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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Era Inverno na estação dos pássaros!


“em volta da antiga torre… andei mais de mil anos”
(cântico ao Sol dos índios navajos)
cit. In “As pontes de Madison County” de Robert James Waller.


Jamais o telefone tocaria do outro lado. Olhava incessantemente o visor, vigiava o toque que, sabia, nunca adviria. O toque de mil caminhos cruzados a norte de si. O toque que se formara e fecundara em vítreo, sem que, contudo, dispusesse de útero macio para crescer. Morrera espartilhado entre a fenda labial e a palavra tolhida. Morrera antes de ser vida.
Recortava a água no cascalho lavado,

[…não sei como dizer-te que não te esqueci… que habitas a estação dos pássaros, das águas subaquáticas, dos limos e dos lodos, a sofreguidão dos lábios, os pulsos dos centeios e dos fenos… não sei, sabendo tanto, das funduras iniciáticas dos verdes campos quando ainda enverdecia o meu olhar em ti e o silêncio talhava o meu grito de fêmea no sangue exangue e desvanecido em eco. …não sei do branco dos girassóis nem sequer do amarelo das giestas (anverso inverso do teu retrato, do teu riso, do teu gosto…); não, não sei …]

deixava que apenas o lábio inferior tremesse ligeiramente, sinal de que a tempestade se formava agora, encruada em lágrimas de pedra e que, longinquamente, num lugar de sal e mar, de invasivo mar, num porto de mar, um homem, o único homem que amara em toda a sua vida, estaria, e também ele, preso a um toque que não tocava, a um gesto que ela mesma não tecia, porquanto, numa qualquer hora de um tempo em que o Sol madrugou a terra frígida, se tinham quebrado, irremediavelmente, todas as pontes que os aliavam. Todas as cumplicidades. Todas as intimidades. Ou quase todas…

[… não sei como dizer-te sem palavras de todas as noites imperfeitas, de todas as trevas, de todas as luas engolidas em abstractos fascínios de te contornar os olhos e os lábios em pós astrais de pele e dedos suados, de te enroscar nos trevos de quatro folhas, dos meus braços e pernas, num compasso síncrono de quatro por quatro, de deslizar no vento fermente e na forma de ser, batráquio, cobra, mulher …, ou leveza de pássaro. ... não, não sei dizer];

De novo o olhar se detinha no pequeno aparelho metalizado e de novo e uma vez mais, suspenso em suas mãos, vibrava sem vibrar. Compulsivamente. No tremor dos dedos, no agito dos pulsos, das veias comportadas. Como se das pradarias por si agricultadas em desertos, todas as flores, todos os pólenes, todas as borboletas e ínfimos insectos, murmurassem em uníssono o nome de quem a mantinha detida. Inominável nome.

[Longinquamente, numa flauta de osso de abutre, alguém ainda tocava uma estranha melodia. Por sobre a carne seca do que de si restava. Eram acordes celestinos de anjos em pousio, de duendes e druidas em espera de que, por sobre a planície das horas mortas se eclodisse Primavera… era Inverno na estação dos pássaros!]

Descalça, desnuda, desbrava lenta, caminhos de memória (tantas memórias), trauteando letras de poemas, cânticos de Sol, qual índia navaja. Repintava-se em telas e aguarelas dúcteis e serenas, revolteava em metafóricas, rimas e resmas de líricas que consumia, ébria, a cada final de tarde, por entre um trago de café bem forte e o vazio das enseadas: se não ninfa, sereia das falésias. Ou ilha, salinada ilha, donde não saíam barcos nem chegavam jangadas. Fundeava presa a uma bóia de chumbo.

[não sei como dizer-te desta coisa extraordinária, desta brisa que me invade os poros, que me lava os olhos em zimbórios de medo e espanto; e deste atrevimento; e deste poema branco que sou eu; e dos teus cânticos crepusculares e dos orgasmos dos sentimentos. não sei dizer-te, ainda, desta dança (heresia pura) em torno da fogueira, dos cheiros do sândalo e do incenso, desta luz que a noite em mim acende; da eira aberta onde se debulha o trigo; da plenitude bárbara desta baba branca que se escorre sobre o rio e que colapsa virgem em bagos de amoras tardias … e deste levante de tordos no turvo dos caminhos. o mar ao longe.]

