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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 22 de março de 2008

I Cap. "A viagem"

Começara a viagem, há muito, muito tempo, há tanto que já não seria capaz de saber com exactidão o dia em que tudo tomara forma. Ouvira falar de uma noite, em 1961, em que um paquete, de seu nome “Santa Maria” fora por motivos políticos desviado da sua rota. O navio, propriedade da Companhia Colonial de Navegação, segundo apurou muitos anos mais tarde, fora tomado por oposicionistas ao governo salazarista, comandados por Henrique Galvão, em 22 de Janeiro de 1961, tendo acabado por fundear no porto do Recife, no Brasil, em 2 de Fevereiro seguinte, sendo perseguido em mar alto pela Armada Portuguesa e outras esquadras. Nessa noite da tomada, 22 de Janeiro, Linda Carvalho dera entrada de urgência na Maternidade Alfredo da Costa. Quarenta anos mais tarde, Lia, sua filha, iria ela própria, pela primeira vez, tocar o solo do Recife, voando a bordo de um Air Bus 310 da TAP.

Mas retomemos a nossa estória …

No paquete, com 970 pessoas a bordo, vivia-se um clima de terror. Ninguém sabia ao certo o que estava a acontecer, as motivações dos revoltosos e, mais do que isso, o que ali estava a começar. Galvão de Melo, cabecilha do assalto ao paquete, nunca imaginaria que, ao mesmo tempo que decorria a operação a bordo, numa qualquer sala de um qualquer hospital, três pessoas se debatiam em fazer nascer uma criança que, contrariando todas as expectativas, decidira tenazmente abrir os pulmões para a vida, não rodeada de mesinhas caseiras, parteiras de aldeia e caldos de galinha, mas assistida por profissionais, na cidade grande.

A noite havia caído gélida naquele Janeiro de 1961, depois de um dia inteiro em que o Sol teimara em não brilhar. A humidade trespassava os ossos, penetrava nas roupas, gerando em torno dos corpos uma auréola fria e espessa. Linda fora sempre uma mulher lutadora e não seria a ameaça de mais uma noite sem dormir suficiente para que se deixasse dominar pelos medos.

As dores iam e vinham, a espaços, envolvendo-lhe os rins num calor avassalador. Lia, ainda dentro do ventre de sua mãe, iniciara a “Viagem”. São Sebastião da Pedreira, seria o primeiro ponto no conto da sua vida.

Voltemos a Linda: Os cabelos escuros em desalinho, as gotículas minúsculas de suor, na sua base, eram os únicos vestígios da luta que estava a travar à quase quarenta e oito horas, com aquele ser. As entranhas revoltas, pungentes de vida impunham-lhe e impunham-se, obrigando a que todos os ritmos da casa parassem.

Primas, tias e comadres, aguardavam na casa de entrada, o choro da criança; na cozinha a água continuava a ferver, em grandes caldeirões, as toalhas brancas do enxoval há muito que haviam sido lavadas, libertas de gomas, esperando agora momento oportuno para serem introduzidas nas panelas, escaldadas.

A parteira, tia e madrinha da parturiente, revezava-se à cabeceira da cama, com as tias velhas. Linda olhava à sua volta, observando o circo, com um misto de tristeza e ansiedade. O luto visitara havia pouco a sua família, levando-lhe o pai para sempre. Mas não fora só esta figura masculina que perdera nos últimos meses.

O avô, a personagem mais carismática de toda a sua infância, também ele havia partido há pouco mais de um ano atrás, numa manhã de soalheira de Abril. Partira como vivera, em apogeu e pompa, sentado no alto da galera, vestido com o seu melhor gabão, apoiado no bengali de que se não separava nunca. Uma lomba da estrada fora para ele o encontro com o além e, num dos raros momentos em que a Estrada Nacional 10 era atravessada por algo mais do que burros e mulas, António de Carvalho, cruzou a sua vida com um automóvel Ford preto, recém adquirido, de carroçaria reluzente. Fora o brilhar da viatura ou o refulgir dos primeiros raios de Sol, o certo é que os cavalos se assustaram, se empinaram, a galera perdeu o norte, num ápice, cavalos, cavaleiro, bengali e gabão, serpenteavam o asfalto.

Diz quem o viu, que o sangue lhes escorria em fio das narinas – às montadas e ao montador. Dizem ainda que, malgrado o que se passara, António de Carvalho, partira desta Vida com um sorriso rasgado nas feições duras.

