"Dançava, às vezes, por dentro de si mesma."
Baptista-Bastos
Dobrava-os meticulosamente, atenta às nervuras, aos canelados, aos canhões, estes últimos de diferentes alturas. Em tudo o mais, aparentemente iguais - uma tortura para quem gostava que não ocorressem falhas, trocas impróprias. Sobre o leito, meticulosamente feito, as roupas puxadas e repuxadas para que não ficasse vinco algum, eles, os peúgos pretos que tanto a irritavam. E, ao lado, a tortura análoga das suas próprias meias, que, sem saber muito bem como, nunca pareciam emparelhar. Como se, a cada viagem rotativa por dentro do tambor, exactamente como lera um dia de uma conhecida escritora, houvesse internamente ali, invisível mas eficaz e persistente, um monstro acéfalo, devorador que, não só surripiava alguns dos pares, como, pior, deformava, relaxava e descoloria outros. E talvez ai residisse o mais nefasto daquela história - no descolorir da imagem, no prolapso dos elásticos, no desbotar a cor inicial numa espécie de pasta mole, aguada, se perdia, irremediavelmente, e sem retorno possível, a forma das coisas. Ao seu olhar, fica ali algo sem préstimo, sem brilho e sem pujança. O amorfismo era, sem margem à dúvida metódica, no ser humano e na matéria invertebrada de um modo geral, algo que a tirava do sério. Amorfos seriam, por conseguinte, os pares dispares ali expostos.
Maria Leonor levantou-se. Num gesto desconexo empurrou os parceiros sobrantes para o fundo de uma cesta onde, regularmente, colocava a roupa por passar a ferro. O vime entrançado dava-lhe, ainda que ilusoriamente, a segurança de que a obra prosseguiria a bom termo - o engomar, bem entendido. Decidiu que não gastaria mais tempo a emparelhar peúgas - demasiado precioso lhe era o tempo. Do lado direito chegava-lhe, em jeito de abraço, um blue. Não um qualquer som de um qualquer tema, mas sim um blue. Sorriu. Na verdade, a sua vida estava incessantemente pautada por "não coincidências". A forma musical agora ouvida era-lhe “utilitária“. Atentou no uso de notas cantadas e tocadas numa frequência baixa, nas estruturas [sempre] repetitivas. Construiu mentalmente um puzzle de imagens metafóricas. Veio-lhe em memória a fé, a espiritualidade, as comunidades escravizadas, e, óbvio, as subtis manifestações de protesto contra a escravidão servil dos dias. Os caminhos ásperos e palcos aveludados. E os passos, os pés, agasalhados e simétricos, aninhados interinos nas formas melódicas, na harmonia dos traços e das notas - as formas puras de escapar dela...
Deixou-se impregnar dos sons, de todos os que, vindos dali, a tomavam sua. Os pés, soltos das sapatilhas imaginárias, desnudos em revelação do calcanhar de Aquiles afagaram a madeira, provocando-lhe uma onda de calor nas pernas igualmente desnudas. Solitária na dança, rodou a roda dos enjeitados, determinada a ser
água, pássaro ou tornado. Como as meias que escondera das vistas há minutos, irmanada na diáspora, na concepção binária de diferença, no deslocamento proximal a que se obrigava a si própria da, e na, até então, zona íntima de conforto. Determinada à luta volveu a si: abraçou-se, em cadência, dançou a dança dos pássaros a pique, dentro de si própria, dentro do turbilhão ciclópico das margens incomunicáveis, das águas íngremes, até à exaustão. Por fim, já a noite ia alta, tombou, algo binária, como folha rubra e lívida, na cama própria. Desejou o esquecimento mitigado do cheiro, do som, do sal da pele, em suma, o sono dos justos. Como um disco riscado, o blue fez o resto.
água, pássaro ou tornado. Como as meias que escondera das vistas há minutos, irmanada na diáspora, na concepção binária de diferença, no deslocamento proximal a que se obrigava a si própria da, e na, até então, zona íntima de conforto. Determinada à luta volveu a si: abraçou-se, em cadência, dançou a dança dos pássaros a pique, dentro de si própria, dentro do turbilhão ciclópico das margens incomunicáveis, das águas íngremes, até à exaustão. Por fim, já a noite ia alta, tombou, algo binária, como folha rubra e lívida, na cama própria. Desejou o esquecimento mitigado do cheiro, do som, do sal da pele, em suma, o sono dos justos. Como um disco riscado, o blue fez o resto.
Acordou matinal, dando-se conta que, no dobrar de pares apenas suas as nervuras das folhas persistentes a revestir de incenso e mirra as lombadas dos cadernos da vida. E nada mais.
Tela: Júlia Calçada