Do oceano apático, adormecido, remanescentes memórias, minudências, diria, de actos e factos idos. De quando, em Paris, lhe mandara a mensagem: “ à Paris j'aime plus fort. …”. O trocadilho das letras, o azulecer dia na pista, o aparelho estanhado a aterrar e, já no ar, a ânsia de que, à chegada, senão ele, pelo menos as palavras dele, as suas palavras a pudessem abraçar. Ou, de quando, ele mesmo em rota, lhe enviara “da (…), um último beijo …”.

Jamais o telefone tocaria do outro lado. Era Inverno na estação dos pássaros!

“em volta da antiga torre… andei mais de mil anos”

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

"Sete-estrelo e umas botas"


Mirou-as demoradamente. Acariciou-lhe o couro com o olhar. Deteve-se no picotado do cano, na cor de terra. No brilho de coisa nova, nunca usada. Depois, na calma que a vida lhe trazia aos poucos, olhou o horizonte, em ocres iguais. O ocaso chegava já, num Inverno que ainda não era Natal e, contudo já se anunciava em cada rua, em cada esquina. Olhou o céu limpo, em busca do Sete-estrelo. Desde sempre lhe ensinara a procurá-lo: azul, qual reflexo do mar que a habitava…
Agora eram suas, como lhe prometera. Não, nunca as usara. Quando as terminara por fim, os seus pés não cabiam mais nelas. Crescera em demasia…
Abraçou-as, mediando o tempo desde que as vira a primeira vez, por sobre uma das múltiplas prateleiras empoeiradas que emolduravam grosseiramente o exíguo do espaço, a par de formas e calçados por consertar.
“...são tuas, um dia acabo-as e serão tuas...”

As linhas iam e vinhas no ritmo das sovelas a perfurar o couro, as solas batidas e rebatidas na pedra dura. As solas mergulhadas em água, por dias e dias. Pastosas. E depois moldadas ali, ao talhe dos pés.
“...um dia. Quando tiver tempo, faço-tas. Nunca terás de andar descalça, que te duraram uma vida. A vida inteira… nem que isso seja a última coisa que faça. Não terás de andar como eu, a ver “sete-estrelas” e umas botas … nos pés dos outros…"

As linhas iam e vinham no bico das sovelas, no cuspo das mãos, nas mãos magoadas. Pai…
“… um dia serão tuas, quando as acabar. Tem tempo. Agora tenho trabalhos em mãos, que te dão o pão da boca. Mas se tas prometo faço-tas”
E logo o olhar turvado sem brilho no brilho da lágrima contida:
“nunca lhas cheguei a fazer…”

As linhas de sisal iam e vinham, rangiam na sola, na sola dos pés o frio de tantas horas ali parado. Era Inverno…

“Sete-estrelo e umas botas.”
Naquela manhã o povoado acordou em sobressalto. Francelina, de pouco mais de quarenta anos e oito filhos menores, morrera. Uma forte dor na nuca. Nunca se soube ao certo. As bocas pequenas falaram da “porradas” que o marido lhe "amandava", quando ao fim do dia de jorna, aquecido no pingo da bebida, ajustava as contas com a vida no corpo não menos estafado da mulher. Comadre. Quando enviuvou do primeiro marido e pai das suas duas filhas mais velhas, arrimara-se a ela
“por bem querer, senhora Francelina, serei um pai para as suas filhas, um marido de respeito para vossemecê. Cuido-lhe do nome e das terras, minha comadre. Que fará vossemecê com duas filhas neste fim de mundo onde o diabo perdeu as botas? fraca e pequena como vossemecê, nem com os cântaros há-de poder, que via o senhor meu compadre – que a terra lhe seja leve -, a carregá-los serra a cima… casemos pois, senhora Francelina. Não dê outro padrasto a suas filhas e minhas afilhadas, que sou seu amigo e “mai-lo” delas…”

Casaram. Sem pompa, sem circunstância. Sem o agrado do povo, nem dos pais. Sem a bênção da família da viúva recente e já nubente. Que guardasse distancia e logo tomasse rumo. Mas assim? Em pouco mais de dois anos? Certo que Jorge era parente, conhecia os cantos à casa e nela trabalhava desde que os seus pais o haviam posto fora de portas
“Ora, coisas de rapazolas. Uma má palavra e o meu pai se deu por ofendido. Levantou-me a mão e perdi a cabeça…”
sempre ia dizendo a despeito da sua deserdança:
“que coma a terra, que por mim hei-de apanhar e chamar de meu, mais que aqueles palmos de terra”.

