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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Cap. III, A construção

(ler Cap. II)

“A casa é feita semente / Recibo que paga a chuva No morno inteiro da Vida / Que a fala compra à enxada”
ARMANDO DA SILVA CARVALHO - “A CASA O CAMPO E OS TIOS”

Aos poucos, tios e primos começaram a comprar terrenos e a erguer pequenas casas. Linda comprou o seu, nos “terraços do rio”, como hoje alguém que quisesse vender terrenos lhe chamaria. Um pequeno lote de pouco mais de duzentos e cinquenta metros, circundado por um olival abandonado e encimado pela serra donde viera.

A herança não chegaria para erguer as paredes de fora. Quando chegou a vez de colocar o telhado, o dinheiro da venda do Casal dos Anjos há muito havia acabado.

Que fazer? Restavam ainda as ovelhas, um rebanho de mais de cento e cinquenta cabeças. Talvez fosse hora de vender também o gado. A mãe sozinha não podia pastoreá-las, a pedreira cada vez mais perto, bufava pedras desgovernadas, por pouco havia dias não a tinham levado desta para melhor. ..

Que fora por pouco, sim senhor, caíra-lhe aos pés um pedregulho, solto dos quintos dos infernos. Outra como esta, e nem o seu santo marido, que Deus haja, a salvaria de morte certa.

Concordou! Quando a filha lhe falou em vender o gado, abençoou-lhe a ideia, que sim senhor, estava muito bem, aquela Vida já não era para ela, as filhas estavam arrumadas, a mais nova a viver na casa que ambas, mãe e filha, com o dinheiro da venda do Casal haviam conseguído construir. Sem luxos mas suficiente. Igualmente nos “terraços do Tejo”, perto da fonte Graciosa, ao pé do Palácio e do Mato do Convento. Concordava, mas sem gado, o que iria fazer? Não fora talhada para a Vida de casa, salvo seja. Que saber fazer o essencial sabia, mas entretens de rendas e bordados não era para ela. Além do que, a parcela que lhe coubera de amanho no Casal da Oliveirinha, bem mais pequeno que o que vendera, era insuficiente para o seu sustento.

Que não havia problema, argumentava Linda. A "madrinha parteira", que morava paredes meias com o Palácio, sabia que o senhor Capitão, o novo dono, tinha a mania de aves, aves raras, vindas de várias partes do Mundo, de muitas cores, barulhentas como só elas. Que até tinha mandado construir umas gaiolas, capazes de serem lavradas por uma junta de bois, com rede toda à volta, da altura de dois homens em pé, cobertas por cima também de rede. Sim, mas o que tinha a mãe de Linda, Aurélia de seu nome a ver com esta história de pássaros? Ora aí está, tudo a ver. A "madrinha parteira" fora assistir ao parto da criada de fora, no Palácio, que se houvera enrolado com o tratador. O Capitão quando soube não gostou!
No Palácio, todos casavam à sombra de Deus, para isso se havia aberto as portas da capela a todos quanto lá quisessem ir rezar. Pouca vergonha, não, mil vezes não. A criada ficava, que ele não era de por porta fora mulheres e crianças, mas ele, o tratador, que se cuidasse, o melhor era fugir para bem longe, não fora o acaso de, algum dia, enquanto o Capitão treinava tiro ao alvo, por engano, sem querer, algum chumbo perdido encontrar o desgraçado.

Da estória restou uma gaiola sem tratador, e um monte de araras, papagaios, tucanos e demais espécies, alimentados a medo por entre as malhas da rede, que ninguém se lhes queria abeirar. Não era ela uma mulher sem medo, que agarrava cobras pela cabeça, capava porcos, fazia partos às vacas e cabras?
Não se dizia dela, que nas redondezas, os seus bigodes hirtos, faziam inveja a muitos mancebos? Pois provasse agora a valentia, entrasse sem medos na gaiola das araras.

Olhou a comadre, casada com o primo Fidalgo, madrinha da sua filha, com um olhar desafiador. As duas mulheres mediram-se. Se uma sabia fazer nascer crianças (não todas, bem se sabia, à sua neta não fora capaz de fazer nascer, não foram os médicos da cidade grande e, vá-se lá saber onde é que a esta hora, filha e neta, estariam - no quinto dos infernos, talvez!...), a outra, por vezes fio, era useira em vestir mortos, atar-lhe os queixos com um lenço branco e encomendar as suas almas ao criador.

