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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 9 de julho de 2008

“Quem és tu, Sara?...”

Sempre se soube desatenta, meio “lunática”, meio aérea.

A comprová-lo um sem número de episódios absurdos: o dia em que foi para o emprego com sapatos diferentes, absolutamente diferentes – um castanho e outro preto, um de salto fino e o outro não, um com um berloque e o outro com uma chapa metálica no peito do pé -, ou ainda o dia em que acompanhou, no seu carro, durante mais de oitenta quilómetros, um suposto tio falecido … Sim porque, na hora aprazada o funeral que passou não era o do seu familiar e, pese embora não ter reconhecido nenhum dos rostos dos seus familiares nos carros próximos, decidiu que sim, era aquele o funeral e segui-o…. Acabaria por chegar adiantada ao cemitério e esperar lá pelo defunto. Afinal nada se perdia… tinha feito “companhia” a uma alma e agora ali estava, no papel de boa sobrinha, a aguardar a chegada do morto que deveria ter acompanhado…

No rosto um vazio e nas mãos rosas amarelas “dou-te a minha rosa amarela”, lera em algum lado. Rosas amarelas, símbolos de afectos, de amizade …

O seu olhar perdia-se frequentemente como se andasse sem ela pelos prados e pelas avenidas. Como se vagueasse em nomadismo de alma… Como se os seus passos se levantassem antes de si e, na manhã dos dias, já se tivessem antecipado às rotineiras tarefas e lhe tivessem aprontado as torradas e o café… Os seus passos, antes de si!

Tempos houveram em que se “enganava a si mesma”. À noite, depois da família estar aconchegada, Sara preparava a mesa do pequeno-almoço, a máquina do café. Cortava o pão, introduzia-o na torradeira e… colocava um temporizador em ambos os electrodomésticos. Quando chegava à cozinha a sua criada invisível, o seu mordomo, haviam-lhe preparado o breakfast… Continental, pois claro, mas era o que se podia arranjar… do mal o menos. Afinal merecia!!!

Sempre se sentiu ausente de si e do mundo. Não raras vezes desligava os comandos e deixava que o piloto automático comandasse a sua existência. E assim acontecia. Tudo se ia ajustando, como se uma mão invisível … (vinham-lhe agora à memória as teorias de Adam Smith e as suas últimas palavras, as que terá proferido à hora da morte: “Liberdade para sempre”...)
Uma mão invisível… uma liberdade para sempre. A sua forma "lunática" era a sua maior liberdade...
Em boa verdade, dos seus tempos de aluna, vinham-lhe mesclados os conceitos de “mão invisível” com os de "liberdade de acção", da sua acção enquanto ser social, da sua determinação operante e operacionalizante, a sua capacidade de agir em sintonia com a sua consciência social. Sentia-se não raras vezes nos antípodas de si mesma. O verso e o reverso. O ser e o não ser.

Eram nesses momentos, em especial, que os conceitos económicos lhe emaranhavam os neurónios. A curva de Gauss, a normalidade dos “trajectos”, o ponto de Cournout…
Não entendia aquele súbito interesse por temas económicos, mas o facto é que a pressão da “economia doméstica”, da "gestão doméstica", faziam-na repensar o factor “investimento”, o “curto e o longo prazo”, os "recursos e os métodos" … e as "economias de escala", e as "economias sociais" ...

A vida era um imenso comboio em que a haviam colocado sem lhe determinarem a função. Ou seria antes uma linha de montagem? E ela, quem era? Pessoa? Máquina?
Talvez! Ou talvez não... Não que quisesse, conquanto, maquinalmente ia empurrando a vida (ou puxando por ela, como preferirem).

A sua vida fora sempre um sucedâneo de actos não previstos em que as soluções haviam surgido de improviso. Improvisada. Resolvia. Desenvolvia. Unia pontas, cerzia e passajava uma manta esburacada de gasta. No fim, tudo parecia perfeito, como se os remendos fossem patchwork, como se aquela tivesse sido, desde sempre, a intenção da obra. Patchwork ...

No percurso impunha-se um distanciamento de si própria. Um olhar-se de cima, como na noite em que, uma hemorregia não prevista, em resultado de uma simples operação às amígdalas lhe ia custando a vida. Tinha então cinco anos... Viu-se de cima, viu médicos e enfermeiras a lutarem por ela... Para quê? Não sabia... eles tinham tanto mais que fazer. Mas lutou também. Sara um dia seria médica (ou talvez não).
Impunha-se o tal distanciamento. Camuflava-se, como intimamente dizia (metamorfoseava-se no seu casulo). E protegia-se expondo-se. De novo nos antípodas de si mesma. Nos paradoxos.

Num destes dias, de conversa com uma antiga colega que não via há anos, ouviu dela aquilo que sempre soube, o que intuía ser a leitura que dela faziam:

- Sabes, Sara, sempre te achei “estranha”… desculpa lá, mas é verdade. Aparentemente és uma tipa aberta, “uma porreiraça” mas, quando achamos que já te estamos a conhecer… ausentas-te de nós e é como se uma barreira se erguesse, invisível e inultrapassável. Desarmas qualquer pessoa. Tão “lunática”, mas tão densa, amiga… perdoa a análise. Quem és tu, Sara?

Sara sorriu… Abraçou a amiga, um abraço sincero e, naquele jeito muito seu de ser “ausente” rodopiou sobre os saltos altos, pegou na mala deposta sobre a cadeira ao lado e, com um sorriso a bailar-lhe nos olhos e um véu de tule sobre ele, respondeu:

- Sei lá, Carminho … sei lá!

O eco perpetuou a pergunta por muito, muito tempo … para além do tempo. Sem tempo, Sara continuou ...

“Quem és tu, Sara?...”

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...