Achou. Achou a confiança do compadre, os olhares gulosos sobre as terras que eram suas e, porque não dizer?, sobre as ancas de Francelina “boa parideira, a minha comadre, tem um par de ancas que a benza Deus” e fome de lhe morder os seios e beber o leite que se lhe escorria “valha-lhe Deus, minha comadre, que esse leite é uma perda”… avançava, entre dentes, em falsa compaixão, sob olhares lascivos.

Tomou-a sua, ocupou o lugar do falecido nas terras e na cama e, desejoso de lhe fazer prole, acrescentou mais seis aos dois filhos de Francelina.
Esta respondia, no início, às investidas do marido, à fome das ancas e dos seios, com cansaços e pouco deslumbramento; na verdade nunca o amara. Nem pouco nem muito. Temera a solidão, o deserto do casal, o comando das terras. Era seu compadre, mal não lhe havia de fazer, por certo. Sempre era um homem, elas três mulheres…

Amor tivera ao falecido, que a cobria de atenções e mimos. Que a abraçava demoradamente antes de lhe avançar na carne. Que a olhava num olhar maior, quando lhe soltava em adoração de alma e corpo, os cabelos de um ruivo luminoso que a inundavam de luz, e que, sob o manto do céu tangido de Sete-estrelo, sob a bênção do Sete-estrelo, a desnudava por completo e se desnudava a si, para a amar profundamente. Quando em luar maior, lhe adoçava-lhe o gesto da posse. As noites eram sempre pequenas para os amantes e eles amavam-se…

Detinha-se íntima e introspectiva na Lua que, pressentia, alguma vez teria novamente, que se quedava agora sempre negra lá fora, nos braços dos salgueiros e nas urzes serranas. Amor tivera a quem a aconchegava de beijos antes que, bem amada, dormisse e, na manhã seguinte a acordava com uma chávena de leite quente. …

“agora” a cama gemia e acordava as crianças. A palha de milho roçagava o vento que se escapulia das telhas vãs. As noites eram longas demais e, não raras vezes, na manhã seguinte, à beira rio, onde lavava as ceroulas de Jorge, os cueiros dos filhos mais novos e as camisas dos mais velhos, as mulheres do povoado lhe viam as marcas enegrecidas da “paixão”.
“ó Francelina, que é lá isso, ó mulher? Tens uma negra nesse braço… e que é isso na boca? Tá a modos que rebentada…”.
“… não, senhor, não é nada … fui eu que me abracei no descuido com um cepo no quintal, que ia de cabeça no ar …”
De olhos baixos, esfregava primorosamente as fraldas até a pedra se queixar e as mãos enregeladas do inverno se abrirem em sangue. Chupava os dedos para que estancasse, dava por concluída a tarefa, e, de alguidar numa anca, bilha na cabeça, e por último a cria mais nova, sua filha de meses, escarranchada na outra anca, avançava a custo o íngreme do monte. Nos entretantos, a sós com Deus e com a sua vida, rezava em contas das próprias lágrimas. Agora era tarde para recuos, como tarde se anunciava o dia já a pôr-se enegrecido no ocaso. Apenas uma luz lá no alto lhe conduzia o andar nos pés mal calçados de solas safas. Perscrutava o Sete-estrelo …

