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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

.. Porcos a pérolas


Sempre achei curioso o facto do centenário loureiro ser o sombreiro natural da pocilga dos porcos. Nunca deixei de me rir da curiosidade, dado que, quando ia o mercado e ao talho, era normal ver os enchidos engalanados com pernadas de louro. Ali tudo se antecipava. Ou seja, cobriam-se de louros os porcos vivos.

Corria o ano de mil novecentos e sessenta e sete, se não me falha a memória. Na aldeia as famílias mais costumadas, aquelas que ainda podiam dispor de um pedaço de terra, um quintal que fosse, iam criando os bicos e os porcos para seu governo. Num qualquer dia, tocava à matança, reuniam-se vizinhos, familiares e amigos e era um dia grande. Tão grande quanto o braseiro onde se assavam febras recém cortadas. Os métodos antigos: um monte de carqueja a arder, o porco a mudar de cor. Depois, um pedaço de telha, água corrente e de novo rosado. Mais tarde as papas de sarabulho, as tripas lavadas no Rio do Vale, viradas do avesso com uma cana verde apanhada ali mesmo e esbulhada a talhe de canivete, por fim cheias e suspensas na lareira ou, na falta dela, por cima do fogão a lenha na cozinha …

Disposta em socalcos, em desníveis por assim dizer, a pequena povoação acolhia desde as suas orlas ribeirinhas até ao cume do monte, várias famílias que rivalizavam entre si. As Engrácias, mãe e filha já casadoira, faziam parte dos nascidos e criados ali mesmo. Faziam parte igualmente, dos chamados pés rapados a quem a vida não tinha dado à nascença berço de ouro, antes bem pelo contrário. Mas os tempos haviam mudado. Um lugar nas fábricas e casas novas, se bem que de renda, haviam feito delas pessoas emproadas e enfatuadas, que, em dois tempos se haviam esquecido de onde provinham. Certo era que não havia que se lhes apontar, donas que eram de uma conduta irrepreensível, asseadas e poupadas. Ou seja, dotadas de atributos indispensáveis face à escassez dos tempos. Delas apenas se queixavam os vizinhos de serem vaidosas, altivas, de, se dado lhes fosse (porque não era) deixar de cumprimentar os conterrâneos, assim fariam. Mas não. Não havia quem na terra as não chamasse pela alcunha de família, fazendo disso gala e, usando o epíteto, dalguma forma, para lhes avivar memórias. Nada feria mais aquelas gentes que ver os seus iguais a armarem-se em “ilustres”. Os comentários eram do tipo “já se esqueceu de quando ia a casa da minha mãe comer uma malga de sopa”, “já não se lembra de quando não pode fazer o exame da 3ª por não ter um vestido capaz”… etc.

A todos ignoravam, as “D.” Engrácias. Criticas acérrimas das práticas ancestrais, a exemplo dos bicos a correr e a sujar pelo bairro fora, das capoeiras em frente às portas e, acima de tudo, das cortes a dois passos das habitações, pareciam que atraiam elas mesmas o cheiro e o mosquedo … De nada lhes valiam cortinas de fitas nas portas de entrada. De nada lhes valiam igualmente capachos na soleira. O cheiro da cera com que rebrilhavam a madeira dos tactos (aliás a sua era a única casa que tinha tactos de madeira…) misturava-se com o cheiro do esterco e dos fenos dos animais, com o cheiro nauseabundo das fossas cépticas para onde vazavam os intestinos do bairro. As lamas emporcalhavam-lhe a casa.

