética … espantosa.

A vida passa a linhas escritas, num papel, o que deixa para além das brumas, das neblinas, nos confins dos tempos. Numa intemporalidade desconhecida.
O comboio em movimento.

Lia projectava esta  nos vidros embaciados da carruagem e, levemente, o pensamento esvoaçava... Estava em África, brincava com outros meninos, dançava nua, era feiticeira, era maga... Era negra, negra retinta, com olhos de safira! Mergulhava num mar verde, num mar de corais... e era feliz!

Fechava os olhos e via-se claramente, correndo pela selva conhecida, sempre seguida do menino da sua vida. “Corre Lia, corre, que te apanho... vou apanhar-te”. Apanhava. Ela ria, ria tanto. E fugia, fugia de novo. Ela era a Lua Fugidia. E ele? Ele era a outra voz. O outro lado dela mesma! Era o rio, era a selva, era a tarde em que se embalava. Lia era feliz ... em África. Convivia com os animais, falava a língua dos animais. Não tinha medo, não estava parada num corredor da vida, não seguia trilhos alinhados, num comboio de freios mal lubrificados. Era vento, era chama, seguia a garra do instinto, abria caminhos, abria a pulso, a dente, as lianas da sua vida. Enleada, ouvia o chilrear dos pássaros. E passava, passava sempre. Lia era uma menina guerreira, lutadora, tinha sonhos. Em África, era feliz.

No comboio em movimento. Sentia o nó, o aperto... o filme chegava ao fim... terra queimada, sanzalas destruídas, vidas e corações separados... O seu, ficara lá? Não sabia... onde estava?
Lentamente, num gesto desolado, com a mão aberta, limpou o vidro numa circunferência ovalada, espreitou, leu as letras ... Estava em Entrecampos.

Uma circunferência ovalada! A oval, a circunferência distorcida! A circunferência – uma recta unida. A recta – segmento de recta: a união de pontos, prolongada até ao infinito. E um corpo em “Pi”. O que era mesmo o “Pi”? Aulas de geometria, de geometria descritiva, as linhas feitas a tinta-da-china, sobre o papel cavalinho. Um cavalinho branco – que nunca tivera -, nem um príncipe alado, para a levar, Fada Morgana, Feiticeira Meldemim, para as Brumas de Avalon... Sorria! Ou um cavalo guerreiro, num campo de batalha em África. Era guerreira! Claramente!

A 2 de Fevereiro, o "Santa Maria" ancorou no porto brasileiro do Recife, procedendo ao desembarque dos passageiros e tripulantes. A 2 de Fevereiro, Linda deixou por fim o hospital e fundeou âncora no sopé do planalto que a vira crescer… e onde Lia se faria mulher. “Não há coincidências” …

A 4 de Fevereiro, em Luanda, deflagram incidentes graves, seguidos, em Março, do início da guerra no Norte de Angola, que obrigaria o Governo de Lisboa a uma tomada de posição, nomeadamente com o envio de reforços militares. Em Abril embarcam os primeiros contingentes de mancebos, visando proteger as colónias…

Lia mulher viajava agora… Entre campos, a sua essência dividida. Um pé em cada Continente. Não era deste tempo, não era desta Era, e nem sequer era deste corpo. Entrecampos. Estava entre campos...

in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia dos sentidos"
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domingo, 16 de março de 2008

... a montanha aguarda-nos

Varro a noite em gestos baços na procura breve de já ser dia.
Aspiro do pomar ao lado o aroma perene de maçãs, de laranjas, de romãs.

A lavra recente solta para o ar o bafo da terra quente.
A nogueira eleva braços ao ar, agita-se em ansiedade humilde de te abraçar. Um fruto cai, é noz aberta, casco de barco, em busca do aconchego decifrado do teu mar. Noz quebrada, rebola no negro da noite e encontra o gelo do alcatrão da estrada.

Abro as portadas, afasto as rendas das cortinas, desembacio janelas.
Atento com mil cautelas no peso dos passos cansados dos guardadores de sonhos e de gado.
A montanha aguarda-os.

A montanha aguarda-nos, pastores de longa jornada.
É prato lauto, d’erva tenra, macia, aspergida - é cidadela fortificada na unidade da vida.
Bebe-nos a essência, roubando, no desafio de comum medo, em recato e desejo segredado, um a um, lentamente, devagar, todos os beijos demorados no cetim do nosso olhar.
O Sol pesponta, tímido garoto. Tremeluzente, solta os cabelos revoltos p’los montes. Ao longe e logo aqui, a fraga secular refulge evidente na pigmentação d’azeviche.