A proximidade do casal já se sentia, no latido dos cães e nas correrias das crianças que, no instinto se acercavam dela. Soltava Rosa da anca, confiava-a a Manuela, uma das mais velhas, gritava o nome de Raimundo, de Carlos e dele, o dono temporário das botas…
Acorriam em algazarra.
“mãe, mãe…”
“rapazes, onde está o gado? Já o arrecadaram? E a lenha? Trazei-me dai uns cavacos que se faz tarde…e o vosso pai já deve andar por perto…”
Manuela ajudava no pendurar da roupa, os rapazes acendiam o lume, os mais novos corriam em torno das suas saias. Por instantes eram uma família feliz. Francelina abraçava os filhos, beijava-os, deitava sobre eles um olhar de esperança – um dia as coisas mudariam. Seriam eles a tomar conta das terras. Jorge afinal não era dono de nada, valha-lhe Deus… Um dia. Um dia … “Sete-estrelo”
“um dia faço a vossemecê, minha mãe, umas botas de cano grande, por via de não andar de pés no chão, nem com as pernas rotas dos silvados, vossemecê verá, senhora minha mãe… vou ser sapateiro, como o senhor Joaquim do Vale, meu padrinho.”
Afagava-lhe o cabelo encaracolado e loiro. Abençoava-o. O seu filho mais velho, daquele casamento desgraçado. E agradecia, contudo. Lindo o seu filho. Grata, olha-o …
“… um dia, filho…”

O latido aflito do cão de guarda mais ao fundo do portão indicava a proximidade do dono. Era ele sempre a primeira vítima. “…é cão duma peste, não te calas nunca!”. Um pontapé ou uma verdascada marcavam o ritmo do discurso iniciático.
As crianças sumiam. Cada um para o seu canto, para as camas improvisadas em cima das arcas do pão, com mantas trapeiras.
Francelina colocava apressada Rosa no berço, com uma chucha de açúcar e vinho. Dormiria. Tinha de ser…
“já comeram os rapazes? É bom que sim, que quero descanso”.

Acenava que sim. Muitas vezes não, mas ninguém dizia nada. Ajoelhava-se aos pés do marido, ajudava-o a tirar as botas. Ele media-lhe o corpo enquanto se levantava rumo ao lume.
As couves fervidas a escaldar o pão. A “tiborna” com o alho. Tudo pronto.

Francelina baixava os olhos, mexia o caldo e servia o seu homem. Depois a sua malga. Comiam em silêncio. Jorge, por debaixo da mesa procurava-lhe as pernas. As mãos grosseiras, apertavam os joelhos, arranhavam desapiedadas a pele. Avançavam, subiam, buscavam o sexo. Achavam-o. Penetrava-o desvairado e, se o sentia húmido da corrida e dos labores, dos cansaços do dia, que fosse, começava ali o chorrilho de difamação “puta, ‘tas com ela aos saltos, não é?, quem é que te comeu hoje, minha puta?”. Levantava-se num ápice, empurrava-a contra a parede, abria a braguilha, soltava o bafo do vinho pelas narinas de besta e possuía-a ali mesmo, sem uma palavra. Mordia-lhe a boca, mordia-lhe o corpo, fazia soltar os seios do corpete alvo, apertando-os impiedosamente. Rodava-lhos os bicos já macerados de vezes outras, mordia, sugava-lhe o leite e o sangue que escorria – ainda amamentava -, . . “puta, agora estás satisfeita? É disto que precisas, não é? Cadela, puta... ”. ...
Por fim largava-a. Voltava para a mesa, comia outra malga de sopa, bebia, raras vezes se lavava. Deitava-se.

Francelina chorava sem um ruído. Arrumava o que havia a arrumar, engraxava de sebo as botas de seu marido, recolhia as roupas caídas junto ao leito e, quando o julgava adormecido ia levar as malgas aos filhos às camas. Finalmente, quando as crianças adormeciam, voltava ao quarto e tomava o seu lugar na borda da cama, no silêncio que a palha lhe permitia.
Noutros dias, naqueles em que ele a tomava e a achava seca, nem por isso as coisas corriam de melhor feição “puta, não queres o teu homem? Gostas mais dos moços de estrebaria é? Ou dos oficiais de cavalariça? – dizia-o em alusão clara ao facto do primeiro marido ser da tropa. -, “morreu, puta, deste cabo dele, não foi? Rebentaste-o debaixo de ti..., agora rebento-te eu, que vais ver o que é um homem.”

Francelina foi a enterrar. O povoado inteiro em torno das crianças. Os padrinhos a adivinhar a falta. Cada um para sua banda. Cada um por si, ou Deus por todos...

