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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Caminhos de Fé...


Importava dizer como a conheceu.
Do que se recordava, fora num daqueles dias em que os parceiros de redes sociais se interligavam. Não era interna, não fazia parte dos a que chamava “os nossos”.
Viu-a chegar, num andar lento e pesado. As pernas inchadas, rubras, grossas como troncos. O corpo largo, quase quadrado. Vinha sozinha. Cumprimentou num sorriso semicerrado quem estava. Entrou a custo no autocarro que os haveria de levar, a todos, técnicos, voluntários, idosos - institucionalizados ou não -, a um dos passeios coordenados pelo poder local.

Era Primavera, os dias já largos, claros. Para trás ficavam os chuvosos que os haviam retido em casa, tementes às enxurradas que, tantas e tantas vezes, não poupavam as gentes nem os bens das Lezírias. Nem os dos montes. Nem os das serranias a jusante. Na fúria das águas não se confiava, diziam todos, e certo era. Cautelas, portanto. E a bênção de Deus e rezas a Santa Bárbara. E a todos os demais santos de suas particulares devoções. Nunca seriam em demasia, face à força das águas…
E aquele tinha sido um Inverno caudaloso, sem dúvida, em que, para além das chuvas, por vezes diluvianas, o frio se fizera marmóreo, colando pestanas e vontades. Em suma, dias e dias de forçada reclusão nas entranhas da Instituição, alegrados a espaços pelas visitas - também elas escassas -, dos familiares, dos amigos…

Os dias que antecederam ao passeio foram de grande excitação - a ida a Fátima era sempre um momento especial, quer pela religiosidade intrínseca do local, quer porque, em regra, marcava o início da temporada das saídas.

Entrou a custo, muito custo, no autocarro cedido pela autarquia para efeito. Valeram-lhe as mãos, as forças, das auxiliares. E as palavras de estímulo que ouviu “...suba D. Arminda, vá lá, ponha aqui o seu pézinho, apõe-se sem medo em mim… sou pequena mas sou de ferro, a senhora sabe..."  e, lá do cimo, rés ao volante, tão redondo quanto a barriga, a voz do motorista: “ora aqui temos a D. Arminda… desde o ano passado que não a via… cada dia mais nova, é o que é… hoje o dia é de Fátima, trouxe o terço??…”

Sorriu e subiu. Subiu os três degraus que a içariam ao interior do autocarro. Olhou ao redor a medir os passos e os espaços vagos. Necessitava de quase dois… Maria fez-lhe um sinal…
- Aqui, D. Arminda (acabara de ouvir o seu nome, pela primeira vez). Aqui, se não se importar. Faz-me companhia, por favor…, disse-lhe, afável.
Olhou-a desconfiada. Donde sairá, que não a conhecia? Olhou os demais, os “institucionalizados”… e, sempre ajudada, sentou-se. Maria encolheu-se quanto pode de encontro ao vidro lateral. Desejou ter menos vinte quilos, se possível… e, intimamente,  sorriu de si mesma e dos seus pensamentos “credo, seria um pau de virar tripas…”

A viagem, por fim, começou. Tomaram a Auto-estrada do Norte, rumo a Alcanena. Ao lado direito, a vastidão das vinhas e das lezírias, afastavam-se vertiginosamente nos primeiros raios de sol da manhã. E as águas sempre adivinhadas do rio, de igual maneira. Alguns cantavam, outros, de pandeiretas em punho, tentavam acompanhamentos desafinados. D. Arminda era total silêncio. Uma lágrima deslizava-lhe as rugas pouco vincadas num rosto largo. A bandolete, em desuso, de várias décadas, sustinha-lhe os cabelos grisalhos. As mãos sobre o colo retorciam-se em ânsias. Desconforto nítido. De ambas. Maria por não saber nada sobre D. Arminda, optou por nada fazer a não ser, tornar-se "transparente", e delongar-se na paisagem.

Estavam agora em pleno Parque Natural da Serra de Aire e Candeeiros. O panorama alterava-se a cada segundo.  A rocha,  sempre presente. Os algars, os campos de lapiás, as dolinas…estranhas formas e estranha, gloriosa, a grandeza da natureza, pensava para com os seus botões.

Aqui e além, subiam aves… Aves que, nesta heterogeneidade de habitats, encontrariam, por certo ali, o melhor dos mundos …Gralhas-de-bico-vermelho, bufos-reais… e  flores - que belas as flores - os narcisos de mãos dadas com os alecrins. E, sobre estes, altivos, indómitos,  os carvalhos a par das azinheiras…