A noite havia-a passado na casa de uma amante, e os primeiros raios de Sol despertara-o para a urgência de voltar ao Casal dos Anjos e da Oliveirinha. As tarefas agrícolas não se compadeciam da luxúria, e nisso, António era o ser humano mais exigente.

Preparara a sua filha mais velha para lhe suceder. Na restante prol, cinco ao todo, não reconhecia competência. Mas o destino quisera que mesmo a sua primogénita se afastasse de si, perdida de amores por um homem letrado da cidade. Tantos anos despendidos a fazer dela um macho de comando, a investir na sua acreditação junto dos ranchos de mulheres, a fazer dela a sua melhor obra, tudo perdido a troco de nada.

António havia em 1901 comprado o Casal dos Anjos e quatro anos depois, o Casal da Oliveirinha. Duas belas propriedades que se espraiavam por duas encostas de serra, num declive acentuado, culminando num planalto. Aí havia erguido a sua casa, criado os seis filhos que a vida lhe dera, amado a esposa roliça e ruiva, noite a dentro, com volúpia e mestria, até ao dia em que esta, cansada das traições do marido, lhe trancou para sempre as portas os seu quarto, e o privou em casa própria dos prazeres da carne.

Fora de portas, no milho, nas vinhas, no trigo ou no curral, António exercia sem pudor o direito de pernada, deixando marcas da sua passagem desde as orlas do rio que corria grande alagando as lezírias, até à serrania mais próxima, onde os pinheiros mansos, de tão fechados não deixavam ver o chão.

Deste avô, Linda herdara a temperança e o determinismo, com que havia de pontilhar, a ponto pé-de-flor o matiz da sua Vida.

A perda destes dois homens deixara um manto negro na casa. Janeiro reforçara este pendor, de uma forma tão intensa, que nem o cheiro a cera recém aplicada no soalho de madeira, nem os lençóis aureolados a renda, pareciam ser capazes de o romper.

Aguardava-se a chegada deste bisneto de António como se de um Deus se tratasse. A casa grande urgia de risos e correrias. As primeiras perdas já haviam acontecido, com a separação dos filhos, com a venda de bens e haveres. A década de sessenta foi para o Casal dos Anjos e Oliveirinha o começo da derrocada, a pedreira iria reduzir nos anos que se seguiram, uma boa parte dos terrenos a pó e nada…

O episódio ocorrido em nessa noite de 1961, protagonizado por Henrique Galvão, a tomada de assalto ao navio e a declaração de que este era espaço português independente do Governo - com o intuito de chamar a atenção dos media internacionais para a situação política portuguesa – realmente bem noticiado na imprensa internacional, em Portugal, face a uma informação demasiado controlada, chegou numa versão oficial pouco intensa em relação à dimensão dos acontecimentos. Marcou contudo de forma determinante a hora do nascimento de Lia. Viria a ser, ao longo de muitos anos tabu, do qual pouco se falava, se bem que a população, vivendo uma ditadura, procurava saber mais, interpretava e reinterpretava o que ouvia, do que se falava em voz baixa, à mesa da taberna, entre amigos. Na família o registo fazia-se mais em torno da fabulação do nome, Maria Santa, que, por momentos, a criança estivera quase a ganhar.

Nesse mesmo mês no norte de Angola desencadeia-se a abertura da primeira frente de guerra em África. Alguns repórteres no local registam o que se passa, antevendo-se já um futuro sem hipótese de fuga ao conflito...

Nesse mesmo ano, 1961, o astronauta soviético Iuri Gagarine torna-se o primeiro Homem no espaço, ao ser colocado em órbita, a bordo da nave "Vostok 1".

Na rádio surgem as primeiras notícias. Os acontecimentos de 23 de Janeiro de 1961, são relatados na emissora nacional, pela primeira vez, passam escassos minutos da meia-noite.

Linda está agora deitada na cama do hospital. O negro que antes a envolvia não existe mais, a luz é difusa, amarelada, um forte cheiro a éter paira no ar, a calmaria do ambiente que se encontrara horas antes, quando a ambulância a deixara à porta principal, de repente, de uma forma inexplicável, quebra-se. Os murmúrios e o bichanar nas salas contínuas elevam-se gradualmente. Linda apercebe-se de que algo de muito estranho se estava a desenrolar.

