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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A trança.

Desfazia-a lentamente, os dedos longos por entre os fios  entrelaçados. A humidade colada à pele, gota a gota, neblina pousada sobre os ombros nus. 
E ele, metade de si. Tiara, diadema...
A casa é onde o coração se esconde..., barro, ninho, ramo ou árvore. Amarrava-se. Deliberada
deliberadamente  
deixava que lhe recobrisse a nudez agora exposta. A toalha branca, de boa felpa, em que, entre uma divisão e outra, se envolvia (gostava-a ligeiramente áspera, sem amaciador) estava agora, caída aos pés
    e as palavras

    O meu António nunca me viu o comprimento da trança. Nunca…

Sentia o frio da pedra colado às nádegas ainda por moldar. Juraria que, por tantas tardes ali, por tantas horas a fio, no porfiar de agulhas e de farpas, camisolas tecidas e fios tirados no que havia de ser toalhas  sob a broa, por tempos intermináveis,   até que lá longe, na beira-rio, a buzina das fábricas da descasca do arroz soltasse todos os reclusos, um a um, seriam planas. Espalmadas e secas como o bacalhau que o Heitor cortava, no ranger de dentes,  com precisão cirúrgica. Mas não, os quadris fartos de diva de Orleães... Igual àquela que, na galeria, a olhava, persistente. A mão a amparar a queda, o rosto que, em planos contundentes, sabiam caminhos das sarças, a rasgar intentos e vontades...

    São quantas as postas, D. Joana?
    Ora, bem se vê, tantas quantos semos lá por casa
    E tem vossemecê cá a famelga que anda a labutar lá nas Franças, vá-se lá de saber?, não dei por as ver chegar…mas também, se bem pergunto, porque se  não se acostuma a senhora de os ir de acompanhar e largar por cá a sua criação e as hortênsias?
À pergunta, meia resposta,
    Tenho, sim senhor, todas as filhas, bem casadas por lá  nas Franças de Paris,  com quem não sabe da pronúncia da nossa terra, e também o Senhor António, que, desta vez, como vieram de carrinha emprestada, mo trouxeram, a minha Rosinda e a minha Hercília.  Por via de acertarmos umas papeladas…
    E adiantava
    uns negócios, umas máquinas que ele por lá há-de comprar, na troca da venda dos palheiros aqui que não me servem de nada - agora só tenho as pitas, por mor dos ovos -, venda dos terrenos, bem se vê…
    São nove as postas, então? … tem três netos D. Salomé? …
    P’ra orgulho dos meus olhos, que a terra há-de comer… quero-as altas, bem amanhadas...

    Menina, onde estás com a cabeça? Bagos de romã, o ponto: na primeira volta, já te disse: a 1ª malha tece, a 2ª malha passa e dá laçada e, a segunda volta, do avesso, trabalhas sempre em liga. Presta atento, que não me ocorre ensinar a cabeças de vento: na 1ª malha tece e a 2ª faz-se junto com a laçada…

    O meu António nunca me viu a trança, comadre Felismina, disso lhe garanto. Ora vamos lá a ver da pouca vergonha. Dizem que nas Franças as mulheres se despem nuas em pelo no quarto com os maridos. Se isso tem sentido, diga-me lá, a comadre ou vossemecê, amiga Quitéria? O seu homem, que Deus tenha em santo sossego, que se escafodeu, com perdão da palavra, lá nas Áfricas, algum dia lhe viu mais que a fralda da camisa?
     E de seguida, como que balançando o verbo,
o seu Miguel nasceu de sete meses mal medidos não foi? E que grande moçoilo, bem’zó Deus…, nem cabia nas camisas que a senhora sua mãe bordou, teria mais de cinco quilos a criança…
       E logo,
não te diz respeito a conversa, ouviste? Mostra lá o trabalho… desmancha… desmancha…   na 1ª malha tece e a 2ª faz-se junto com a laçada, não foi como te ensinei?
       agora o meu António chegou, está na cidade por via de aprontar a venda dos palheiros… quer saber,  ó comadre, que o homem queria dormir no meu quarto? E ainda mais que as filhas no ano passado contrataram a luz eléctrica… havia de ter de ver… desmanchar a trança ali, tão claro como o dia no campo…
    mostra. Agora sim, passa à 3ª volta… na 1ª malha passas e dás laçada, na 2º malha teces
    Bagos de romã,
    ...como cerejas as conversas, valhó Deus, que se faz tarde, o bacalhau é de forno, com azeite de meu governo. Pela barriga se guarda um homem, ó comadre… de maus intentos, bem se vê, que, de bandulho cheio, nem se alevantam do assento…