Um rumor de corpo mais inquieto trouxe-a à realidade mais próxima. D. Arminda agitava-se no acento, sobressaltada…
- Está bem, D. Arminda? Posso ajudar? Necessita de alguma coisa? Quer que diga ao sr. motorista para pararmos na próxima Estação de Serviço? - foi avançando, na presunção de que, eventualmente, necessitaria de ir ao “privado”…
- Não, não, minha senhora. Estou bem, este caminho é que me trás memórias de morte… naquele dia, quem devia ter morrido era eu, não elas… ou no outro, anos antes …
Silencio absoluto. Maria não perguntou nada. Arminda nada mais adiantou. O autocarro prosseguiu a marcha. Repentinamente...
- ... Morávamos aqui perto, numa aldeia ao rés de Fátima. Quase há cinquenta anos. Com a minha falecida mãe, que Deus a haja… e aqui começou a minha desgraça…
De novo o silêncio. E as curvas sinuosas da estrada agora municipal. E os muros a dividir espaços. De pedra. Como de pedra, de novo, o mutismo…
O autocarro parou, por fim, no parque destinado a essa  finalidade. O Santuário visível já:
- Chegámos. Como todos sabem, vamos dividirmos-nos em grupos. Visitaremos o Santuário, haverá tempo ao recolhimento, assistiremos à Santa Missa… Depois, iremos almoçar - está tudo ali, meus amigos… a sopa, o arroz de tomate, os pasteis de bacalhau, a fruta … a água, o chá, o leite … Os da “comunidade” podem e devem juntar-se a nós. Temos de sobra e, o pouco bem dividido, dá para todos,  não é verdade? … De tarde descansaremos. O regresso por volta das 16 Horas, está certo?

Distribuídos os grupos de idosos pelas auxiliares e técnicos, ajustados os planos de apoio mútuo, cada qual seguiu rumos particulares. Maria permaneceu no grupo de D. Arminda. Deu-lhe o braço e foram lentamente andando. Poucas palavras. As necessárias, contudo,  à vinculação afectiva. Missa assistida, o almoço. E, subitamente...
- Como lhe disse de manhã, menina, foi por aqui perto que começou a minha desgraça… há mais de cinquenta anos atrás… ela teria hoje perto da sua idade … mais velha, mas pouco. E seria como a menina. Os olhos eram tão azuis… às vezes verdes, não sei. Como você… Chamava-se Maria. Maria de Fátima….

Era, pois,  a hora de almoço. Comeu pouco, quase nada. Do que trouxera de seu, do que a Instituição oferecia. Findo o almoço, os grupos reabraçaram-se por interesses comuns. D. Arminda sentou-se junto ao muro que os separava do Santuário. Olhou-a enternecida. Fez menção de se sentar a seu lado. Ela percebeu ...
- Sim, sente-se aqui a meu lado. Temos tempo e tenho, quero, preciso,   lhe contar tudo…
Sentou-se. Antes procurou o saco dos bonés da Instituição. Pegou dois. Colocou um em si mesma  e depois ofereceu-lhe o segundo...
- o Sol ainda anda baixo, D. Arminda, quer usar este?
Abanou a cabeça afirmativamente. Maria colocou-lho levemente. Vazou chá em dois copos, ofereceu-lhe um. Sentaram-se ambas, sob o cheiro dos círios que queimavam próximos, ao som das vozes em conversas cruzadas e das rezas pegadas.
D. Arminda, sem levantar os olhos do copo, bebeu-o num trago e continuou…
- Chamava-se Maria de Fátima. Tinha dois anos, era uma menina delicada, de caracóis louros, com uns olhos tão lindos… naquele dia, deixei-a com a minha mãe e fui à missa. Era Domingo. Quando voltei, ouvi choros aflitos ao longe. Pressenti que alguma coisa de muito má tinha acontecido. Desatei a correr, carreiro adiante, em direcção à porta (nesse tempo tudo podia…).
Vi de imediato tias e primas … E lá dentro, menina, a minha Maria de Fátima… negra, sem vida, nos braços de minha mãe. O médico disse-nos que tinha sido uma convulsão de febre… mas ela nem doente estava…
Minha mãe chorava, inconsolada. Dizia que ela se tinha finado como um passarinho, que nem sofrera… Que Deus a tinha chamado, anjo que era …
Parava. Olhava o espaço ao redor sem lágrimas. Tomava-se de forças e continuava:
- Depois do funeral, partimos. Não havia quem nos fizesse ficar na terra que haveria de comer o nosso sonho… a nossa menina. Meu marido era pastor. Partimos sem destino. Sem bens. Parámos em Vila Franca - tínhamos ouvido falar de que haviam por ali lavradores. Pensamos que ali podíamos começar de novo. E assim foi. O meu marido a pastorear o gado e eu, de criada de fora. Deram-nos uma casinha térrea, num saguão traseiro às casas dos senhores, perto dos estábulos. Nada tínhamos de nosso. Só a mágoa e a saudade …
E de novo o Senhor nos deu a bem bem-aventurança de sermos pais. Uma casa cheia de risos… Uma e outra e outra filha. Sempre meninas, anos após ano. Cinco. Tínhamos cinco meninas naquela noite …A todas demos o nome de Maria, louvada seja a mãe de Jesus…

Os demais idosos ocupavam-se em conversas, em jogos, ou dormitavam, sentados nas cadeiras, em particular os que ocupavam as cadeiras de rodas. Os que melhor se moviam davam passeios circulares e sempre curtos - por via de não perder as horas -, voltando a cada dez ou quinze minutos ao local onde o grupo assentara arraiais. Pontualmente, um ou outro, pedia apoio para a deslocação às casas de banho, ou às lojas de lembranças. Voltavam com pequenos presentes destinados a filhos, a netos. Voltavam de rostos iluminados com as suas escolhas…

Maria ouvia em silêncio D. Arminda. Apenas os olhos de ambas se tocavam.