A curiosidade aguça-lhe os sentidos, quer saber, quer participar, mas não pode, contudo. Está fora do seu ambiente, no meio de estranhos envoltos em batas brancas e, ao invés das tias e das primas, estes pouco se interessam pelo estado do seu ventre, pelas dores que a cada momento vêm e vão mais rápidas. Só um pequeno objecto, em cima da mesa do canto, parece colher as suas atenções. Os corpos vão-se acotovelando, sobrepondo, sentidos alertas, suspensos às palavras parcas da emissora. Desejam-se notícias, detalhes, pormenores.

Repentinamente, como um trovão, o ventre abre-se, refulja. Linda grita, perde o controlo, clama socorro, invoca os mortos e os vivos, abre-se. Um líquido quente inunda-lhe o baixo-ventre, ensopa-lhe a cama, algo nunca sentido a atravessa como uma espada, arqueja, agarra-se às barras da cama de ferro esfolada e velha, deixa que aquele mar a invada sem medos.

No alto mar, a trovoada faz-se sentir, o paquete inclina-se perigosamente numa curva de cento e oitenta graus, os gritos dos mareantes juntam-se aos dos tripulantes, o comandante acalma as hostes.

O médico aproxima-se rapidamente da cama, a parteira afasta as pernas num ângulo raso, uma pequena cabeça irrompe pelo orifício massacrado, a parteira recebe-a com ambas as mãos, roda-a lentamente “força, rapariga, faz força agora, disseram-me que eras valente, onde está essa garra e essa genica?”.

Afaga-lhe o ventre refulgente, como se de um melão se tratasse, segura-lhe as costas, impulsiona-lhe o corpo, fala manso, com uma voz quente e segura, a sala é invadida por mil espíritos. Linda invoca os seus, chama pelo pai, pelo avô, por todas as suas perdas, confia-lhe o seu tesouro, fecha os olhos e deixa-me conduzir. Nesta passagem, como nas que se seguiriam, sente que não está sozinha.

Sorri. Duas grossas lágrimas sulcam-lhe o rosto, misturaram-se com o suor, com o sal que vem do mar, do mar de Lisboa, na espuma das ondas, de um mar revolto.
Lia, por fim, depois de mais de cinquenta horas de luta, desperta para a vida, envolta num manto de emoções contraditórias.

Nasce negra, muito negra, de muitas e muitas horas de sofrimento. O corpo minúsculo não reage, não solta um choro.
"Maria Santa, chamar-se-á Maria Santa” – assevera a parteira, imbuída com o espírito da aventura daquele dia – Santa Maria. “Fedelha, estás a ouvir, Maria Santa?... Reage, chora"!...!

Não que não queria! Lia não queria chorar! E choraria tanto, tanto, ao longo da sua vida, desta vida que agora se (re)acendia num corpo branco e numa alma retinta... ninguém viu, deu sinais, mas nunca ninguém viu... era negra, de pele branca vestida. Sorriu... ninguém viu!

Elevam-na, a parteira segura os pés, o corpo de cabeça para baixo – foi daí certamente que lhe ficou o vício – o mundo às avessas, tudo ao contrário.
As mãos encontraram as suas pequenas nádegas, a dor impulsionou-lhe o ar, os pulmões abrindo, o choro a invadir a sala. Linda olhava agora aquele ser minúsculo: uma menina. A sua menina. Negra (todas as andorinhas têm uma face negra).

Lia era uma andorinha num corpo de menina. Mas isso só saberia muito mais tarde, na longa viagem da sua existência.

Contrariando o desejo do médico e da enfermeira, a criança não seria Maria Santa, em homenagem ao paquete, e aos heróis de cuja vida pouco saberia durante os primeiros vinte anos da sua existência, mas Lia, como a madrinha. Também não seria Mavilde Celina, como Linda desejava, nem sequer Ana Maria, para glórias do pai, mas Lia. Apenas Lia, um pequeno nome seguido de um nome enorme, com “des” e tudo… e, contudo, curiosamente, aquele nome, o que desejara para a sua filha, era um nome Africano.
“Não há coincidências”...

Rumo a Port Everglades, na Florida, o Santa Maria havia prosseguido a sua viagem, agora já sob o comando dos homens fiéis a Henrique Galvão. Tal como com Linda - cuja rota fora alterada à última hora, fazendo com que, e contrariamente a tudo o que estava estabelecido, rumasse rumo a Lisboa para dar à luz a sua criança - , também o Santa Maria vê alterado o seu rumo agora para Leste, aproximando-se da Ilha de Santa Lúcia. Seria porventura esta manobra comprometedora do êxito final, a verdade é que, ao desembarcar dois feridos e cinco tripulantes, Henrique Galvão, colocara em causa a possibilidade de atingir África sem ser detectado, o que viria a acontecer efectivamente, no dia 25. Ao cruzar-se com um cargueiro dinamarquês, o Santa Maria trai a sua posição e, em consequência, é localizado por um avião norte-americano, sem ter conseguido chegar a bom porto: África.

