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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 22 de novembro de 2008

Escolhera

Escolhera!

Escolhera não se deixar morrer como boneco empalhado, não se permitir falecer por dentro quando tudo em si falava a linguagem do desejo, da ardência e da volúpia. Quando, ao acordar sentia a tumescência do sexo hirto, e, ao lado, dormia um outro corpo, a sua companheira de uma vida inteira na placidez dos anjos eunucos, assexuados. Sentia na pele a necessidade absoluta de corporização dos seus instintos. Sentia necessidade da partilha, de comunhão de pele e sal. E, contudo, escolhera.

Escolhera …

Amava-a. Não duvidava disso. Não em qualquer instância, em qualquer capítulo da sua pródiga imaginação. Nem sequer ai, duvidava. Amava-a, com a mais inteira certeza, talvez agora como se amava uma criança, que, por indefesa, frágil, se deseja proteger até ao fim. Mas que, porque criança, amamos doutra maneira.

Claro que não fora sempre assim, tempos houvera em que os seus corpos se fundiram na voz da carne, na voz do cio, do gozo e do sobressalto. Tempos em que as noite eram pasto incandescente de loucura e, as manhãs os acordavam sem sequer terem adormecido… Mas isso fora há tanto tempo… tanto tempo… Aos poucos, a rotina do dia a dia, como erva daninha, havia minado os caminhos, o coração já não falava a voz da boca e vice-versa. E o corpo, esse, esqueceu-se de como era amar a carne daquele corpo em braseiros incandescentes. A febre passou. Tudo passa. A paixão passara…

O casamento, lera em algum lado, era uma canga. Um contrato… um contrato social e socialmente necessário. Todavia, os afectos, esses, sabia largamente, não se regulavam por decretos … a lei era outra, era a da química, da matéria pulsante, iónica e ionizante … a propagação das ondas, como a que sentira na noite anterior, quando falara com Marisa, enquanto Constança dormia placidamente na sala ao lado … naquela noite, como em tantas outras, em que a televisão exercia sobre ela o poder de um berço… e o deixava abraços com uma solidão cada vez maior. Física, psicológica, emocional…

Vitoriano olhava agora o tecto e, a luz difusa da realidade, da crua realidade do momento, projectava-lhe o filme da própria vida. Da sua vida. Tão cheia e tão vazia… Sentia o estômago embrulhado no orgânico das suas próprias emoções. Cena a cena, o filme passava, lento.

Outros corpos, outras camas… outras mulheres que amara e que guardava, eram já memórias difusas. Chamas que lhe afagavam a pele ainda. E que a incendiavam no rubro da amência. Amantes …

Em certas alturas, confundia-lhes os gestos, os afectos, mistura-lhes os atributos, as formas, os modos de e como amara, a cada uma. E como fora amado. Noutras, não tinha absoluta certeza se as possuíra de facto ou efectivamente, as possuíra só em sua mente. Acolhia-as, de qualquer forma, no mais secreto de si. E, desta espécie híbrida, biblioteca babilónica de memórias, alimentava o seu presente.

Escolhera. Escolhera permanecer com Constança, a esposa que um dia aceitara em altar, com quem gerara filhos. Com quem dividira uma vida. E, contudo, a escolha era uma espécie de pau de dois bicos. Por um lado, a estabilidade, o sossego, o calor de um lar, de uma família, a garantia de uma companhia a cada final de tarde e, por outro, em especial agora que a aposentadoria chegara, uma canga, uma prisão sem grades, que o impediam de dar um passo sem que dele tivesse de dar contas. Sentia-se algemado dentro de um corpo que exigia, ferozmente, liberdade. Um corpo que, porque livre, não aceitava sequer o BI da sua idade… E uma mente demasiado lúcida para se deixar aprisionar sem rebeldia. O conflito era eminente. Fustigava-lhe a carne, em chicotadas ferozes.

Agora não havia reuniões de negócios, não havia almoços com empresários, não havia as mil razões com que sempre havia justificado as suas ausências, os atrasos. Agora todos os tempos eram tempos de Constança. Do nascer ao fim do dia. De Constança eram também os olhares que o vigiam afincadamente. Do teclado ao telefone… Constança era uma mulher dependente de si. Ao seu absoluto cuidado… (era esse, pressentia, o seu “truque” para o manter cativo. Declarar-se dependente. E, porque a amava, era seu “escravo”… do supermercado ao cabeleireiro... seu motorista, seu acompanhante).

O coração batia-lhe desenfreadamente… A noite de lua cheia trouxera-lhe a voz dos lobos de alcateia. O desejo, a fome de um corpo febril de uma mulher. O enroscar-se nas coxas de uma mulher… o suspiro saciado de um mulher, em orgasmos de si. De ambos. O adormecer no após o acto, de corpos suados e extinguidos. E voar de novo, nas asas do desejo desperto a meio da noite…

Vitoriano queria amar de novo, sonhar de novo, e novamente. Esculpir-se labareda em fogo nos braços duma mulher … Não de uma mulher qualquer… não de uma mulher paga para o “amor”, de todo não, mas daquela por quem agora o adolescente ser que o habitava se sentia perdidamente atraído.

Não, não se diria apaixonado… não diria que a amava (ou talvez sim…), mas, indiscutivelmente, a cada esquina do seu dia, a sua imagem, o seu olhar, a boca e, até o balançar de ancas que nunca vira, eram devaneio, tentação, arrepio de pele, suor frio… calafrio em tibiezas de pernas, de joelhos.