Ele seguiu o padrinho, sapateiro de profissão. O pai desceu ao Vale, três semanas mais tarde e naquele mesmo dia fez-lhe a trouxa, amarrou a um pau e deu-lha para a mão.
“… vai, o teu padrinho já te espera. Aprende a profissão. Aqui não há lugar para malandros”.

Tinha onze anos. Olhou pela última vez os cães, olhou a casa deserta das feições de sua mãe. Abraçou um a um os irmãos, desceu o monte, procurou o vale e lá a casa do sapateiro… era noite fechada. Guiou-se pelas estrelas “uma, duas, três, quatro … sete-estrelas e umas botas”.
Mãe...m ã e ... mm ãã ee ...”
Apenas o eco: Mãe...m ã e ... mm ãã ee ...” Um homem não chora! Não era homem: chorava...

“ ... um dia hei-de fazer-te as botas, filha. Se não as fiz para ela...”
Nunca a nomeou. Como se as lembranças o matassem dia a dia, como naqueles dias em que o via a ele a possui-la, à sua mãe, ali na cozinha de lenha, quando o julgavam já acamado. Jurou que um dia o matava... mas ela morreu primeiro. A sua mãe. Tinha onze anos e foi ser “maltês”...

Olhava-as agora, castanhas, na cor da terra, da terra que aguardava para sempre: as suas botas (que nunca usara), as dela, que nunca as tivera ...
Abraçava-as devagar. lenta_mente.
O céu em Lua cheia.

Soltou os cabelos cor de fogo, os que herdara dela e, num gesto insano possuída pelo tempo que não foi seu, jurou à Lua que nenhum homem a possuiria sem que a amasse de verdade, que nenhum homem encostaria um dedo que fosse no seu corpo sem que da sua alma se tivesse primeiro apossado em troca da que lhe tivesse confiado. Magicamente calçou as botas. Perfeitas. À sua medida.

Dizem que é Ninfa do Tejo, que o Sete-estrelo dança nas cores de seu olhar ...
Dizem!
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Notas:
In Wikipédia: “Sete-estrelo”- Trata-se das Plêiades, um grupo de estrelas na constelação do Touro, que consistem de várias estrelas brilhantes e quentes, de espectro predominantemente azul. A névoa azul que as acompanha deve-se à fina poeira interestelar da região em que elas se encontram que reflecte a luz azul das estrelas.
Referências Bíblicas a Sete-estrelo:Livro de : 9-9 [...] quem fez a Urso, o Órion, o Sete-estrelo e as recâmaras do sul"; 38-31 "Ou poderás tu, atar as cadeias do Sete-estrelo, ou soltar os laços de Órion?" ; Livro de Amós: 5-8 "[...] procurai o que faz o Sete-estrelo, e o Órion, e torna a densa treva em manhã e muda o dia em noite; o que chama as águas do mar, e as derrama sobre a terra: o Senhor é o seu nome."

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Ninhos...

A tarde avançava por sobre o vermelho da vinha piriquita à sua direita, descendo a passos dóceis do escuro dum céu entre o rosa e o chumbo. Adivinhava-se o frio lá fora. A tempestade. Dentro do carro o termómetro marcava a temperatura externa. Escassos quatro graus. Temeu a saída. Suportava mal o frio. Sempre assim fora. Ainda o Inverno vinha longe e já se escondia literalmente nas imensas golas altas. Não raras vezes as fazia subir até por cima da boca, deixando apenas à vista o nariz e os olhos.
“lá está ela, isso é vício, sempre a esconderes-te por detrás das golas”.

Sorria… Adivinhava-se o sorriso no brilho levemente humedecido do olhar, porque, em rigor, continuava escondida, no agasalho das suas golas … na protecção tácita e premeditada de suas golas. Noite e dia o corpo não se lhe aquecia, por mais roupa que colocasse, camada sobre camada, em jeito de cebola (seria por isso que tantas vezes lhe vinham lágrimas teimosas aos olhos?...). Imaginar o frio e já os ossos se lhe encolhiam, se cravavam espinhos em pele, rasgando-a, no cieiro pérfido da dor. Nas frieiras que em menina lhe assoberbavam as mãos, impedindo os gestos. Hirtas as mãos. Gostava de chuva mas não de frio, de todo não …

