Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 14 de setembro de 2008

Balbina, mulher sem vícios

Quando a conheci já era bastante entrada na idade. Não a diria “velha”, contudo. De porte direito nas suas generosas curvas, de ancas e seios opulentos, de cabelos sempre presos num carrapito igualmente generoso, de faces vermelhas e um sorriso largo, era o protótipo de uma verdadeira campesina.

No queixo, no buço, pelos grossos e já brancos, que aparava à tesoura, davam-lhe um ar de “macho de saias” bonacheirão. Um andar indolente, cambaleado, ajustavam a figura.

Vivia no planalto da serra onde a pedreira ainda não tinha chegado e por onde ainda se pastoreavam os últimos rebanhos, se cultivavam as últimas vinhas, onde ainda se colhiam frutos dos escassos pomares que haviam resistido ao ímpeto devorador da "máquina do pó"…

Naquela altura, a distância da sua à nossa casa no sopé da serra, pareciam-me léguas. Pelo meio nada havia a não ser um ou outro casal em declínio, a ruir nas fundações e nas estruturas abandonadas. Não se via vivalma. Os terrenos da família, da nossa família – parte já vendidos à “máquina do pó” -, ainda iam produzindo a esforço. Quando a máquina soltava pedras na encosta, vomitava urros pelas narinas e pó pelas ventas, não havia bago que se aguentasse e as colheitas ficavam invariavelmente perdidas. Todavia alguns dos herdeiros, primos e tios, persistiam teimosamente em lhes deitar sementes, em as cultivar. Trocavam-se serviços nas courelas de cada um, numa economia escassa de subsistência.

Era nesse tempo que nós crianças a encontrávamos. Era na sua casa que se buscava entretêm nas tardes frias ou nas demasiado soalheiras enquanto os adultos se ocupavam das tarefas da apanha da uva, por exemplo, ou da azeitona.À época não haviam farturas nem guloseimas outras que não aquelas que a terra nos dava. E Balbina, a quem a vida não dera filhos, sabia como nos agradar. Na sua paciência infinita, nas tardes de estio, descascava pinhões, enfiava-os em linhas e, dia após dia, ia-nos dando os colares. Ou então, figos passas com nozes dentro, que chamava de “casamentos” … e, quando nada disto tinha à mão, espetava um pedaço de pão de centeio num garfo de dois dentes, torrava no lume sempre aceso, besuntando com a banha dos torresmos de cor alaranjada que retirava de uma panela de barro negra das múltiplas utilizações. O leite, esse, íamos nós mesmos com a sua ajuda ordenhar das ovelhas ou das cabras. Bebia-se quente, deixando na cara de cada um um largo bigode branco de espuma. Era a risada, a nossa e a dela. Cada um espelho do outro, que espelhos só mesmo um velho e picado da humidade no quarto dos fundos onde guardava uma arca de tarecos antigos com os quais nos mascarávamos de gente grande ...

Eram estas as tardes de Outono em que a pequenada encontrava uma avó sem pressa, de saias a roçar os tornozelos e avental de peitilho preso com dois alfinetes de dama - os mesmos que lhe serviam para retirar os moluscos dos caracóis de dentro das carapaças… aqueles que apanhávamos nas ervas e que nos assava com sal grosso.

Balbina era generosa, na verdade, e disso fazia gala o seu Pedro.

“ A minha Balbina é uma alma grande, vossemecês sabem … e uma cozinheira de mão cheia, valha-me Deus, faz cada petisco (dizendo saliva no prazer antecipado)...mulher sem vícios é a minha Balbina … grande mulher a minha Balbina, grande mulher...”

Sorria. Sorriam-lhe os olhos do azul mais intenso que alguma vez vi num ser humano. Sorria-lhe o corpo seco e hirto e a voz, por natureza gaga – gago que só ele -, naqueles momentos, em glória da sua valquiriana esposa, saía limpa e escorreita.

