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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 27 de julho de 2008

... quem era Samuel?

Era uma tarefa árdua, daquelas que não desejamos nunca ter de fazer.
A casa estava fechada havia muito, muito tempo. As heras haviam trepado por sobre os muros, as lagartixas haviam encontrado espaço para viver nos silvados que recobriam todo o quintal.
Uma camada de pó branco e espesso anestesiava-se por sobre todos os objectos. Por sobre os vasos de flores ressequidas e mortas. Por sobre os tecidos dos cortinados, por sobre as camas, enfim…
Chovia lá fora copiosamente. Pedira à Margarida, a melhor amiga de minha mãe que me viesse ajudar. Era urgente fazer o espólio, mexer e remexer naquele mundo fechado depois da sua morte. Jorge, meu irmão estava no estrangeiro. Partira logo após as cerimónias fúnebres. Apenas lhe importava, aliás como sempre fizera questão de dizer, o resultado da venda “daquelas tralhas”. A mãe guardava no coração e não queria objectos que a fizessem recordar. Era um nómada e assim queria continuar a ser. E depois, que poderia haver de importante senão papelada, contas e mais contas, rendas e bordados? Aquele mundo mescla de nossa mãe sempre o confundira. Ora a via a bordar, crivos e afins, ora a via perdida com um olhar dobrado à realidade das coisas no escritório, horas e horas seguidas. Era como se a nossa mãe tivesse várias faces, todas desconhecidas de todos.. e, no entanto, sempre silenciosas. Ternas, meigas… Assim a queria guardar, dizia.
Margarida tardava em chegar. Telefonei-lhe:
“Está muito atrasada, Margarida? Confesso-me incapaz de tocar nos pertences íntimos de minha mãe …”
“Não, minha querida, estou perto, dê-me cerca de quarenta minutos e estarei consigo… sabe que temo a estrada quando chove …”
“Sim, claro … é que está tudo num estado que a Margarida nem vai reconhecer a casa…”
“Luzia, minha filha, a sua mãe nos últimos tempos desligou-se do mundo…”
“não, não é isso, Margarida, é o bolor, a humidade, o pó …”
“ … sim, sim… falaremos mais tarde … Vou desligar, estou a passar por uma zona de muito pouca rede… Beijos, minha querida, até já…”
Avancei. Teria de reunir coragem. Dirigi-me à cozinha, abri a torneira. Uma água castanha saiu dos canos, como se a terra inteira jorra-se pela nossa cozinha … Uma lágrima sulcou-me a face. “… mãe… mãe”
Procurei os chás, tisanas antigas… Hermeticamente fechadas, lá estavam, no louceiro de pinho, orlado de pontilhas de renda. O ópio de nossa mãe: rendas e rendas… bicos e contra-bicos em panos e toalhas, a ornamentar as prateleiras… Um mundo de mil contrastes, aquele.
A água corria agora já clara. Lavei a chaleira, acendi o fogão, dirigi-me ao escritório, o mundo confidencial de minha mãe.
Parei na entrada, como sempre fazia quando ela ali estava, embrenhada no seu mundo, na sua escrita, na fantasia. Parei em respeito, em deferimento, em homenagem a este mundo secreto que agora invadia ... Uma lágrima se soltava lenta e outra e outra ... Mordi a boca, bebi o sal que me invadia a alma. Sorri. Via os seus olhos enormes a convidarem-me a entrar... ouvia-lhe a voz:
"podes entrar, Luzia, entra minha filha ... não estava a escrever nada de importante... entra, vem cá".
Entrava. Ocupava a poltrona de couro à sua frente, ficava horas a tagarelar com ela, da faculdade, dos meus amigos, dos meus projectos. Raramente a mãe falava de si, da sua vida, dos seus sonhos... Do seu passado, da sua infância. Essa, em particular, era tabu. Não gostava sequer que a instigássemos a que falasse:
"não há nada a contar, tempos outros..."
Uma montanha de papel aguardava o lixo, coberta com uma espessa camada de pó, aliás como toda a casa… A secretária mal se via, submersa. Nas estantes, pilhas e pilhas de livros e fotos. Nossas, em especial, minhas e de meu irmão. Canetas e lápis, dossiers e cadernos de argolas…
O computador fechado, igualmente coberto pelo pó dos tempos … não deveria trabalhar sequer. Liguei-o. Todo o sistema era pesado, obsoleto, levou uma eternidade a abrir, mas funcionava para meu espanto.
Quando finalmente o ecrã se iluminou, na lateral esquerda uma mensagem “o Word recuperou o documento 1, deseja guardá-lo?”
Não sabia que fazer… aquele “documento 1” tinha, nada mais, nada menos, que dez anos … dez anos. Tantos quantos aqueles que levara a reunir coragem para voltar aquela casa depois do acidente de minha mãe. Um turbilhão de imagens me avassalou o espírito. O dia de sua morte trágica, em particular. Os amigos, a solidão do após…
Decidi aceitar. O que o Word me revelou foi um texto, uma carta ou simplesmente um conto, de tantos que minha mãe escrevia. Não sei, nunca saberei. Todavia, por detrás daquelas linhas, havia algo de muito enigmático e especialmente belo … Li, transportada para um mundo paralelo, o mundo dos afectos e desafectos, um mundo do imaginário feminino ...
Apressei-me a copiar para uma folha (a impressora não funcionava, nem sequer a drive de disquetes …).
**
Estava agora sentada num banco, lia o que acabara de copiar. Lia e relia. Margarida chegou. Ocultei apressada a folha … uma tarefa ciclópica nos aguardava. Dei comigo a pensar que o amor é sempre um presente, uma dádiva, ainda que os entes envolvidos se neguem a vivê-lo na plenitude …
**
Alcácer do Sal, 2007