Seguia em rota, a caminho de Montemor na A2 ladeada ora de pinheiros mansos, ora de azinheiras. Azinho. Os cheiros da lenha a crepitar na lareira, a mansidão das falas. Os ninhos empoleirados nos postes de alta-tensão. Os ninhos de cegonhas …

Outras viagens, outras épocas, nos tempos em que ao Alentejo das suas memórias, no pós-revolução de Abril, os trabalhadores das indústrias, os doutores, os trabalhadores do comércio, a população urbana no geral, acorria a fazer a reforma agrária.
E ainda aquelas, as que agora lhe vinham revisitadas nos ninhos de cegonha: Maria Luísa.
“… levaram-na para sempre, menina. Nunca mais voltou aqui ao nosso ninho. Foi um pássaro migrante sem retorno, sabe, menina?”.

Duas lágrimas teimosas marcavam o rosto do homem ali sentado à beira da lareira. Imaculadamente branca, a casa, respirava a poros abertos o cheiro do azinho, das chouriças curadas na “da vizinha”.
“… coma, menina. Vai ver que gosta. Nós não criamos porcos, bem se vê. A minha Jesuína ficou assim ainda não tinha trinta anos. Faz o que pode, e olhe que faz muito, sempre fez. Mas fora de portas não pode, bem se vê. Uns bicos ainda se criam, por mor de uma canja na doença, mas mais que isso não. Mas estas são de confiança. São além da vizinha do Alabastro. Um porquinho criado à mão, engordado só com o que a terra dá. Bolota. Nada de farinhas, não senhora. Coma menina que vai gostar…”

Pegava no canivete sacado do bolso das calças, limpava cuidadosamente e, sem mais, cortava as chouriças em pedaços fartos. Igual tratamento dado ao pão carrasqueiro, de grandes dimensões.
“…é além da vizinha Margarida. Coze em casa, sempre cozeu. Nós não, a Jesuína não pode amassar e, casados os filhos e migrados lá p’rá cidade, não vale muito a pena. Dantes eu mesmo o fazia, amassava. As raparigas tendiam e iam ao forno da vila a cozer… dava-se de pagamento uma parte da cozedura (um panito ou dois…) e pronto, ficávamos governados para toda a semana. Com azeitonas e uma cebola, tantas vezes foi o meu almoço além nas hortas…”

Ao lado, Jesuína ouvia com atenção as falas de Alexandre. De lenço amarrado por sob a boca já desdentada, de xaile de lã escura sobre os ombros, amparava a mão direita no cós do avental. Inútil. Mão inútil. Nada fazia, dizia. Tal como o braço. Tal como a perna que arrastava, sobre o pé virado em sentido inverso. Para trás. O pé, tal como a mão, ficara-lhe assim após uma trombose, aos vinte e poucos anos.

“a Luisinha, menina, foi-se e nunca voltou…”

Pegava de novo no fio da meada, numa lembrança que o magoava, que o tornava menor, nos seus mais de metro e oitenta. Turvavam-se-lhe os olhos, num verde já cansado. Desbotado no sal das lágrimas.
“Alexandre, o Grande”, recordava-se, tinha sido assim que interiormente o chamara, desde aquele dia em que o viu a primeira vez e ele, com um sorriso aberto lhe estendeu a mão e ela, atrevida, lhe beijou a cara. Viu-o ruborescer, ao mesmo tempo que lhe dizia: - “então é a menina que futura a ser minha neta? Faço gosto disso, fique sabendo. Ouvi falar já tanto de si…”.

Naquele dia os olhos ficaram cúmplices. Sempre que voltava, como naquela tarde, Alexandre ia à gaveta das suas memórias e, num vagar de tempo partilhado, contava-lhe da vida. Da sua vida. Da vida do seu Alentejo de safras escassas. Do tempo das meias sardinhas e da jorna quando o tempo permitia os trabalhos nas terras. De sol a sol, e ainda completados com as tarefas mais pesadas da casa. As mais pequenas feitas pela esposa e pelos filhos, ainda crianças…

Em simultâneo, da gaveta dos seus “tesouros”, oferecia-lhe alguns. Pequenos adornos de madeira que, à lareira, nas noites intermináveis, ia fazendo com a preciosa ajuda da sua navalha. Num esculpir de afectos, dando forma e utilidade a pequenos paus, sobras de cortiças. Oferecia-lhos.
“… leve este, menina. É um coxo, se tiver sede pelo caminho, já tem por onde beber…e este tem o seu nome, já viu? (mostrava um M, mal desenhado, talhado na cortiça, naquele caso, copiado a olho dalgum lado. Mostrava, orgulhoso...). Ou prefere este tarro? Pode levar uma bebida quente lá para o seu Liceu, que ouvi dizer que é friorenta”. Sorria.

