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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Elementar, da mais básica elementaridade, Vasco...

É elementar. Da mais básica elementaridade, Vasco. Até eu que sou analfabeta já sabia isto. Sabia que isto podia acontecer …

Como é que não sabias? Logo tu, um Doutor, um senhor de leis e de códigos….

Os meus códigos, Vasco, sempre foram da honra e da verdade. Do respeito e da virtude. Da entrega plena e verdadeira. Sempre, ouviste bem, sempre. Até ontem … até hoje… amanhã? Sei lá …

Desde que começámos a namorar e ainda solteiros (e depois de casados, bem se vê…), só tinham olhos para ti. Vivia em função de ti. Dos teus horários, dos teus interesses, do teu bem-estar. Do teu prazer… sim, ouviste bem: Do teu prazer. É disso que te falo nesta manhã em que te escrevo…. Tu, Vasco, eras/foste, o Sol. O rei Sol. Eu? Um quase nada, uma partícula atómica, uma poeira cósmica, que se incandescia com a tua passagem…

Estás atónito? Que te fale destas coisas? A “analfabeta” a falar de assuntos “científicos”? É, Vasco, a analfabeta, não o é completamente … mas olha, isso agora pouco importa. Não é de ciência que te quero falar. Falo-te de afectos. De prazer. De ter prazer, de dar prazer. E, ao falar-te disto, falo-te do que sempre me moveu, me fez estar contigo mais de trinta anos … Acreditar que um dia as coisas mudariam… Não mudaram, contudo, sei-o agora …

Sempre, ao longo de muitos e muitos anos, tentei que me desses valor. Valor ao que fazia, ao que dizia e, particularmente, ao que sentia.

É certo que não me batias ou maltratavas. É igualmente certo que me davas alguma liberdade. Por exemplo: não fazias questão de me acompanhar ao supermercado, à praça, à lavandaria, ao sapateiro. Mas as coisas já eram diferentes se pensasse em ir sozinha a um museu, a um cinema, ainda que de dia … Não te fazia sentido. Como não te fazia sentido prescindires dos teus hobbies para me acompanhares nos meus… Afinal, coisas tão sem interesse, não eram Vasco?

Os anos foram passando. Aos poucos, deixei sequer de sugerir ir aqui ou além. Limitava-me a trabalhar, a cuidar da casa e dos filhos e a esperar que me olhasses. Suponho que por essa altura fiquei transparente. Deixaste simplesmente de me ver. De quando em vez, usavas um outro sentido, o tacto, e tocavas-me… e, lamentavelmente dei-me conta só me tocavas já o corpo, que a alma, Vasco, essa começou a subir, a subir, encontrou uma nuvem e … suponho que hibernou desmedidamente.

Também por essa altura, Vasco, tantas e tantas vezes, desejei hibernar com a alma. Hibernar e não acordar…

Sabes, Vasco, na verdade não me maltratavas… destratavas-me!
Já sei, vais argumentar que são palavras sinónimas… Lamento, Vasco, como sabes sou analfabeta, o Doutor aqui és tu. De palavras redondas saberás pela certa. Mas eu sei o que elas representam na carne, no peito …

Destratavas-me, Vasco, e ponto final. Em coisas tão pequenas, mas de enorme importância. Num simples relato de uma anedota, duma história, em que sempre fazias questão, fosse na presença de quem fosse, de me corrigir:
- “Rosália, não é nada assim …”
E lá contavas, por palavras tuas, mais ou menos rebuscadas o que eu, ao meu modo simples contaria também … Os nossos amigos, tantas e tantas vezes, embaraçados, nada diziam.

Aos poucos, pedacinho a pedacinho, demiti-me da Rosália. Deixei de me interessar por mim, pela minha imagem, pela minha vida. Que vida? … Tornei-me amarga, como se tivesse deglutido um pote de óleo de fígado de bacalhau de uma assentada. Deixei de sorrir, muito menos dar uma gargalhada. O meu olhar turvou, como um rio em dia de temporal. E, Vasco, o pior, pior, é que o temporal permaneceu durante anos a fio…

É elementar. Da mais básica elementaridade, Vasco. Até eu que analfabeta já sabia isto. Sabia que isto podia acontecer … e aconteceu. Um dia, vá-se lá entender porquê, abri os braços, ou melhor, senti que no lugar de braços, me haviam nascido asas…
“As asas são para voar”, Vasco, como sabes…

Voei. Sozinha, Vasco. Sozinha. Visitei museus e galerias, fui almoçar a restaurantes, fui a cinemas e, pasma… andei até de teleférico. Não, Vasco, já não tem medo. Não tenho medo de nada… Claro que não te dizia. Não comentava. Mas também não comentava a ida ao talho ou à frutaria … Banalidades, Vasco. Banalidades…

Olhei-me de frente e vi-me mulher. E, gostes ou não gostes, vejas ou não vejas, tomei conta de mim. E tanto me faz que me corrijas como não, que apregoes a tua sabedoria e a minha ignorância aos sete ventos… Que me não olhes … Azares, Vasco. Sou mesmo uma tela transparente… tão e tanto que não consegues captar o que me habita…

Hoje, Vasco, tenho outros códigos. Não tos vou revelar, não de todo. São os meus. E é por eles que me pauto, à margem dos demais, se tiver de ser. E, nesta lógica de código meu, aqui estou.

Está um sol radioso. A praia tem estado óptima, pese embora os comportamentos de certos indivíduos a quem não foram dadas lições de cidadania … Gente tão, mas tão ocupada, Vasco, que, tal como tu, trabalha no areal da praia … e, claro, grita ao telemóvel, e, claro, me invade a privacidade sem nenhum pingo de respeito pelo meu descanso (para não falar dos bem casados que, de braço dado com as legítimas, passam o tempo a “galar” as miúdas …) Esses, fazem-me rir. Patetas!

Espero que estejas bem… voltarei um dia destes… afinal tenho todo o tempo do mundo. Não tenho trabalho mesmo, Vasco… há males que vêm por bem. Já trabalhei uma vida inteira, a pré-reforma não é afinal descabida. E, quem sabe, não seja hora de dar novo rumo à minha vida??? Li algures que existe sempre vida além da vida ... Esquece, Vasco, devaneios de uma simplória...


PS: Não fui ao supermercado, o frigorifico está vazio. Não te preocupes, não faço questão de ir contigo. Vai e diverte-te …

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...