Amei-te
Amei-te no estado puro da utopia, nos mistérios das rotas da seda, das caravanas que partiam sem destino em busca de um novo dia.
Amei-te, na genuinidade de ser virgem ainda, numa virgindade de afectos e de gestos. Amei-te, em cada palavra que escrevia, em cada sorriso que te adivinhava quando o meu rosto se entristecia em melancolias de luar. No afago que sentia …
Amei-te ainda, num bem-querer para além do tempo, para além de ti ou de mim. Sem reservas, sem protecção, sem véus outros que não o de me metamorfosear gueixa, odalisca, moura ou mulher. E, neste jeito ternurento, me bolinar por dentro e melhor me entregar… ao amor.
Sabes, pouco me importa se ainda me chamas de insensata ou de louca, de alienada ou perdida. Pouco me importa se me esqueceste ou se me guardas na rota genésica da tua vida. No epicentro de ti. Donde partem a desmando todas as tempestades, todas as mais insanas vaidades, leviandades, todas as asperezas no despropósito de te saberes perdido. Perdido de mim…
O que me importa é se sentes o meu beijo distante a esculpir-se na saliva da tua boca, na pureza ruborescida do milagre da vida. O que me importa é se quando o teu telefone toca, quando a desacerto toca, me imaginas do outro lado da linha … e, por mais que não queiras, ou até te doa, te alvoraças à toa… Não, não sou eu. Não te direi que nunca desejei ou me não apeteceu. Que a que se proíbe do toque, é a outra e não eu. Sim, não sou eu. Não sou eu que me amarro e sufoco. Sou eu apenas a que se amputa de ti se amputada um dia, ficando viva morri. E neste jogo de ser, não sendo, não sei quem é a que escreve hora aqui...
Amei-te. No estado mais virginal, num desassossego de pranto. Guardo no meu regaço, no meu colo, no meu corpo, as palavras que disseste, as que no silêncio mataste – as tuas, as minhas -, e ainda as que por dizer, arrestaste no convés de um navio. Recordo o dia em que te disse: “o nosso caso, Samuel, ainda nem sequer começou …”.
… não começ …”
O texto acabava aqui. Quem era Samuel????
***
“Luzia, por onde quer que comecemos? Pelo quarto de sua mãe? Pelo escritório?”
Sorri a Margarida. Abraçadas subimos ao 1º andar, ao quarto de minha mãe. Não a ouvia sequer…
Quem era Samuel?

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...