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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 26 de março de 2008

II Cap. "Os 1ºs passos"

(ler Cap. I)
“No silêncio da terra.
Onde ser é estar.
A sombra se inclina. Habito!
Dentro da grande pedra de água e Sol.
Respiro sem saber, respiro a terra!”
ANTÓNIO RAMOS ROSA - “NO SILÊNCIO DA TERRA”


Dera-os a medo, como a medo daria todos os que se lhe seguiriam. Depois de muitos dias dentro de uma redoma de vidro, com cuidados médicos continuados, Lia veio finalmente para casa, onde a aguardavam primas e tias, vizinhas e comadres. Linda não tinha leite, secara com raiar dos primeiros dias seguintes ao parto. Ou não tinha o suficiente. Lia chorava a bons pulmões, um choro tão estridente que nada faria acreditar emergir daquele ser rosado como um bacorinho. A cabeça não tinha um único cabelo, a pele engelhada, negra nos primeiros dias, aos poucos revelara-se branca e rosada.

Quando finalmente abriu os olhos, Linda agradeceu a Deus o que estava a ver. Lia tinha os olhos de um azul-verde, de um verde-azul, tão profundo, tão intenso, como os tivera o avô materno. O tempo revelaria que estes se metamorfoseavam, tal qual um camaleão, em presença do mar, do azul do céu, do verde da floresta, ou ainda se tornavam cinzentos nos dias de Outono, cor de azeitona verde, no final da Primavera. A ira tornava-os mais belos, indecifráveis, a felicidade ou o riso, humedeciam-nos tal bruma, maresia. Linda percebeu que aquela criança era duma dádiva e uma ameaça. Sentiu desde os primeiros momentos que Lia ia muito para além do que seria uma criança normal. Revelara-se um bebé enigmático, misterioso, apocalíptico, que atraía desde o berço, e por toda a vida, ódios e rancores, invejas e antipatias. Que o digam o gato, que nos primeiros dias de vida lhe aterrou no berço, sulcando-lhe a cara com uma linha fina. Que o digam as melgas que lhe espicaçavam impiedosas o corpo pequeno, malgrado de, nas redondezas disporem de proeminências abundantes onde aterrar e, ao invés disso, optarem sistematicamente por construir na pele de Lia um brocado de pontos vermelhos.

A jovem mãe não sabia como resolver tais questões. Ninguém mais padecia de mal igual, a não ser a sua estranha filha. Criava em sua volta uma espécie de casulo de pano fino, por onde Lia espreitava o mundo, até ao dia em que a pequena criatura, ousou mergulhar de cabeça para outra dimensão, o patamar inferior do berço.
Aí entrou a sua primeira amiga, uma cadela rafeira, que desde a sua chegada a casa, naqueles fins de Janeiro, decidira montar guarda junto ao berço, protegendo desta forma a criatura dos avanços lambuzados das tias e primas e dos ataques enciumados do gato da vizinha. O bafo da cadela e o seu pelo espesso, foram o antídoto para que aquela aventura se não tivesse transformado numa viagem sem regresso.

Ousamos então a história:
Era Inverno, a criança dormia. A mãe decidiu que a poderia muito bem deixar por uns minutos e ir tratar da vida. A pacatez da aldeia era avessa a grandes cuidados. Pois ficaria, ficaria a dormir. Cerca de uma a duas horas depois, quando finalmente Linda regressou ao quarto, feitas as compras na mercearia da aldeia, encontrou o berço vazio. Lívida, correu em busca de socorro, achando que Lia havia sido roubada. Roubada, sim senhor, que a enfermeira nunca se convenceu que aquela criança não seria sua para sempre. Bem que a tentou, “a Linda é nova, pode ter muitos filhos, os que desejar, pois Deus não lhe há-de negar tal bênção … já eu, nunca casei, já estou velha, não posso ter ninguém para me acompanhar nos meus últimos dias...”.

A história repetida inúmeras vezes, na maternidade ainda e depois, quando a enfermeira apareceu na aldeia, alegando querer ver o bebé, uma e outra vez, foi aos poucos ensombrando de terror, Linda. Temia que alguma distracção lhe levasse a cria, e os seus maiores receios pareciam agora concretizados.

