"durante a Primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço - e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios, sinto que me faltam,
um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer coisa extraordinária."... (Herberto Helder)
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Poderia falar-te da extemporaneidade dos afectos, do insolvente resíduo dos silicatos que me mofam os olhos bolorentos. Poderia falar-te de poemas que invento para que, as palavras germinadas num lugar de mim, desabitada, não me subam como pássaros sem asas a garganta, e me corroam, sem mitigação de si, as silenciosas cordas vocais.
Poderia ter apostado na afasia; na dialética sempre dúbia dos silêncios;
Poderia falar-te como lhe falei há pouco, da importância da pedra, da calçada portuguesa e, para que ninguém delapide o património cultural, da via romana em lages de terço, que só eu sei onde, atravessa o horizontal chão que é meu assento. E de que faço residual a eternidade de um momento
se, "numa eternidade se demorava a pele", do que me lembro...
Sabes, nos sons subtis do vento, nem as amoras moram já, nem a bruma se desvanece no caudal do verbo inconcludente - é sempre noite, na casa do verbo.
Poderia falar-te ainda desta tendinite aguda que, de tantas horas aqui em posição imprópria me faz exausta
com ímpetos de, contra mim mesma, deferir golpes de espadachim em escarpa
(e ser apenas lua plasmada nos campos de trigo sem fazer, em rigor, nada.)
Por vezes adormeço; sonho que semeio girassol na enseada, outras que, entre frinchas de calçada; que me tomas pedra, que sou ave e subo vertical
até à nascente do teu magma,
que solto infinitos siderais
que mergulhamos juntos as ogivas do silêncio
e que um arco-íris perfura o tempo
e teço e cirzo
pontas de laços entre
o que não existe e que invento em silviculturas sagradas. E a brida por sobre os ramos se apascenta sereníssima nas colinas dos meus seios, e o andar da invernia vagueia-me na curvatura das ancas, e tudo é equilíbrio momentâneo em ponta de faca...
Ou quase tudo,
que, na hora que rebentam de meus olhos as marés e que o azul recobre o tecido moribundo da areia do Molhe Leste, inesperadamente, acordo.
E não sei mais falar de pontes nem destinos; não sei de dunas nem de levante de pássaros. Apenas sou processo reconstrutivo de várzeas num gesto íngreme de quem do peito expele a mais líquida inocência. E deixo que as areias me enrolem e façam de mim - pernas, coxas, clavículas, braços e tendões-, redes utilitárias de pescadores, quais as que vislumbro rotas e expostas nos joelhos das varinas a que me junto no cais de embarque para que me ensinem a sublimar o vácuo
na espera de que o sal transborde e desagúes de mim, ritualizado, sabendo da fragilidade em definir o inaudito, num turbilhão de ciclos sem marés de chegada.
Olhando a ilha que vejo agora, clara forma, quilha invertida nos mouchões do Mar da Palha, vejo uma flor que resiste. Antroposófica, chego-lhe à fala: ela, a tal flor, assevera ser verídica a evidência; que nem duvida: jura ver, no barco negro da tal quilha invertida, proficiência, barca de alva, luminescência
...e das sombras se faz luz! Um girassol na calçada e a vida, pé-ante-pé, ousa que passa.
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