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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A dança dos pares

"Dançava, às vezes, por dentro de si mesma."
Baptista-Bastos


Dobrava-os meticulosamente,  atenta às nervuras, aos canelados, aos canhões, estes últimos de diferentes alturas. Em tudo o mais, aparentemente iguais -  uma tortura para quem gostava que não ocorressem falhas, trocas impróprias. Sobre o leito, meticulosamente feito, as roupas puxadas e repuxadas para que não ficasse vinco algum, eles, os peúgos  pretos que tanto a irritavam. E, ao lado, a tortura análoga das suas próprias meias, que, sem saber muito bem como, nunca pareciam emparelhar. Como se, a cada viagem rotativa por  dentro do tambor, exactamente como lera um dia de uma conhecida escritora, houvesse internamente ali, invisível mas eficaz e persistente, um monstro acéfalo, devorador que, não só surripiava alguns dos pares, como, pior, deformava, relaxava e descoloria outros. E talvez ai residisse   o mais nefasto daquela história - no descolorir da imagem, no prolapso dos elásticos, no desbotar a cor inicial numa espécie de pasta mole, aguada, se perdia, irremediavelmente, e sem retorno possível,  a forma das coisas. Ao seu olhar, fica ali algo sem préstimo, sem brilho e sem pujança. O amorfismo era, sem margem à dúvida metódica,   no ser humano e na matéria invertebrada de um modo geral, algo que a tirava do sério.  Amorfos seriam, por conseguinte, os pares dispares ali expostos.

Maria Leonor levantou-se. Num gesto desconexo empurrou os  parceiros sobrantes para o fundo de uma cesta onde, regularmente, colocava a roupa por passar a ferro. O vime entrançado dava-lhe, ainda que ilusoriamente, a segurança de que a obra prosseguiria a bom termo - o engomar, bem entendido.  Decidiu que não gastaria mais tempo a emparelhar peúgas -  demasiado precioso lhe era o tempo. Do lado direito chegava-lhe, em jeito de abraço, um blue.  Não um qualquer som de um qualquer tema, mas sim um blue. Sorriu. Na verdade, a sua vida estava  incessantemente pautada por "não coincidências". A forma musical agora ouvida era-lhe “utilitária“.  Atentou no uso de notas cantadas e tocadas numa frequência baixa,  nas estruturas [sempre] repetitivas.  Construiu mentalmente um puzzle de imagens metafóricas.  Veio-lhe em memória a fé, a espiritualidade, as comunidades escravizadas, e, óbvio, as subtis manifestações de protesto contra  a escravidão servil  dos dias.  Os caminhos ásperos e palcos aveludados.  E os passos,  os pés, agasalhados e simétricos, aninhados  interinos nas formas melódicas, na harmonia dos traços e das notas -  as formas  puras de escapar dela... 

Deixou-se impregnar dos sons, de todos os que, vindos dali, a tomavam sua. Os pés, soltos das sapatilhas imaginárias,  desnudos em revelação do calcanhar de Aquiles afagaram a madeira, provocando-lhe uma onda de calor nas pernas igualmente desnudas. Solitária na  dança, rodou a roda dos enjeitados, determinada a ser
água, pássaro ou tornado.  Como as meias que escondera das vistas há minutos,  irmanada na diáspora, na concepção binária de diferença,  no deslocamento proximal a que se obrigava a si própria da, e na,  até então,  zona  íntima de conforto. Determinada à luta  volveu a si: abraçou-se,  em cadência, dançou  a dança dos pássaros a pique, dentro de si própria, dentro do turbilhão ciclópico das margens incomunicáveis, das  águas íngremes,  até à exaustão. Por fim,  já a noite ia alta, tombou,  algo binária,  como folha rubra e  lívida,  na cama própria. Desejou o esquecimento mitigado do cheiro,  do som, do sal da pele, em suma, o sono dos justos. Como um disco riscado, o blue fez o resto.

Acordou matinal, dando-se conta que, no dobrar de pares apenas suas as nervuras das folhas persistentes a revestir de incenso e mirra as lombadas dos cadernos da vida. E nada mais.





“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...