“Foi ela, foi ela, espiou-me os passos e veio cá na minha ausência, roubou-me a criança, roubou-me, roubou-me.... Estou perdida, estou perdida...” Gritava entre soluços, num desnorte de sentidos. A seus pés, a cadela confusa, latia e lambia-lhe as pernas, como incentivando à procura, ao agachamento, ao encontro. Mas não, Linda estava certa de que algo de muito errado havia acontecido, que Lia estava já longe, talvez na cidade grande, ou quem sabe, se calhar a caminho de África, num qualquer paquete. Não havia a enfermeira dito que tinha família a bordo do Santa Maria? Vá-se lá saber a que manhas poderia ter recorrido para a afastar para sempre da sua criança.

Os vizinhos acorreram aos gritos de dor e perda. O ti’ Alonso, manco de nascença, corcunda disforme, o seu pai, um homem alto e magro, que havia perdido uma perna na guerra civil de Espanha, e que, em sua substituição tinha agora uma perna de pau, a nora e mulher do primeiro, alta e magra, de profundos olhos azuis (muitos anos mais tarde, esta relação haveria de causar a Lia grandes espantos), a empregada de ambos, também ela manca, vítima de uma queda em pequena e, por fim a prima Briolanja de Sollis, moçoila ainda, esguia e seca como a mãe.
“Onde está, onde não está?...” – indagavam-se em uníssono. Ralhavam, esconjuravam e repreendiam:
-Insensata mãe!!!
“Como é que te deu para deixares a menina sozinha, então não seria melhor ir lá leva-la a casa, um de nós tomaria conta dela?...”
Que sim, sim senhor, tinham razão, que não tinha querido incomodar...
Oh, como lamentava agora a sua parvoíce e, mais lamentava, ter ido algum dia parar àquela maternidade, que só lhe houvera trazido tristezas. Não fora lá que assinara a papelada para a venda do Casal dos Anjos, a desejo dos primos e tias? Ainda mal refeita estava dos trabalhos do parto, e já a seu lado, tal corvos agoirentos ou abutres sobre carne seca, o oficial de justiça, mais a primalhada, lhe houveram estendido a papelada? Que era o melhor, vendia-se aquela parte e pronto. Ainda ficava muita terra para cultivar, afinal todos estavam a seguir as suas vidas, nas fábricas novas junto ao rio. O ordenado era certo, quer chovesse, quer ventasse. Já no amanho da terra, um homem não podia confiar, conforme o vento, assim o sustento.
Que pensasse na filha que tinha nas braços, que se não criava com pó e água. E, se a cimenteira queria comprar, o melhor era vender, vender já, antes que mudassem de opinião e decidissem fazer a proposta de compra a outros.
Com o dinheiro da venda, dividido pelos herdeiros, cinco vivos, ainda poderiam construir umas casas novas, mais perto do rio, no sopé do monte, havia quem quisesse vender uns metros de terreno, a um bom preço, bem se vê que muitas vezes mais caro o metro quadrado que eles estavam a vender o Casal …

“mas também, rapariga, não compares, o Casal dos Anjos de Anjos só tem nome, é um inferno de breu, quando a noite cai, não passa lá vivalma, os bailes do Maré já há muito que acabaram, a mocidade já não atravessa a serra, em busca de diversão. Na aldeia é que está tudo, a escola, não queres que a tua filha vá à escola?... O médico – sim porque o médico da Juta, vai deixar de ir ver doentes aos montes, que já está a ficar velho, não te lembras o martírio que foi quando tiveste o tifo, que o médico te tinha de ir ver de dois em dois dias? O nosso avô vinha buscá-lo à vila na charrete, mas isso acabou, a galera já foi vendida, e as mulas estão doentes... o que esperas para assinar?”…