Depois, lá mais ao fundo, as chinelinhas… e uma nuvem pousada no olhar. Enorme, a ameaçar tempestade. Como aquelas que agora vinham das bandas de Montemor. Tempestade pela certa.
“… sabe, fiz para a minha Luisinha. Nunca as calçou, bem se vê. Fi-las grandes, para quando tivesse três ou quatro anos. Quando ma trouxessem de volta…
E as lágrimas a traçarem os caminhos do não retorno. A tempestade a varejar as cepas piriquitras e o casario branco. Agora acompanhadas pelo choro baixinho de Jesuina. E logo determinado, “Alexandre, o Grande”:
“…não chores, mulher. Sabes que está bem. Que tem o que nunca lhe podias dar. Tem já filhos doutores, até. Foi à escola e é letrada. Ingrata mulher, estás a chorar por via de quê?... a Luisinha está bem, pois então… muito melhor que aqui. Teria comido meia sardinha e ceifado trigo de pés no chão. Carregado lenha e água além do poço e, lavado no rio, como as irmãs, que sofrem agora dos ossos”
“ … criamos todos os outros, homem. A nossa Luisinha também se tinha criado. Quantos pari depois de estar assim? E algum se perdeu? Deus Nosso Senhor não te ajudou a cuidar de mim e deles?... A nossa Luisinha também se tinha criado. Era nossa filha como todos os demais. Sete, criamos seis. Todos vivos e todos sãos. Não andaram à escola? Não, não senhor. Mas ensinamos-lhe da escola da vida. Hoje já levaram os filhos à escola. E alguns até já são quase doutores, engenheiros, não é como se diz? Como esses da reforma agrária que ai vêm, só que os nossos netos comeram com as colheres que tua fazes dos troncos, e das migas que eu consigo fazer com esta mão que Deus me conservou. A Luizinha nunca as comeu, homem. Era de leite quando se foi…”
“…coma, menina. Não se entristeça. A minha Jesuína está sempre a chorar a nossa filha. Mas ela está bem, está bem …”

Repetia para se convencer. Para se acalmar. Para acreditar, não acreditando jamais, que, deixá-la partir fora a melhor escolha. Afinal sempre lhe disseram que seria só por dois ou três anos. Iam a modos que para juntar uns dinheiros. Voltariam. Luisinha, a sua afilhada, voltaria e, nessa altura, por certo Jesuína estaria já melhor...

Viu-se a braços com a doença da esposa. Com sete filhos todos pequenos. Os padrinhos voltariam, pois então. Argentina não era lugar para se ficar, era o que lhe diziam. Só para ganhar uns tostões. Assinou. Não sabia ler, mas assinou, ou melhor, no registo colocou o dedo. Num aperto de alma, colocou o dedo.

Luísa não voltou. Nem nos dois anos seguintes, nem nas duas décadas, nem sequer nas quatro que já tinham passado desde esse dia em que a vira a sorrir nos braços da madrinha. Nem quis olhar. Fechou-se em casa.

No início ainda, a espaços, chegavam notícias: estavam bem, ficariam mais um ano ou dois. A menina já andava à escola. Ficassem pois tranquilos. Não sabiam escrever nem ler. Pediam a quem lesse, a quem respondesse. As cartas seguiam e, deixaram de ter resposta. Choraram a perda, a ausência. Filhos já criados, no ninho faltava sempre Luísa. Na mesa faltava sempre Luísa.

Nas tardes de estio, Alexandre olhava os ninhos de cegonha e, intimamente, recordava o seu. Faltava sempre um filhote, uma filhota. A dona das tamancas que estendia na palma da mão a Maria.
“… veja, menina. As tamanquinhas de Luísa. Gosta?...”

