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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 2 de agosto de 2008

Marta

Duas grossas lágrimas deslizavam-lhe o rosto sem que nada fizesse para as deter. Sentada na sua cama, envolta na semi-penumbra da tarde mastigada pelos orifícios dos estores corridos - em oposição clara ao ímpio sol de Julho findo no dia de ontem, em antítese manifesta ao sol do sul para onde as portas amplas se abriam (as físicas e não as outras) -, Marta olhava o visor do seu telemóvel, uma e outra vez.

E uma outra vez fechava a tampa do Motorola 3ª geração.

Não, não iria responder. Não havia mais a fazer, mais a dizer ou que dizer e, contudo, aquela mensagem fora a que, durante tantos meses, desejara ler – um sinal que fosse de que a não havia esquecido, de que, e não obstante a ter deixado completamente desabrigada sem uma palavra de conforto, de carinho, sem uma explicação, sem a objectividade de dizer “não”, Samuel nutria sentimentos por ela, tal como sempre imaginara que fosse na realidade.

Mas não. Marta crescera. Crescera na dor do desamparo, nas tardes, em todas as tardes de muitos e muitos dias, talvez séculos, talvez eternidades, em que as suas mãos ávidas e saudosas teclaram o número que agora lhe falava. E que, numa dor de quem se mutila sem razão, as suas mãos o cancelaram. Crescera na mágoa de sentir que amara e que, talvez nunca tivesse sido amada. E não acreditava. E duvidava. E ouvia-lhe a voz forte e rouca a ecoar dentro dela, e ouvia uma a uma as palavras que haviam trocado, os afectos, os instantes partilhado e, não entendia como aquilo podia ter terminado assim. Questionava-se se fora o seu amor excessivo a razão de a ter abandonado como um trapo sem préstimo, uma rodilha; se fora a sua disponibilidade que o fizera não valorizar o que lhe dava. E de novo não entendia. Talvez nunca soubesse amar. Mas o que na verdade sentia é que o amor não podia ter regras outras que não as da entrega completa ao ser amado, a disponibilidade universal para ouvir e acompanhar, a partilha de coisas grandiosas ou das menores - “migalhas” como um dia ele lhe dissera:

“Marta, um passarito poisou na minha janela… achas que lhe dê umas migalhitas”?

Havia-o dito a brincar, em clara alusão à sua fragilidade. Marta nunca esquecera, porém. Sempre tivera a noção de que, aos olhos dele, era frágil, dependente, tal qual “passarito” a quem se dá, da vida, umas migalhitas sobrantes. E, não obstante, aceitara, na ilusão de que, com o decorrer do tempo, a visse como ela era, na verdade. Mas como era ela, em rigor? Para todos os que a rodeavam, uma mulher de sucesso, com carreira e obra feita. Senhora de uma beleza terna, suave, exótica. Inteligente, perspicaz. Mãe dedicada e boa cidadã …

Se assim era, porque deixara que a visse de outra forma? Não sabia. Como não sabia como fora possível cultivar em si tamanha ternura e tamanho afecto por alguém como Samuel, um ser que a negava a cada instante. E, contudo, amara-o. Amara-o sem peso e sem medida…

Olhava de novo o visor do telemóvel

“…. Gosto de ti. Beijos.”.

As lágrimas corriam-lhe em fio, agora. Deixou o telemóvel no quarto, não sem antes ter apagado a mensagem.

Cambaleante, encaminhou-se para o escritório, igualmente envolto em penumbra. Abriu o gmail, e encontrou a mensagem que começara há muitos e muitos anos atrás (seriam anos? séculos? ou apenas meses? Não sabia, de igual modo …)

Leu:

“passou tanto tempo, que já nem me lembro porque estamos separados. Só me lembro do quanto és importante na minha vida e do quanto a tua ausência me fere.

Hoje contabilizo mais um dia sem ti. Como te disse tantas vezes, a tua a amizade (acima de todas as coisas) era/é um pilar para mim. De que fugimos, Samuel? Nunca te pedi nada, nada mesmo! Nem que viesses, nem que me desses fosse o que fosse. Dediquei-me a ti e não lamento. Apenas me entristece saber que não soubemos gerir os nossos sentimentos. Que nos magoámos sem qualquer sentido.

Comecei mil vezes este mail e de todas apaguei. Comecei mil vezes mensagens no telemóvel e todas apaguei. Fugi de tudo quanto me lembrasse que existias. De todos os espaços onde sabia que ias ... voltei aos pouco a alguns e sempre em sofrimento (eram de amigos, devia-lhes uma atenção). Nada foi suficiente! Nunca será, posso afirmá-lo volvido este tempo.