O sexo explodia-lhe agora por sob o pijama de verão. Vitoriano sentia uma lágrima a percorrer-lhe a face… e via-a: a sua infanta … tão mulher e tão criança. Os quase vinte anos de diferença não se constituíam obstáculo. Recordava um livro que lera em tempos em que, tal como entre eles, de idades diferentes, o amante chinês ensinara a sua amada a amar … Vitoriano intuirá desde o primeiro instante que Marisa não sabia amar. Que, por detrás daquela imagem de mulher bem sucedida se escondiam fraquezas e fragilidade de afectos. Fossem quais fossem. Haveria de as descobrir, de as desvendar. E, se lhe fosse dada a ventura de a tomar sua…ensiná-la-ia. E reaprenderia ele mesmo tudo de novo.

Cobiçava-a, desejava-a, desde o primeiro dia em que ouvira a sua voz do outro lado da linha. Uma conversa de circunstância, em resultado de um assunto técnico e rotineiro. Fora a cavilha que detonara a bomba. Nele (e queria acreditar que nela, de igual modo).
Desde então, procurava todas as razões para lhe ligar… falavam amiúde, sempre que lhe era possível.

Com a sua aposentação recente, as coisas haviam-se complicado drasticamente. Todavia a semente já estava lançada e, ambos, para além das questões técnicas, encontraram razões para manter contactos … eram amigos, afinal… íntimos já!

Fantasiava cada momento em que a via, em que a tomava, e, num ímpeto de loucura e de paixão, indiferentes à conjuntura, se escorreriam na voz andaluza dos corpos alagados, em lutas de titãs, de espadachins e de cruzados …num corpo a corpo, abraçados. Em que as suas bocas, ávidas, se fundiriam, reconhecidas, em beijos insaciados. Em que as salivas, misturadas, seriam alimento das suas insípidas vidas… as de ambos.

Nesses instantes, incontido, marcava o número da sua “amada” e, como um miúdo enamorado, enviava-lhe mensagens, ora ternurentas, ora mais audazes… e rezava ao senhor dos “naufragados” para não lhe causar problemas. Depois, sorria, reconfortado. Sabia que um dia, num qualquer dia, de que não via a hora, na demora, aquela mulher que escolhera, aquela mulher que ainda nem sequer conhecia, ficaria tatuada na sua pele. Pressentia, que para sempre. Para sempre! Era a sua escolha! Marisa era escolha sua.

De novo lhe vinha a memória cada palavra trocada, cada ternura incendiada no não dito, no sugerido, não proscrito e proibido. Marisa era uma mulher casada. E, tal como ele, vivia uma relação esmaecida. Desbotada em fímbrias de tempo ausente. Todavia, nunca até então passara em sua mente ver-se de novo enamorada… amada, ainda que de uma forma diferente. Marisa não fugira. Aos seus "ataques", não fugira. Ficara. Ficara suspensa da sua voz pausada, da sua sabedoria arrecada ao longo duma vida inteira. Assustada, contudo. Sabia-o senhor de muitas viagens e, porque o sabia …assustava-se. Mas, a cada momento, a cada frugal instante em que as suas vozes se abraçavam em ondas hertzianas, mais se sentia intimamente ligada a um ser que desconhecia. E, ansiava, e esperava expectante, um novo toque, um novo momento. E a espera era-lhe cada dia mais difícil de suportar. Não se entendia. Não se conhecia nem reconhecia a actriz em que se estava a tornar. Num palco da sua própria vida.

Introspectivamente, admitia o enlevo, o fascínio que sentia. E, estranhamente, não se coibia de o sentir. Como se não houvessem razões, normativas ou sociais, que a pudessem julgar. Apenas respondia ao seu coração e, esse, desejava dar a Vitoriano ternura, afecto e, acima de tudo, paixão … a paixão que sentia no calor de sua voz. E da qual, ele lhe falava sem pudor. Sim, desejava-a. Amava-a, dizia-lhe, vezes sem fim …

Marisa sorria, desmistificava, tentava que não se envolver, não o envolver. Colocava ponderadores nas palavras...Tentava, a algum custo, colocar água numa fogueira que, cada dia mais, ameaçava incendiar os astros mais distantes … Da terra ao cume do universo.

Temia sofrer, mas, particularmente, temia que Vitoriano sofresse. E, não obstante, sentia que, também ela o escolhera. Escolhera-o para que ele, e só ele, a conduzisse a ela mesma. Ao que não sabia de si, ao que nem sequer suspeitava … e, a passinhos cautelosos, sentia-se guiada. E ousava. Desafiava o destino e era leve em suas mãos… fosse o que fosse que o vocábulo "destino" significasse.

No canto do cisne, como ele mesmo lhe dizia, dar-lhe-ia de si, o melhor presente - dar-lhe ia o mar, o mar que o inundava em vagas de desejo, dar-lhe-ia a serra, a serra donde um dia viera, dar-lhe-ia a criança que ainda guardava dentro de si, na pureza de um coração que se não aquietava... dar-lhe-ia o sonho... - e ela, na sua ingenuidade, acreditava que, ele, o “sarraceno infiel”, a amaria (e)ternamente …

Escolhera.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...