Jesuina pegava agora as batatas. Com o braço parado amparava-as contra a barriga e, com a mão esquerda descascava-as primorosamente.
“… tudo se faz, menina. Teria criado a Luísa. E não seria menos feliz que os outros”.

“…podemos voltar a escrever, que acha? Tentar saber deles. Gostava, Senhor Alexandre? …"
“… sim, tanto. Ela pensa, disseram-me umas pessoas que vieram de lá depois do 25 de Abril, que eram lá refugiados (é assim que se diz?), que ela, a minha Luísa, é filha deles. Que nasceu na Argentina. Tem o nome deles e nem tem irmãos. Nunca conseguiram ter filhos. Dizem que, não sendo rica, vive bem… eles, os padrinhos, morreram. Já não tem ninguém para além dos filhos e do marido. E, veja a menina, tem tanta família a minha Luisinha… pode escrever? Faria isso por nós, menina? Hoje?... Hoje mesmo?... Vou à venda comprar uma carta, quer?.
“ tenho papel, podemos começar?...”
Abraçou-o. Pegou num bloco e numa caneta e começou a escrever:


"Ponte de Sor, 30 de Setembro de 1978
…Menina Luísa, vai estranhar esta carta. Não me conhece, nem conhece esta terra pois não? Chamo-me Alexandre, tenho setenta e dois anos e sete filhos.
Tantos netos que me baralho com os nomes…
Somos uma família pobre, a minha senhora teve uma trombose muito nova. Coisas da vida, do destino. Deus é que sabe as provações que nos dá. E a nós cabe encontrar caminhos…

Gostava de lhe contar uma história, ouvi dizer que é professora primária.
Não sei se sabe dos ninhos de cegonha. Se já viu alguma vez cegonhas. Por aqui, menina Luísa, dizem que as cegonhas trazem no bico os bebés. Quando nascem crianças, aos irmãos conta-se que a cegonha, um pássaro migrante, trouxe de longe, muito longe, o irmãozinho que chega. E, claro, as crianças alegram-se com a chegada da cegonha. E dos manos, bem se vê.

Foi assim quando a menina nasceu. Era Primavera, os dias começavam a aquecer. Eram as suas irmãs mais velhas, de poucos anos, pouco mais de meia dúzia, que iam ao rio lavar as suas camisinhas. A senhora sua mãe estava acamada (melhorou depois, graças a Deus). Era a sua madrinha quem nos ajudava a embalar o seu berço. Um dia, Luisinha, vocemessê fez o seu primeiro voo. Dizem que de avião. Nunca andei em nenhum nem quero andar… só queria que vossemecê um dia, se pudesse voltasse a este ninho que a espera: a sua casa, os seus pais, os seus irmãos … a sua terra e visse ninhos de cegonha…

Somos muito agradecidos aos seus padrinhos, que vossemecê cuida de serem seus pais, por a terem criado, educado, amado. Que a alma lhe esteja em descanso. Queremos que os guarde sempre no seu coração de filha. Mas nós, menina Luísa, é que somos os seus verdadeiros pais. Eu e a sua mãe, Jesuína. E os seus irmãos e seus primos, todos nós, somos a sua família verdadeira. E nunca a esquecemos.

Perdoe-nos por a termos deixado partir. Por agora não sermos capazes de ficar calados. Nada queremos de si, menina, não tema. Temos o pão de cada dia, que nos basta. Quanto a mim, apenas quero que receba estas chinelinhas que são suas… têm menos dois anos que vossemecê, faça-lhe as contas…

Receba um respeitoso beijo deste que se assina, Alexandre, seu pai. "


Luísa recebeu a carta. Levou meses a responder mas respondeu. Manteve anos a fio correspondência com os pais, até à morte de Alexandre. Mandou-lhe fotografias dos filhos e dos netos. Aprofundou as suas raízes. Mas nunca quis visitar os pais, nem o País. Por fim, após a morte de ambos, deixou de responder aos irmãos… na última carta dizia-se “filha única”.

Quatro gerações depois de Maria Luísa, uma sobrinha-neta nasceu e tomou o seu nome. Voará brevemente, desta vez no colo quente de sua mãe rumo ao frio da velha Europa…

A placa indicava agora a saída para Montemor. Para trás, os ninhos de cegonha.
Luísa…

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...