Desacatamos ventos, impomos ao tempo um tempo recluso de ternura e de acalmia.
Cinjos, unos, voamos d’asas fincadas na proa das madrugadas, por sobre vales, mares maiores, rios e fontes. Seguimos a rotas das ondas, a quentura das correntes,
sem promessas,
sem bússolas, ou sextantes,
sem guias que não sejam o rasto de comum memória.

Estrelas mareantes dizemos amor na forma pura. Dizemos amor em leitos vastos e abertos. Em estrados aplanados de crença e de candura. No sal da pele, d’alvoroços acordados.

Enrodilhada na cadeira de baloiço oiço agora o sino d’aldeia, os zumbidos das obreiras, o bulício da colmeia.

E na manhã das horas tu chegas e escreves na tua ausência
o memorial da nossa história.
Chove. Chove agora.

(Nov.2007)

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sexta-feira, 14 de março de 2008

Velejam-se faluas leves

O Sol é agora um tempo de jejum em mesa farta.
Recolhe-se a medo, serpenteado no vermelho do xadrez
Na renda alva e pontilhada
No ponto simétrico desenhado com mil cuidados numa agulha sem farpa.

Realizo: Um pau, uma laça, duas malhas elevadas e de novo o aconchego brando do tecido,
o algodão ardente de noites demarcadas entre luzeiros de espuma e plenitudes de bruma.

Da pontilha na toalha, a teia, que se abre do baixio ao cume do monte.
A Lezíria alagada num Tejo sempre menino e ao cimo o rio, e o mar, e um mapa por se encontrar.
Velejam-se faluas leves.

A vinha vindimada no Outono de ser palavra adormece exausta nas cepas retorcidas, sem folhas e frutos e acorda de novo em veias de seivas robustecedoras.
Permanecem registos de granizo nos telhados, nas janelas de vidros fragmentados e nas pistas matizadas.
(E nas orlas dos carreiros… por onde o vento não passa).

Afundo-me no poema e na palavra, indiciada no rebusque de mim, tela inacabada, na cor e no cheiro. Talvez seja amarelo, avermelhado. Ou quiçá translúcido.

Aguça-se a alma ao toque assíncrono de flores já tão mirradas, no túmido de pétalas desguarnecidas em queda solta. Soçobram-nos sentenças, sempre mendigas, e delas, todas as dúvidas, todas as perplexidades de um tempo ambíguo, de cantos reclusos, vacilantes.

Equidistantes os nossos passos e a dança que nos dança, navegantes, na pele do vinho mosto, no ébrio do desejo, deste que estala em arroubos desmedidos a crosta dura da encosta, em assomos frementes d’ansiedades. Toda as manhãs, todas as tardes …

O Sol é agora um tempo de jejum em mesa farta.
Caminhamos nas mãos deslaças, bebemos o ópio de um verde-salsa em veredas d’hortos vacilados ao carisma irracional de um trato.

Velejam-se faluas leves num tempo de um verbo que se não escreve.

(Nov.2007)

in "Textos Esparsos" © Todos os direitos Reservados

quarta-feira, 12 de março de 2008

Talvez seja do mar ...

Talvez seja do mar.
Talvez seja do mar o frio que me invade por dentro, neste estado matizado entre o cinza anilado e o cinzento pardacento - uma mão de favila e outra soprada p’lo vento.

Flutua em vela solta o pensamento.
Desce o convés pelas cordas d’ amarra e deixa-me aqui sentada nestes jardins feitos de nada, sem ter por perto, nem o coimbrã fado, nem sequer o choro quente duma guitarra.

A onda é árida, a espuma esboça sorrisos em bocas desprovidas de siso.
O xaile é negro, a chinela está gasta, e a alma, essa, caminha agora descalça e busca margens d’outrora.
Tropeça, não tomba, mas chora, a cada grão de areia, de baba sangrenta que se solta do casco do cacilheiro na hora morta.

Deslizo.
Sou búzio oco em lânguido desassossego. Segrego-me das côdeas de um pão já bolorento. Em migalhas esfarrapadas, resvalam sem contenção, dos seios às coxas, em busca da terra, em arrepios metálicos de guerra cálida e logo, logo, são sementes jazidas, findas. Sementes de imperfeição.

Na chacina de odores iniciais, a neblina borda lençóis d’abismos nos traços de um mar enxuto, de um mar tão túrgido de gestos ternurentos.
Abre campos nas janelas imprevistas por onde tribalistas e jograis guerrilham à vista desarmada de faróis, os beijos, os desejos, as carícias, os afagos simples e tão banais, em ritos de póstuma glória, em loas marginais e ventos de proa rectilínea.

Talvez seja do mar.
... mar de redes e de velas rubras desenhado sempre nos ouvidos das serpentes.

