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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

a última a morrer.

Não se recorda de mim, Doutora? Atrapalho alguma coisa?...
Apanhada assim, enquanto descia as escadas, por um número desconhecido, mentiu.
Mas que alternativas lhe restavam? Do outro lado a voz, familiar, desenhava a distância num sorriso alargado. Sentiu de imediato o carinho de alguém a quem devia, no mínimo, o reconhecimento do nome. Mas não. A memória, a sua, até então de excelente fisionomista, e não menor reconhecedora de timbres, começava a pregar-lhe repetidas partidas nos espaços brancos das tecnologias ...
Claro que sim, desculpe, estou a ouvi-la mal - respondeu a ganhar tempo.
A Caetana, a administrativa do Lar de "..." ; não me diga que não se lembra de mim, está melhor Doutora, já está de novo a trabalhar? ...estamos todos com saudades suas...
Detestou-se.
A Caetana, pois claro, como vai, minha amiga? e como estão todos, desculpe, na verdade estou a ouvi-la mal - agora melhor-, mas que bom ter ligado, que bom mesmo., Caetana, obrigada. É uma querida, obrigada. Também tenho saudades vossas, mas a vida não me tem permitido visitar-vos, agora o meu destino é o sentido inverso, o sul, mas prometo que, breve, breve, irei ai passar uma tarde convosco... Como estão os nossos idosos? Partiu algum?...
Temeu a resposta. Dizia sempre que a morte era um processo inevitável, que era, não mais que um continuar da vida, ainda que a sós, que...
e, a cada vez que formulava a pergunta, uma dor de parto antes da hora, maturava na língua e já lhe cortava as entranhas,
... pois, isso é que é pior... sim, Doutora, vários... recorda-se do Sr. Afonso, da D. Cândida, da D. Esperança?
a cada nome um rosto, uma história de vida, um sorriso, um registo
memórias suas e partilhadas, memórias que nenhuma nova história apaga.
Sr. Afonso, repetia...
Dª. Candinha ... ai, a D. Candinha ...
Dª. Esperança, a D. Esperança, quase cem anos...

... menina, sabe, fui cozinheira. E das boas. Não me negava ao aprender, do nada, que nada sabia, me fiz daquelas de detrás da orelha.
Fazia o gesto, o sorriso a acompanhar a fala, o corpo redondo cravado à cadeira de rodas, o rosto, expressivo, sem rugas, sem mácula. Os olhos um mar de bonomia.
A esperança de que um dia, num qualquer dia, alguém ainda voltasse a gabar-lhe as suas artes e ela sentisse que a vida tinha ainda um sentido. Além do sentido repetido, nos dias iguais e sucessivos.
Os seus pratos: o seu arroz de sarrabulho, o do dia da matança, o coelho à caçador, o borrego de meia-cria ao sabor da hortelã, as enguias de rio em cama de pimentos marrones, o arroz de tomate com sementes de pimentão, o arroz-doce de casamento, com flor de laranjeira, o doce de dióspiros com abóbora, o puré de castanhas,

... dou-lhe as receitas, quer?... noutros tempos não lhas daria, eram segredo meu... mas agora até lhas dou. anote ai, no seu caderninho: arroz de sarrabulho, escreva ...
fiz tantos banquetes de casamento, menina, os dos filhos dos meus senhores e os dos filhos doa amigos deles, quando me pediam de empréstimo aos senhores (umas santas almas que já lá estão, na terra de Jericó...) e eles, os meus senhores, me cediam por uma semana a fio. Tudo passava por estas mãos...
Mostrava-as, alvas como o trigo, generosas como ela. As palmas viradas aos olhos de quem as quisesse olhar...
... estas, que na água lavava, constante - o asseio é muito bonito, sabe?
Franzia o sobrolho, olhava em torno de si, media o interesse à prosa e, vendo na cabeça dos demais o menear constante, afirmativo, prosseguia:
... tudo passava por estas mãos. Estas que a terra um dia há-de comer...
Logo, num sorriso maior
... mas tem de esperar, a terra tem que esperar, menina. Tem de esperar, porque
a Esperança é a última a morrer...

...
Pela tarde adiante, nas muitas tardes partilhadas - uma adivinha, um adágio, uma cantoria-, por não raras vezes, se repetia. E todos riam salivando a vontade de provar os manjares da D. Esperança.
Se não os fizer aqui, vou fazê-los lá em cima. E sento-os todos comigo à mesa... E nem me diga, a menina Doutora que fazem mal ao Colistrroleee... Nem ao diabretes,
Diabetes, D. Esperança, corrigia, a Senhora sabe que tem que os controlar, senão sobem...
E eu desço-os. Com chá de São Roberto, ora... Ou de alho, que é bom também... enquanto há vida há esperança...
E ria, riamos todos,
Do chá, dos diabetes
... na esperança de que, a esperança fosse sempre, em cada um, a última a morrer...

Caetana, do outro lado, prosseguia: E há ainda o Senhor Maldonado, recorda-se, Doutora? Aquele senhor que sofria de gangrena a quem nós íamos fazer assistência domiciliária... É do seu tempo? ...
...
Esperança... Sempre.


Imagem da net

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...