- Naquela noite… naquele dia, menina, fez há meses quarenta anos, naquela noite de Novembro, depois de um dia inteiro a chover, a chover sem parar, sem podermos chegar à rua, aos bens necessários, sem as meninas poderem ver aos cães e os gatos, que tanto gostavam, sempre dentro de portas, por via do temporal, tudo se alagou. O gado mugia aflito, que era um dó de alma, a adivinhar a calamidade que nos haveria de derrubar a todos. Os cães uivavam, menina, de cortar as entranhas… Rezávamos, tementes a Deus, que outra coisa não podíamos fazer. Acendemos velas e rezávamos …

A minha mais velha, a Maria das Dores, tinha então oito anos. A mais nova era de berço, ainda a amamentava. Quando as águas começaram a encher o pátio, sem escoar nas sarjetas, o meu José tentou chegar ao estábulo para soltar as ovelhas, menina, mas as águas vinham de lá de cima, uma lamaçal só, um mar de lama. Por um pouco não foi arrastado. Conseguiu entrar em casa, trancamos todas as janelas com os poucos móveis que tínhamos, cada um de nós com uma das filhas ao colo; colocamos as restantes três , julgávamos nós, a salvo, sobre a mesa da cozinha… a aflição era tanta, tanta. A água entrava por todo o lado. Tudo negro, menina, como breu. Sem luz, dentro e fora de casa, só a dos relâmpagos varavam  na força dos trovões. Nada mais havia a fazer. Abraçados rezávamos, sempre a segurar a mesa e as meninas…
A porta cedeu, tudo aconteceu em segundos. A cólera das águas era bem maior que a força do meu Zé, que tentava, dando-me a menina a mim, fechá-la. Luta desigual. Tão desigual… As minhas queridas filhas, choravam de medo e frio, todas molhadas… e, menina, num segundo, as janelas abriram-se de par em par, a água nivelada dentro e fora … a mesa virou-se… nunca mais as vimos. Não conseguimos, menina. Quando, por fim desceu, ficámos cada um de nós com uma em braços… Depois disseram que tinha sido na hora da praia-mar, em que as ribeiras e os esgotos não foram capazes de escoar as águas… E a água, na força toda, tudo levou: casas, pontes, pessoas… as nossas filhas, menina. Três das nossas cinco filhas foram-se para sempre naquela onda destruidora.
No leito da cheia, menina, dormiram eternamente… Enterramos-las todas, por Deus os corpos foram encontrados nos dias seguintes, soterrados em entulhos, nuinhas…
A nós, os pobres, parece que as tragédias chegam mais cedo… Naquela noite, menina, perdi tudo (ou quase tudo)… menos a Fé.
E olhando-a como se a visse pela primeira vez naquele momento, perguntou-lhe:
- Como se chama a menina, desculpe …
- Maria… Maria de Fátima…
- Não … não pode ser. Chama-se assim mesmo? Não pode ser … Louvado seja o Senhor...
- Sim, D. Arminda. Foi o nome que minha madrinha, em honra a este lugar de fé, Fátima, me colocou: Maria de Fátima …
Arminda agarrava-lhe as mãos. Afagava-lhe o rosto num gesto incontido. Beijando-a, enrolava os dedos nos cabelos de Maria, em viagens de memórias …"Maria de Fátima"...

O céu escurecia subitamente por entre as azinheiras e as oliveiras, ameaçando chuva. Rapidamente se reuniram os pertences, não fosse a meteorologia ensombrar, ensopando calamitosamente, o que tanta falta fazia… Um após outro, todos os idosos, ajudados ou não, tomaram lugar no autocarro. O lanche foi servido ali mesmo, dentro do veiculo parado. Maria, após o mesmo, retomou lugar ao lado de D. Arminda, que, depois de liberta daquelas memórias, por fim, dormitava, aparentemente serena. Todavia, Maria juraria que no canto dos seus olhos, duas lágrimas incontinentes e teimosas, brilhavam…
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Post-Scriptum: As cheias de 25 para 26 de Novembro de 1967 assolaram drasticamente a região da Grande Lisboa. O Ribatejo foi uma das zonas mais atingidas. Para além das perdas de bens, perderam-se centenas de vidas, muitas das quais, crianças, deixando enlutadas famílias em quase todas as aldeias. O balanço final das vítimas apontam para cerca de 700 mortos, mas os dados do regime foram substancialmente inferiores …
As memórias das populações fustigadas, perduram até hoje, como feridas incuráveis de gravidade social.

«nós não diríamos: foram as cheias, foi a chuva. Talvez seja mais justo afirmar: foi a miséria, miséria que a nossa sociedade não neutralizou, quem provocou a maioria das mortes. Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser». - Comércio do Funchal.
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Fotografia da época, autor desconhecido

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...