    O meu homem era de pouca comida, uma malga de caldo à noite e pouco mais, aventurava-se Felismina, o sol poente a repousar-lhe na cambraia da camisa bordada a cheio e sombra, a noite inesquecida, perpétua,  nas pontas da trança sob o lenço, e este, amarrado com duas pontas no alto da cabeça. Rubra, aqui e ali num matiz  de cobre e estanho. O corpete atado langoroso contrário à medida dos anos. De quando em quando, soltava acordes de uma cantiga...
    De quando era moiça nos campos, ó comadre, e por lá conheci o seu irmão e meu homme
    Vossemecê era fresca… ora deixe-me de estar calada, que não é a hora nem a ocasião se apronta útil.
    A buzina tocava. Salomé guardava a malha na canastrinha,  com um  até amanhã ,tia Felismina, tia Joana, D. Antónia …
    Vai com Deus, amanhã não venhas, que tenho de ir à cidade, com o meu António, as comadres sabem, a vendas dos terrenos…

Salomé seguia num passo de quem da vida era  ainda pó, barro por moldar; seguia o vento da tarde, rumo ao lar…
    Mais tarde
    “Lar é onde os objectos têm vida própria e as paredes nos contam histórias” (1)
Cada sombra lhas contaria. Os linhos, as rendas, as malhas
    de que fugia. O arame farpado; e o monstro do Lago Ness que ouvia, do antes, réptil marinho, cobarde forma de serpente…


Desmanchava-a lentamente, desfiapando-a  entre os dedos. Fúlgida. O espelho embaciado, e a palavra
    “para te acolher” ...para te acolher...
    Tomava por fim conta do seu corpo, algures moldado por um oleiro do pó, barro original. Tomava-se para se poder dar, na plenitude da trança que desmanchava, rubra, a tocar as ancas, redondas, carnudas,
Enquanto
desmesuradamente, à beira de ser água, um dia
[a Tarde se fez Noite, o Sol, bola incandescente, tombou rotundo no palco uterino do Mar.],
E de novo era
    manhã,

    O cheiro a coco, o gel de banho colado a si, o ritual a que se dava, sem pressa e no vagar de ser instinto  - agora os dedos a penetrar o verde do pote de gengibre,  mouse hidratante que espalhava num cerimonial de mímicas e de afectos
    O pecado mora ao lado, a lezíria de fenos expostos, doirados no calor de um sol que vinha nascido a norte e se desdobrava em si

         [Tu chegaste, aragem, manto de linho poroso, complexo composto de milhões de minúsculas bocas]

    O lago Ness.O medo. O negro.
O linho, a flor,
a tarte de gengibre, a receita antiga a coberto dos bagos de romãs e, ela, sob  as rendas, que vestia, uma a uma, peça a peça, tão a seu gosto, tanto dele, oleiro, obreiro, sal e sol, sabor
de dar e receber
    Igual.     O sabor da casa, a busca do espaço, o abraço. Visceral.
    O lar, instante iniciático em que
    [a planície se elevou em arco, ondulou em  searas de brilho luz e som. E a Noite nasceu em Dia. Explodiu em cor e no cantar da cotovia.]
    Perdurado, doce… nela,  a arte, o artefacto. A tela… parede, espelho ou vitral em que se projecta
Salomé,
    “o lar é onde cheira a bolos, a canela, a caramelo”
(2)
E onde a outra, a que desconhecida até ai, se projectava invicta a clamar no verbo,
    “Lar é onde o coração habita… meu amor”

Desmanchava a trança enquanto a jugular se enchia pulsante de um canto de pássaros do paraíso, e as mãos, inquietas,  teciam todas as malhas contingentes, sobre folhas despidas de rosas bravas, rosas brancas, num contar de contas, ábaco,  de estrelas do mar - diziam-nas acéfalas, pouco importava -, e os lábios entreabertos aspiravam os beijos e rezavam a bênção se ser mulher, e de lhe poder dar o espaço do seu ventre - avé-maria. Avé!


Eram os tempos em que, na manhã dos campos, rés às ilhoas, nos mouchões,  corriam livres os potros, enquanto nua,  se despia da pele que antes a cobria, e, em glória  a um Deus Maior, a quem cantava loas, sabia apenas da coralina cor das suas águas, metáfora progressiva de um caudal, gota  rio e logo mar, oceânica forma de ser mulher em braços, em entrega integra e fatal, e de,  asseverar, com ele ter aprendido a desmanchar sem medo a trança, a soltar cabelos fogo, e os movimentos  futuros dos quadris sem cilhas, ao  jurar saber a língua eterna dos bichos, das falhas cósmicas, de todos os pontos cardeais, dos sentidos invertidos em cadernais, do relincho das roldanas subidas em noras onde a água chora e ri, indicando o lugar exacto onde se encontram os ninhos, e neles, os pintalgados ovos dos passarinhos;

De alcatruzes compassados à  vida, deixava-se vestir na luz de sua presença, ela a cigarra travestida de formiga. Ou ambas,  numa só, e o seu nome fosse firme prenúncio de justiça salomónica: Salomé.

Desmanchava a trança,  olhava-se em espelho. 
Nem sempre jovem
nem sempre bela
e no entanto Ela, Salomé, à beira de ser, seria. E nada demais importava ou importaria senão a voz do vento e os cabelos, soltos,  a moldar o rosto ao tempo...

***
Citações 1 e 2, in Rosa Lobato de Faria, O Sétimo Veu.
Pintura de Eduardo Nery
Restantes citações do poema da autora, "Para te acolher"


“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...