Afinal, ambas, cada uma por seu lado, abriam e fechavam as portas das estações da vida...

Iria lá, sim, e as araras que se cuidassem, era mais certo saírem mordidas do que morderem, era mais seguro perderem todas as penas do que ela um único cabelo, que lhe eram muito caros, os seus cabelos, que cuidadosamente escondia num carrapito, por baixo do lenço preto de viúva. Pagavam bem? Era o que bastava, aquela tarefa não havia de lhe levar o dia todo, sempre gostara de madrugar, que as araras madrugassem também, que não iria admitir molezas, estava treinada para dar o primeiro passo, à frente de um rancho de mulheres à ceifa, sobre o Sol de Agosto, marcar o compasso com os homens, no lagar do vinho, não seriam um grupo de cinquenta passarinhecos pintalgados com a cor dos demónios que a haviam de intimidar.

Se bem o disse, melhor o fez. Na manhã seguinte, ainda o Sol não despontara no horizonte, chegou ao Palácio. Pediu para ser recebida pelo capitão, que era com ele e só com ele que queria falar.

O caseiro quis saber ao que vinha, alguma ovelha destrambelhada tinha entrado no perímetro do mato do Convento, nos terrenos do Paço e não tinha de lá saído? Se era isso, tudo se arranjaria, podia procurar a vadia... Que não, já não tinha ovelhas, se isso lhe importava saber. Queria, porque queria falar como o Senhor.

Esperou horas a fio, sem cruzar a ombreira da porta, que a casa acordasse e o Capitão descesse. Finalmente, quando da cozinha já vinha um cheiro a assados, capaz de fazer levantar do caixão os mortos que estava habituada a preparar para a viagem, o Senhor chegou, envolto numa espécie de gabão de seda vermelho sangue. Não se intimidou também. Nem com a figura, nem com a aparato. Recuou no tempo e veio-lhe à memória a figura desenxovalhada do seu amada pai, e foi quanto lhe bastou para ganhar alento e falar ao que vinha.

A princípio o Capitão nem a queria receber, aquela tarefa era para homens, e de barba rija, que maricas não teriam lá guarida. Mas depois, perante a determinação da candidata ao lugar, ousou deixar que entrasse no recinto. O Palácio parou para ver tamanha provocação. As cabeças de dragão, talhadas em pedra, por onde minutos antes jorrava água, como por encanto, quedaram-se mudas. Empunhando uma vassoura, tal uma bruxa, entrou cantarolando, começou a limpar a gaiola, encarando os bichos um a um nos olhos. O resto, forma anos a fio de amena cavaqueira, numa língua e num código desconhecida, entendível apenas pelas aves.

Anos mais tarde, quando deixou aves decorativas por aves comestíveis, utilizou os códigos para as adormecer, ao mesmo tempo que as enfiava, de cabeça para baixo, segurando-as pelas patas – tal como fizera a parteira na hora do nascimento – fincando-lhe de um só golpe a navalha na goela. Fazia tudo isto, sem hesitações, lamúrias ou clamores.

Numa sequência só, matava, enviava as ditas nos caldeiros de água fervente, e ainda fumegantes, quase a queimar as mãos, de um golpe só, apanhava uma mão cheia de penas, e outra e outra. Em segundos, uns atrás dos outros, os galináceos iam sucumbindo ao poder da sua mão. Depois, com um golpe certeiro, rompia-lhes a pele por de cima do papo, outro na zona de baixo, esventrava-lhes as entranhas, retirava os pertences comestíveis – fígado, moela, coração – enfiava-lhes as pernas sem pés na ranhura que fizera, as asas dobradas, alinhava-as num tabuleiro, coberto por um pano xadrez, repetia a cena, horas a fio, dias a fio, meses e anos a fio, até que a lei veio proibir, finalmente o abate caseiro de animais para fins comerciais. Mas isso foram anos e anos depois já Lia andava no Liceu… A casa ganhou telhado - sacrificadas as cabeças de gado -, e janelas e portas. Mas estava longe de estar pronta....
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in "Apenas um conto, cerzido ponto por ponto na cadeia dos sentidos" © Todos os Direitos Reservados

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...