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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Cap. IV - Tratadora de aves

“Sou fera? Vá, que me domem!
E vos outros que sereis?(...)
Ricos, prostrai-vos: é a hora!
Sou Deus, esmago Satã:
Do sangue nasce a aurora,
Nas almas é já manhã!”
MÁRIO BEIRÃO - “A EPOPEIA DOS MALTESES”
(Ler Cap. III)

As muralhas do Palácio acolheram durante anos aquela tratadora de aves, estranha e pragmática a quem nada metia medo. Em dois tempos, as gaiolas reluziam, a horta ganhava mais dois braços, o laranjal despia-se dos seus frutos, as mesas, em contrapartida, recobriam-se destes. O pessoal temia-a e respeitava-a a um só tempo. Nas tardes de sábado ou de Domingo em que o trabalho no Palácio a chamava, às vezes, nem sempre, porque "crianças só atrapalham", levava-a com ela.

Mal cruzava os largos portões do Paço, “soltava a mão a Lia, deixando-a por conta própria”.

Portugal era, à altura, um país de contrastes - estávamos na década de sessenta -, o grupo dos jovens, que em 1960 representava 29,2% do total da população, viria reduzir-se a 16,9% em finais do século. Simultaneamente, o grupo dos idosos, tal como eu própria sentiria ao longo de todo o meu percurso, não parava de crescer. Se em 1960, o ano da minha concepção, os tios velhos representavam 8,0% do total populacional - dados que muitos anos mais tarde - quando a Demografia entrou sem aviso na minha Vida, e com a qual desde logo estabeleci uma relação de cumplicidade, viria a apurar-, em 1998, representavam 15,2% do bolo populacional. A famosa pirâmide, de que eu só tinha memórias associadas às viagens de que ouvira relatos, numa bela tarde de Inverno, na minha sala da terceira classe (as pirâmides do Egipto, um lugar tão longínquo, misterioso, fascinante) aplicavam-se ali, àquela nova ciência, a Demografia.

E tal como eu, a Demografia havia virado o Mundo, o meu pequeno Mundo Nacional, de pernas para o ar.

A Pirâmide estava invertida. Gostei dela e pronto: Reservei-lhe um quarto soalheiro no castelo encantado dos meus saberes. Um feudo, cercado de terrenos inóspitos, onde só entravavam matérias novas se explicáveis à luz dos saberes da minha infância. Foi sempre assim, creio que assim será para os fins dos tempos. Neste espaço de tempo –o espaço de tempo em que decorre esta história, o fenómeno do envelhecimento viria a traduzir-se por um decréscimo de 35,1% na população jovem, isto é, com idades compreendidas entre os 0 e os 14 anos, e um incremento de 114,4% na população idosa, ou seja, com 65 e mais anos. Era um mundo de mulheres, em particular de mulheres velhas, de “Meninas-Velhas”, com quem tanto, mas tanto, haveria de aprender. Os homens, emigrados ou na guerra, os homens, figuras carismáticas da geração anterior, estavam ausentes. As crianças, cada vez em menor número, cresciam votadas a si próprias ou, na melhor das hipóteses, na companhia das mulheres. O grupo dos jovens, que em 1960 representava 29,2% do total da população, reduzir-se-ia a 16,9% em 1998. Simultaneamente, o grupo dos idosos não deixava de crescer. No mesmo período, elevou-se de 8,0% para 15,2% Em 1960, existiam 92 homens por cada 100 mulheres em Portugal. Passados cerca de 40 anos, a relação de masculinidade subiria, ainda que ligeiramente, para 93 por cada 100.

Mercê de uma forte emigração das décadas de 60 e 70, o mínimo foi atingido em 1973, posicionando o rácico de 88,9. Esta relação de masculinidade, tal como viria a perceber, diminuí na medida em que se avança na idade; este fenómeno, é explicado através da sobre-mortalidade masculina, propagando-se como uma onda, nas diferentes classes etárias.

Enfim, uma série de dados estatísticos e sociais, que, valendo na prática o que valiam, explicavam a realidade da minha aldeia …

À altura do casamento de Linda, 1960, residiam em Portugal 66 homens idosos por cada 100 mulheres idosas; em 1998, ano da sua morte, eram aproximadamente 69. Em 1965, época em que eu vivia as aventuras do Palácio, a relação de masculinidade da população idosa atingiu o valor mínimo em 1965 (64,1). Por cada 100 mulheres, seria possível encontrar 64,1 homens. Era assim na minha aldeia, que bem o sentia.... para onde quer que olhasse só via negro, mulheres de negro, almas de negro.

A vida do e no Palácio situado onde no final do séc. XVII terá sido o Paço pertença dos "Manuéis", Condes de Vila Flor, ampliado e renovado no séc. XVIII por um dos seus mais notáveis proprietários, o 1º Duque da Terceira, D. António José de Sousa Manuel e Menezes Severim de Noronha que nele viveu entre 1792-1860, no decurso do reinado de D. Pedro IV, rei que ao Paço se terá deslocado pelo menos três vezes sua esposa D. Estefânia, a expensas dos próprios e do erário público e habitado posteriormente, por outras famílias ilustres, a exemplo de, em 1940, a família do Dr. Armindo Monteiro, Ministro das Colónias e Embaixador de Portugal em Londres, para Lia (modesta narradora destes contos), era apenas e tão só, palco de um conto de fadas. Os que inventava, os que, retirados dos seus livros de menina, transpunha para palco certo: o seu Palácio cor-de-rosa.

Das noites invernosas recordaria ainda aquelas em que, a avó tratadora, contava do modo cruel que este havia sido devorado pelas chamas, ia alto o ano de 1944; de como, do Casal da Oliveirinha, situado na encosta norte, adjacente aos terrenos do Paço, se chegara a temer o pior: uma rajada de vento e o fogo, desgovernado, teria reduzido a cinzas toda a encosta. Que o povo acudira em massa, e não fora isso, a esta altura, não haveriam araras, tucanos ou pelicanos, comprados pela famílias dos actuais proprietários.

Falava ainda de que D. Rafaela de Burgos* e seu marido, o Capitão Rudolfo D’Ávila*, haviam-se encantado pelo sítio. Em verdade nele viveriam até 1989, altura em que o “meu Palácio” viria a ser comprado por uma firma com sede em Hong Kong. Quis o destino que, devido à guerra do Golfo, esta não cumprisse as suas obrigações com o BPA, tendo-lhe perdido a posse....

Em 1993, foi finalmente adquirido pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, posto ao serviço da população. Em 1995/96, aqui se instalam os serviços de Museu e Património do Departamento de Acção Sócio-Cultural. O Palácio da minha infância, em a sequência de um Projecto de adaptação a núcleo museológico e patrimonial do Concelho e, igualmente de um projecto de reutilização integrada de património cultural e paisagístico, é hoje o local onde, se procede ao levantamento, preservação e restauro de todo o património histórico e arquitectónico concelhio. Os salões de que me recordo, deram espaço a arquivos do acervo museológico e uma oficina de restauro, realização de encontros científicos e culturais, concertos, projectos de animação pedagógica e diversas iniciativas de índole cultural. Os jardins proibidos, onde tantas e tantas tardes, me escondi do mundo, decadentes aquando da compra da firma de Hong Kong, sofrerem agora aturada manutenção, forma criadas novas áreas ajardinadas, funcionando, no período de Verão uma piscina aberta á população jovem local.

O meu Palácio, e o seu património natural, os Matos do Sobralinho, representam uma parte do meu próprio património emocional. …

* nomes fictícios

in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia dos sentidos" © Todos os Direitos Reservados

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...