O nome de origem africana. “Mavilde Celina”. África, para onde deveria ter rumado o Santa Maria, África para onde rumam todos os anos as andorinhas. Lia era uma andorinha num corpo de menina, sim! Percebeu tudo isso muitos, mas muitos anos depois. Então, havia sido, noutro tempo, num tempo para além do tempo “Mavilde, Mavilde Celina”. Um nome, uma melodia...
Curioso, tão curioso …ouvia agora claramente... "Celina, Celina..." Uma estranha melodia …
A vida, Lia, a vida e o passado, não se esquecem de nós! Jamais.

A prova, outra prova! Então havia sido Celina... e agora Ana, sua filha, dizia-lhe que, se um dia fosse mãe de uma menina, esta seria “Melina"... Ana nem sabia desta estória... a proximidade fonética … espantosa.

A vida passa a linhas escritas, num papel, o que deixa para além das brumas, das neblinas, nos confins dos tempos. Numa intemporalidade desconhecida.
O comboio em movimento.

Lia projectava esta  nos vidros embaciados da carruagem e, levemente, o pensamento esvoaçava... Estava em África, brincava com outros meninos, dançava nua, era feiticeira, era maga... Era negra, negra retinta, com olhos de safira! Mergulhava num mar verde, num mar de corais... e era feliz!

Fechava os olhos e via-se claramente, correndo pela selva conhecida, sempre seguida do menino da sua vida. “Corre Lia, corre, que te apanho... vou apanhar-te”. Apanhava. Ela ria, ria tanto. E fugia, fugia de novo. Ela era a Lua Fugidia. E ele? Ele era a outra voz. O outro lado dela mesma! Era o rio, era a selva, era a tarde em que se embalava. Lia era feliz ... em África. Convivia com os animais, falava a língua dos animais. Não tinha medo, não estava parada num corredor da vida, não seguia trilhos alinhados, num comboio de freios mal lubrificados. Era vento, era chama, seguia a garra do instinto, abria caminhos, abria a pulso, a dente, as lianas da sua vida. Enleada, ouvia o chilrear dos pássaros. E passava, passava sempre. Lia era uma menina guerreira, lutadora, tinha sonhos. Em África, era feliz.

No comboio em movimento. Sentia o nó, o aperto... o filme chegava ao fim... terra queimada, sanzalas destruídas, vidas e corações separados... O seu, ficara lá? Não sabia... onde estava?
Lentamente, num gesto desolado, com a mão aberta, limpou o vidro numa circunferência ovalada, espreitou, leu as letras ... Estava em Entrecampos.

Uma circunferência ovalada! A oval, a circunferência distorcida! A circunferência – uma recta unida. A recta – segmento de recta: a união de pontos, prolongada até ao infinito. E um corpo em “Pi”. O que era mesmo o “Pi”? Aulas de geometria, de geometria descritiva, as linhas feitas a tinta-da-china, sobre o papel cavalinho. Um cavalinho branco – que nunca tivera -, nem um príncipe alado, para a levar, Fada Morgana, Feiticeira Meldemim, para as Brumas de Avalon... Sorria! Ou um cavalo guerreiro, num campo de batalha em África. Era guerreira! Claramente!

A 2 de Fevereiro, o "Santa Maria" ancorou no porto brasileiro do Recife, procedendo ao desembarque dos passageiros e tripulantes. A 2 de Fevereiro, Linda deixou por fim o hospital e fundeou âncora no sopé do planalto que a vira crescer… e onde Lia se faria mulher. “Não há coincidências” …

A 4 de Fevereiro, em Luanda, deflagram incidentes graves, seguidos, em Março, do início da guerra no Norte de Angola, que obrigaria o Governo de Lisboa a uma tomada de posição, nomeadamente com o envio de reforços militares. Em Abril embarcam os primeiros contingentes de mancebos, visando proteger as colónias…

Lia mulher viajava agora… Entre campos, a sua essência dividida. Um pé em cada Continente. Não era deste tempo, não era desta Era, e nem sequer era deste corpo. Entrecampos. Estava entre campos...

in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia dos sentidos"
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“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...