“ Quis Deus que não tivéssemos filhos, mas a minha Balbina tem sempre a fralda da saia apinhada de crianças e, a nossa mesa é farta. Dá de comer sempre a mais um… não se teme a trabalhos nem canseiras...”

Era a mais pura verdade. Se, aquando da cava chovia, logo Pedro se assumava ao topo do casal e gritava a todos:

“… homens, vossemecês não têm uma horta nas costas pois não?, ora vinde até aqui que a Balbina já cuida de vos arranjar de janta…”

O casal dos Esteves, à semelhança dos demais da zona, era um composto de casa de habitação, lagar e adega, celeiro, cortes dos animais … No caso, a cozinha de lenha dava de paredes meias com adega, onde Pedro colocara uma mesa improvisada de troncos de choupo abertos sobre cavaletes de madeira. Era ali mesmo, no ébrio da fermentação que acolhia os passantes, entre os figos passas, as romãs colhidas no quintal, o toucinho retirado à salmora e assado no braseiro. Da talha as azeitonas retalhadas nas horas do serão pelas mãos da sua Balbina, do fumeiro os salpicões, os buchos,as linguiças com pimentão da horta, O mel das colmeias dispostas no fundo da eira, as compotas do tomate e a jeropiga caseira …

Balbina ia e vinha, de cá para lá, trazendo a loiça, levando as sobras para o maceiro dos porcos … Os homens comiam e bebiam, de navalhas em riste ao pão trigueiro. A galhofa esquenta, os dominós cruzavam a mesa e a tarde, que, do lado sul, do rio abaixo, subia agora a encosta, atrevida … entre um copo e uma mão cheia de azeitonas ou tremoço, se fazia noite e se estreitava amizade.

“… Ti Balbina, coma a “mor” com a gente…”
“… Comam vocês, eu cá m’arranjo…"
“… Ti Balbina, beba um copinho do seu com a gente …”
“… Ó Manel, a minha Balbina não bebe, ó homem, até a ofendes … h’ome essa, querem lá ver? é que nem do cheiro Balbina gosta, por via disso nem come aqui com a gente… a minha Balbina só água, nem leite que dizem que até faz bem… mas não, homens, a Balbina é mulher de água só … sem vícios, sem vícios ...!”

A hora ia progredindo e as faces de Balbina cada vez mais rubras. Guinchos finos atravessavam de quando em vez os raros momentos de silêncio. Gemidos silenciados, travados nos passo …

“… Ti Pedro, vocemessê tem ratos na cozinha? …”
“….H’ome essa … n’senhor, tenho o Tareco de atalaia, e olha qué fino o bicho … ratos é que não… ai, Marcelino, tu tens cá umas ideias, ó rapaz …”



Era época de poda, no Fevereiro adiantado. Os homens estavam de posse à vinha. Naquele dia, sem que nada o fizesse prever, de um céu limpo, uma cabazada d’água caiu de repente ensopando todos até aos ossos. Pedro gritou aos homens que desferrassem do trabalho, por entre dois trovões. A coito da casa, esbracejava em gestos efusivos…

“O Marcolino, ò Jeremias… vinde dai e ide à cozinha, que a Balbina tá por lá. Que acrescente a panela. Não podeis regressar ao povoado encharcados desse modo…”

Marcolino, nos seus ainda frescos quarenta anos, em segundos, entrando pela adega, chegou à soleira da cozinha …

Balbina, de caneca na mão e de bigodes tintos de vinho carrascão encarou-o na surpresa… abriu um sorriso, e, de rompante soltou:

“… Ó Marcolino ... meu rapaz, como é que adivinhaste que te ia a levar esta pinga, homê?”

Riram ambos. Naquela tarde, Balbina, como em tantas outras, "soltou os ratos na cozinha", nos lamentos da torneira a abrir lentamente … do barril reserva que Pedro guardara para os anos de sequeiro …

... E soltou largos sorrisos no seu ar costumeiro e bonacheirão de mulher sem vícios!

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...