Nas tardes em que as vizinhas se cruzavam no caminho do poço, com as bilhas na ilharga e na cabeça, as Engrácias bem que lastimavam a sua vida:
- Tenho a casa que é um brinco, uma pérola… mas este cheiro, vizinha, não se pode … tresanda que fede. E as moscas? Um nojo só!!! Pior que viver lá no casal … E os porcos? Valha-me Deus, cortes de porcos no bairro… Uma pérola a minha casa, vizinha. Mas um cheiro…
Quando se separavam, as mulheres faziam a chacota: “…num mimo, num brinco, numa pérola … já se esqueceu de quando o ranho lhe escorria em pérola pelo nariz … ponto pérola, bem se vê. Vaidosas, as Engrácias são umas vaidosas, onde querem que a gente meta os porcos? Que os meta em casa e tranque as portas por via dos cheiros??? Ora, não faltava mais nada …

Era Inverno, um daqueles Invernos mesmo invernosos, passe-se o pleonasmo. Há muito que o caminho da fonte era de todo desnecessário. Sob bicas dos telhados, na frente das portas, pelo pátio fora, alguidares, latas, tachos e panelas, aparavam as águas. No início bem vindas, começavam agora a fartar.
- Isto ainda dá chatice e da grande. As terras já não sustêm as chuvas, estão uma papa só. Os combros não aguentam e ai é que vão ser elas… resvalam e estamos perdidos.

Naquela tarde a chuva recomeçou a cair. No começo, peneirada, como se fosse farinha, uma chuva molha tolos, depois cada vez mais forte, cada vez mais forte… Dos montes, pelas rigueiras, as águas vinham agora desgovernadas, procuravam o seu caminho nos leitos antigos. Trovões e relâmpagos rasgavam o horizonte até onde se podia avistar. A Lezíria era já um mar d’água só. Dos mouchões ao rio, não se distinguiam margens. Lamaçais cobriam o bairro provindos das ribanceiras. Os mais velhos rezavam a Santa Bárbara. De repente, um estrondo, como que o rebentar de um dique. Por detrás do loureiro um veio profundo de água embicava à corte dos porcos… Manuel da Silva de enxada em punho tentava a todo o custo desviar as águas noutra direcção. Tarde de mais. Da serra acima, a gola era agora maior que grande. O velho loureiro quase se via arrancado pela raiz, a corte dos porcos construída em madeira uma casca de noz a flutuar no caudal de lama… e nela, o porco. Por sorte apenas um, que o outro havia sido convertido em chouriços dias antes.

Na cota abaixo, no bairro propriamente dito, e no caminho das águas, a casa das Engrácias …
Em segundos aquele rio de lama, de esterco e o porco, galgaram os escassos metros que separavam a casa de Manuel da Silva da dos seus vizinhos. A força da água era tal que cavalgou o pequeno muro do quintal, rebentou com a porta da cozinha e, em minutos, o porco viu-se alojado em novo espaço, por sinal muito mais airoso que o anterior. Não saberia falar por certo, que senão muito teria para contar daquela tarde de trovoada … Com ele, e à sua volta, um monte de folhas e troncos de loureiro, uma espécie de coroa de louros.

Aterradas, as Engrácias, empurravam o porco e a lama à vassourada…
A chuva amainava por fim. Com grande dificuldade, vizinhos acudiam a ajudar. O bairro um atoleiro só. Limpar a palavra de ordem a que acorriam todos quantos por ali moravam.

Choravam as Engrácias, desoladas. Perante o inusitado do momento e porque não haviam outras perdas a lamentar senão o desmoronamento do combro cimeiro à corte dos porcos e a sujidade no pátio cimentado do bairro, aos poucos, uns e outros foram soltando umas boas risadas… Engrácia-mãe chorava-se:
- Onde é que está a graça, digam-me? Que graça têm uma porcaria destas? Tinha a minha casa num brinco, uma pérola…
Manuel da Silva, cansado de lutar com a água, esgotado de tentar evitar tudo aquilo sem êxito, segurava por fim o porco com uma corda. De botins atascados na cozinha dos Engrácios transformada em pocilga, irritado e já sem paciência, soltou a frase que haveria de marcar aquele dia:

- ora, e vá lá Deus dar Porcos a Pérolas. Oh vizinha Engrácia, tenha dó… Porcos a Pérolas …

in Colectânea "Contos de Mulheres" © Todos os direitos Reservados

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...