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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 18 de julho de 2010

entrelinhas

Maria Felismina forjava o tempo por dentro dos bigodes da gata andaluza que lhe tinha chegado um dia ao colo vinda de uma vala sem água, por bondade divina.
Parida em pleno Inverno, quiçá fruto incestuoso entre
        uma nuvem carregada e um qualquer chuvisco ácido,
vira, com escassos dias, a vida por um fio. A atestar o risco, ficara-lhe o rabo prensado contra os entulhos que o mar, na maré-cheia, empurrava borda fora, junto com os moliços, ou como a  montante dali diziam,  no emaranho d’ enredos, teias de aranhiços e sargaço.

Ao mar o que era do mar, a terra o que era de terra. Ruvisca, assim se viria a chamar, era da terra. E,  por esta ordem de ideias, ao entulho das margens confinada - haveria  de ser sempre,  entre a chegada e a partida, um risco delgado acossado à  fímbria crua das miragens.

Viu-a. Tremelicava.  Olharam-se,  olhos nos olhos e, nesse preciso instante alcançaram que,  para bem de ambas, haveriam de ser, de hora em diante, ponteiros cartesianos nas deshoras que as habitava. Uma da outra, equação, metáfora, enigma ‘inda e sempre por resolver, mas que, pressentida, em comuns instintos, dava valor à vida - ambas paridas do ventre proceloso das águas, haveriam, juraram sem intitular,  de encontrar a direcção certa de medir vontades sem palavras, de se entregarem a estranhíssimas cumplicidades, para a primeira sempre improváveis, porque, dizia, detestava gatos - na memória celular, trazia de outro tempo, o mapa de quando, Jacomé Lencastre, herdeiro de graças, de títulos e de terras,  lhe aventou em cara o gato Malhaço, que,  sem como se esquivar, enrolado nas grades que a resguardava da queda, mas não do espaço, donde ele agora, coisa manhosa, lhe caia em colo, lhe demarcou,  no ímpeto  das garras a pele fina.
Genérica a memória e abstracta a distância cristalizada entre, o “tal genérico” e o “exacto-particular“: neste  havia o ponto, o azimute,  aquele que distinguia o assunto, límpido, sereno, dando razão ao que,  peremptoriamente, reafirmava:  não gostava de gatos. 
E não se desdizia, quando, aos sete-ventos tal afirmava ,e logo,  sem tirar um milímetro ao anterior, destacava em ênfase, sempre sorrindo:
Mas não de gata aquela, a que, por razões que a razão ignora, se roçava no seu olhar a cada noite madrugada, nessas vésperas tardias de retorno à inocência das coisas, ao sonho pontiagudo capaz de lhe coalhar as mágoas ainda  acesas, lanternas, candeias de  luz, ou, naquelas em que as pálpebras teimavam em gerar cloretos de sódios que, rapidamente, como as unhas emporcalhadas dos gaviões de outra história, voavam planuras sobre a canícula das Lezírias
e  feriam
e geravam,
no felpo manso da vida,  potássios. E ela, Ruvisca (e só ela) meigamente, lhe subia a cadeira, lhe trepava o ombro, lhe minorava o tempo já aguado, a acariciava como ninguém, e, como ninguém, aninhada em si, lhe respeitava a verborreia e os silêncios.

   - assim lhe contou, ditando, para que escrevesse -,

mas também de como, numa dessas noite, lhe jurou ter visto o modo inoperante, desavisado,  do burgesso que vivia a portas meias, adamado com Vitória… E do modo como vestia a pele de Jacomé Lencastre,

   - mentes, Ruvisca, não sabes nem um nico dessa história,

e a outra, de olhos turquesa, de novo roçando a pele na pele e o mar em baixo, lhe segredava de como havia visto, também, e  repetia,
o modo de Baltazar:  cuspia palavras entre dentes, enquanto palitava gengivas negras com as unhas de cotovia por nascer...
 
    - assim, lhe confidenciou, para que registasse -,

Mas também do modo como a olhava - à  Vitória, bem se vê -,  adestrada, fêmea pronta a montar, disponível à hora certa - comia-lhe as entranhas sem lhe sentir o veludo do olhar,  e de como ela se desacostumara, porque sim,  a pronunciar afectos. A bem dizer, da sua boca onde os dentes ainda eram pérolas de um colar completo, apenas lhe saíam, direccionadas à “preta” preciosidades de quilate terno - donde viera, que não se lembrava, mas que importância tinha? E de novo, impulsionava a voz, confidenciava e logo, peremptória, sublinhava para que se duvidas houvesse da sua seriedade: Só a  ela se afeiçoara. A quem? Ora…No mais, vestira o colete do recato de quem, a dar mimo, prefere o arranhado de felinos a texturas travestidas,  camaleão em posse …

Nas entrelinhas metálicas do dia que tombava apenas ele na hora certa -  redondo, metálico, na linha antiga  em desuso,  relógio de estação.  Uma gare de província, onde só passava, rápido, o vento…

Metálico também, abriu-o (vivia apaixonada pelo mecanismo). Tacteou as teclas. Uma bola mundo girava em convulsão; tacteou de novo. Nada a saber: o Sol, que não se regulava pelas suas emoções, era criança que, sentada ao lado – no lado esquerdo de si – teimava em não fazer chegar a merenda à paragem devida, qual aquela que, a descontento da jovem mãe, insistia em ocupar a espera com palavras a galope – a idade dos porquês… Castelos, príncipes e princesas em dorso de cavalos - estórias  a ponto-livre  por onde desembocava o que retivera de mais um dia num qualquer jardim improvável de proximidade. Diziam-lhe que era uma fábrica.
E ao lado, via-a,  uma espécie de fim de linha. De produtos descontinuados, sem préstimo. Insistia que a ser, seria, uma fábrica de fabricar afectos. Ou não?
Ela nem queria saber. Era um lugar de fazer o tempo correr, vazio. Entre a linha-férrea e o rio que a fascinava. Um dia, tão certo quanto o sol nascer a norte de si,  haveria de tomar assento no bucho da carruagem que, anunciada ao microfone, não parava nunca  ao ritmo reticulado de vontades – Inter-cidades, levava o sonho a outras paragens. E os sorrisos…

Maria Felismina, Ruvisca para os amigos - forjava o tempo por dentro do sorriso felino de mulher.



“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...