Assinou, a contra gosto, muito a contra gosto, mas assinou. No fundo, também achava aquela oportunidade de ter uns tostões e de construir uma pequena casa, uma oportunidade, talvez única. A sua vida até ali, não obstante ser neta de quem era, (por segundos recordou o avô, o dia fatídico em que foram dar a notícia da morte, daquela morte tão estupidamente trágica… o seu avô, António de Carvalho, lavrador abastado e respeitado das serranias aos juncais do rio…) decorrera num quadro da maior miséria e austeridade.
Por uns segundos, toda a sua vida de vinte e poucos anos, correu veloz na sua mente. Deteve-se de chofre no preciso momento em que encontrara o berço vazio. Que seria a sua vida dali por diante? Estava a ser castigada, Deus é grande, castiga a ferros quem a ferros mata. E ela, Linda, matara. Matara o fruto do seu ventre poucos meses antes da morte do seu pai, poucos meses depois da morte do seu avô (como lamentava aquela atitude... afinal tudo se havia de criar, pensara mais tarde... chorara mais tarde, tarde de mais. Mas quando se descobriu grávida, orfão de pai, orfão de avô... decidiu que não era tempo de ser mãe... matara!) E matara para sempre o amor do e pelo seu marido. Para sempre ...
Disso tomaria consciência gradualmente ao longo de uma vida inteira e em particular, no momento em que um fio de sangue vermelho escuro, manchou o branco do leito da sua morte...

A cadela latia agora incessantemente, as lágrimas rolavam grossas dos olhos abismados de todos os presentes, abraçados uns aos outros, impotentes, sem saber o que fazer, o que dizer, o que sentir.... Linda, mais do que todos, sentia-se perdida. Aos poucos um silêncio mórbido apoderou-se do quarto, a porta aberta para a rua, deixava entrar o frio de Inverno. Os corpos gelados, petrificados olhavam no vazio, quando, como que saído das entranhas da terra, um gemido ténue se fez ouvir. E outro, e outro, e uma berraria de choro, uma onda de som, atravessando o gelo, quebrando o silêncio, tudo a um só tempo.

Linda estremeceu, impulsionada por mil molas, olhou no sentido de onde vinham os berreiros, num crescente contínuo. Ao mesmo tempo todos os seis pares de olhos - cinco dos humanos mais a cadela -, acompanharam os seus e deram de chofre com uns olhos enormes, esbugalhados, verde-jade, verde-raiva. E viram um corpo franzino, envolto num coxim de malha, duas pernas roxas já de frio, duas mãos mais roxas ainda. Não sabiam o que dizer, o que pensar, o que fazer …como tudo aquilo acontecera, Santo Deus? Como?...

Como por magia, Lia, parou de chorar. Um sorriso escancarou-lhe a boca sem dentes, os braços estenderam-se na direcção do alto. Linda agarrou-a com fúria contra o peito, de tal forma que, por breves instantes, mãe e filha se fundiram numa só carne. Num abraço de carne. Desejou ainda não ter parido, desejou proteger no ventre redondo a carne da sua carne e logo depois, se penalizou por tal insanidade.

Desse dia, ninguém mais falou, a estória da enfermeira foi abandonada, mas Lia haveria de desaparecer muitas e muitas vezes, durante o primeiro ano da sua Vida, não para debaixo da cama, como desta vez, mas envolta num cobertor branco, que com o tempo tão bem conhecia, ao colo de um qualquer dos presentes nesse dia, para a casa vizinha. Para tanto, bastaria, que um familiar som
“Lia, anda, Lia linda vem... (o apelo, o ninho quente) … vem Lia … ahaaahh” se fizesse ouvir e, dois braços esticassem no ar o branco cobertor, para que, insana criança, não tivesse mais quietude. Saltava, tinha molas e, tal enguia, flutuava, rio adentro - que era como que se diria - na direcção do carinhoso chamo. Voava! Voaria para sempre...

Linda, já sabia que, se não a encontrava na casa, nos momentos em que se ausentava, era bem provável que tivesse voado pela janela contígua à janela da vizinha. Esses seriam os seus primeiros voos de andorinha, a caminho de um beiral amigo.
Lia era uma andorinha em corpo de menina …

in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia dos sentidos" © Todos os Direitos Reservados

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...