Não sou perfeita (erro tanto). Também não és! Somos apenas e tão só humanos. Não guardo qualquer mágoa de ti. Mas guardo todos os momentos de carinho que partilhámos (e foram tantos, Samuel, tantos), ao longo do tempo em estivemos juntos...

Penso menos, quase já não sonho. Anulo-me menos, já não estou parada – avancei por mim e para mim. Encarei novos projectos, alguns dos quais me parceciam improváveis de desejar fazer. Sofro e choro, isso sim, em boa verdade, mas é algo que surge de forma cada vez mais espaçada, casual e conciliável com uma vida "regularizada". Se choro não soluço, se sofro já acontece várias vezes que não choro – as lágrimas gotejam os olhos mas acabam por não cair. Apenas deixam uma cortina acetinada sobre o mundo ... Uma cortina, Samuel...

Gostava de poder dizer que te esqueci. Que nem me lembro do teu nome. Mentiria. Terrivelmente. Estás presente a cada segundo, em todos os segundos do meu dia. Nas alegrias que gostava de te contar, quando a doença me atropela e me fragiliza (É cíclica, com crises, como sabes). Por detrás do texto que escrevo (ou no que, escrevendo, escondo). Nos propósitos, nas vontades. Nos menos, nos mais ...

Tentei acreditar que eras um "monstro", que te detestava, que... (era-me mais fácil esquecer). E conclui que me torturava e que é a ti que também torturas, mais do que a qualquer outra pessoa, quando me negas (na amizade, que seja), quando "assobias" e segues em frente como se nada fosse contigo. Quando finges que a minha vida te não interessa; Quando te "distraís" olhando a paisagem... sem te deteres na árvore.

Faz deste mail o que desejares: apaga, ignora ou reflecte. Considera-o de uma louca, destrata-me, ofende-me. Fico à tua mercê. Engoli todo o meu orgulho e mostro-me absolutamente nua em alma. A tua amizade (a que te guardo) é-me sagrada. Para sempre!

Nunca ouvirás de mim uma palavra de acusação. Repito, não sou perfeita e por imperfeita, não tenho o direito de te julgar, seja qual forem as tuas atitudes. Ainda que me magoem!

Se um dia (hoje, agora, amanhã, daqui a 10, a 20 anos ...) entenderes ligar-me não te desligarei o telefone. Não te fecharei a janela. Não te bloquearei qualquer acesso.

Não te negarei o que é teu para sempre: o meu afecto, o meu mimo, o meu colo. Falar-te-ei como da 1ª vez, que sem saber quase nada ti, te acolhi de coração aberto...

Talvez tivesse de ser assim. Doloroso! Enorme.... Donde viemos Samuel? Quem fomos/quem somos na vida um do outro? ... Um nada? Um tudo?

Talvez devesse nunca escrever este mail. Mas, e tal qual te disse tantas vezes, do que me arrependo é do que não fiz. Do que faço nunca. E antes que a vida não nos dê tempo a dizer o que desejamos, digo. E repito! E assumo que digo. E luto por aquilo em que acredito. E acredito! Sempre acreditei!

Dedicadamente

Marta

***

A luz enfraquecia agora, lá fora. Marta estava tombada por sobre o ecran. Num gesto de “não mais” apagou o mail, definitivamente. Agora todo o corpo se agitava, numa convulsão de dor. Um grito ecoou por muito tempo no vazio da casa… como se uma espada a tivesse varado de lés a lés. Eram de sangue as lágrimas que lhe banhavam o peito que lhe molhavam o vestido de talhe recto. Um vestido de linho rosa.

Não se recordaria nos dias seguintes de quanto tempo ficara ali caída sobre si, em posição fetal. Sentia as dores de um parto, as ancas a abrirem-se, os ossos a rangerem … por fim, mariposas saiam-lhe em turbilhão pela "boca do corpo", como diziam as velhas da sua aldeia. Sentia-se vazia. Oca.

Marta sabia, claramente, que acabara de parir, ou melhor, de abortar um sonho. Esgotada, dirigiu-se para a cama recoberta com um sem número de almofadas, e, pesadamente sem vontade e sem capacidade para fosse o que quer que fosse, devolveu-se ao conforto do mundo, do seu mundo, aquele que levara uma vida inteira a construir.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...