Concluo: estamos doentes, moribundos, padecidos num olhar espalhado e ferido, numa rota de ave sem penas.
Resta-nos o abrigo breve dos poemas, se a noite é canalha e nem sequer uma lágrima se espalha neste mar cor de sisal.
Talvez seja do mar, talvez sejam do mar as muralhas, as paredes intransponíveis de sal...

(Nov.2007)

in "Textos Esparsos" © Todos os direitos Reservados

domingo, 2 de março de 2008

É rosado e fresco ...

É rosado e fresco o seio que te ofereço, matinal,
o toque fortalecido dos bagos de uva repisada
a escorrer-se lesto, em bica aberta no lagar.

É livre,
é livre o olhar,
a íris desmedida que se ergue, que aplana, que te segue,
a cada noite, a cada madrugada, pulando espaços sempre mais íngremes d’auspiciosa colina, a íris que te implora e clama, se desvalidos, ressurgem sobre ramos, cantares perfumados, alucinados p’los tálamos dos pomos verdes e se, na planície crestada por um Sol ímpio, se abrem à palma alongada da tua mão, lírios alvos de cetim por dentro de belicosos cardos.

É dulcíssima a rosa debulhada em sal e nada,
a baixela compelida p’las enchentes, p’las correntes, p’los tsunamis da vida.
A vela latina que se ergue em coração faminto.

São singelos,
os tufos abrasados, os ecos imponderáveis dos gemidos e dos gritos
dos calhaus sempre rolados na inquietude de um mar, dos búzios depositados p’la areia murmurada no ventre de fidelíssimos rumores, o êxtase de Odes marítimas declamadas em cio por sereias prateadas.
(penteias os meus cabelos tal platina e sonho!
Sonho que sou de novo menina…).

É rosado o corpo jazido em espera em lentas madrugadas,
os beijos d’amoras rubras de boca sempre distanciados, e os cheiros, os cheiros amado, aniquilados em relógios lacunosos de pestanas coladas p’las resinas, suplantados na embriaguez de tempos suspensos em ponteiros amortecidos.

É rosado e fresco
o seio matutino que te ofereço, em tufos matizados de ternura e fantasia.
Caminho as ervas, as estrelas, as veredas curvas do resgatar de um destino e, sem um sorriso que seja, tropeço desagasalhada no renascer do novo dia.

(Nov. 2007)

in "Textos Esparsos" © Todos os direitos Reservados

sábado, 1 de março de 2008

... a montanha aguarda-nos

Varro a noite em gestos baços na procura breve de já ser dia.
Aspiro do pomar ao lado o aroma perene de maçãs, de laranjas, de romãs.

A lavra recente solta para o ar o bafo da terra quente.
A nogueira eleva braços ao ar, agita-se em ansiedade humilde de te abraçar. Um fruto cai, é noz aberta, casco de barco em busca do aconchego decifrado do teu mar.
Noz quebrada, rebola no negro da noite e encontra o gelo do alcatrão da estrada.

Abro as portadas, afasto as rendas das cortinas, desembacio janelas.
Atento com mil cautelas no peso dos passos cansados dos guardadores de sonhos e de gado.
A montanha aguarda-os.

A montanha aguarda-nos, pastores de longa jornada.
É prato lauto, d’erva tenra, macia, aspergida - é cidadela fortificada na unidade da vida.
Bebe-nos a essência, roubando, no desafio de comum medo, em recato e desejo segredado, um a um, lentamente, devagar, todos os beijos demorados no cetim do nosso olhar.
O Sol pesponta, tímido garoto. Tremeluzente, solta os cabelos revoltos p’los montes. Ao longe e logo aqui, a fraga secular refulge evidente na pigmentação d’azeviche.

Desacatamos ventos, impomos ao tempo um tempo recluso de ternura e de acalmia.
Cinjos, unos, voamos d’asas fincadas na proa das madrugadas, por sobre vales, mares maiores, rios e fontes. Seguimos a rotas das ondas, a quentura das correntes,
sem promessas,
sem bússolas, ou sextantes,
sem guias que não sejam o rasto de comum memória.

Estrelas mareantes, dizemos amor na forma pura. Dizemos amor em leitos vastos e abertos. Em estrados aplanados de crença e de candura. No sal da pele, d’alvoroços acordados.

Enrodilhada na cadeira de baloiço oiço agora o sino d’aldeia, os zumbidos das obreiras, o bulício da colmeia.

E na manhã das horas tu chegas e escreves na tua ausência
o memorial da nossa história. Chove. Chove agora.
(Nov.2007)

in "Textos Esparsos" © Todos os direitos Reservados

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...