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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 23 de agosto de 2008

... um olhar ausente. (parte I)

"despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado“.

Discurso ao príncipe de Epaminondas, mancebo de grande futuro, Mário Cesariny.


Assim fizera. Despira-se de todas as verdades. Das grandes e, depois, num ritual mímico, de gueixa em acto, das mais pequenas. Camada sobre camada, como as sete saias das nazarenas, assim Irene se foi desnudando, mostrando, revelando. Naquilo que lhe era mais secreto, mais seu, mais do seu íntimo desassossego.

Naquela manhã acordou com o rosto amarfanhado pelas rendas enlaçadas nos cantos da almofada. O pano branco, algodão comprado a metro nos anos setenta, à vendedeira que, numa periodicidade certa, montada lateral num jumento estafado de velho, percorria o povoado. O pano branco que, com a ajuda de sua mãe, marcara a fio tirado, cortara e alinhavara, para o enxoval. Depois as rendas, feitas em linha fina, nº sessenta, de cor crua. Depois os bordados, nas longas tardes em que se isolava numa estranha meditação e, os seus dedos, de unhas alongadas se esgrimiam num vai-e-vem frenético, perfurando tecido e pele, em muitos momentos. O bordado surgia, como que por magia. Crivos e abertos, ilhoses e pontos cadeia. Nesses tempos Irene não sabia de si. Perdia-se e voava num voo incontido e fragmentado, entre os sonhos e a realidade. Nesses tempos, só o relógio da torre a chamavam à realidade. E, a realidade era, invariavelmente, a solidão. Deslocava o corpo, em direcção à cozinha, preparava a refeição, os afazeres múltiplos daquela casa que, demasiado cedo lhe caíra em ombros. Tudo, ou quase tudo, era de sua responsabilidade. Das plantas aos animais, das limpezas diárias às semanais. A par com os livros, com os estudos, com as políticas de emancipação a que, por convicção aderira à revelia dos demais da casa. Irene era uma mescla, um recalque e um decalque de muitos palcos. Tantos que se esquecia ou nem sabia quem, em rigor, era ela mesma.

Viu-se casada. Sem dar conta como, via-se num jardim público, rodeado duma trupe estridente de convivas, a esboçar sorrisos à esquerda e à direita, para um fotógrafo de qualidade duvidosa. Posses repetidas, iguais a tantas outras nubentes de ocasião. Naquela noite, cumpriu sem emoção o ritual de entrega àquele com quem casou. Adormeceu, por fim, esgotada em alma e sem certezas de ter dado o passo certo. Acordou na manhã seguinte no meio de lençóis bordados, numa casa recém construída em que, se sentiu refém. Refém da mensalidade que teria que pagar, do emprego que entretanto havia empreendido e que, jamais estivera nos seus horizontes. Dum marido que havia aceite sem paixão, duma sociedade que a empurrara literalmente para a condição de mulher casada. E, acima de tudo de si mesma. Refém.

Maquinalmente, dirigiu-se ao banheiro, de dimensões generosas, e, maquinalmente deu por si a escovar os cabelos cor de fogo. Olhou o espelho que recobria parcialmente a parede por cima do lavatório cor de azeitona, última moda em loiças sanitárias. De lá, uma figura de mulher inacabada, reflectiu-se embaciada aos vapores do banho que, em golfadas compassadas, enchia a banheira ao lado.

Maquinalmente, deixou que a camisa índigo lhe caísse aos pés. Instintivamente acariciou o corpo, tocou-se nos seios e no sexo, imaginou-se amada, desejou-se longa e loucamente amada. Tal como sempre imaginara que seria numa noite de lua-de-mel. O corpo respondeu ao toque, inicialmente em espasmos tímidos e, depois, de forma selvagem e frenética. O espelho reflectia agora uma mulher adulta, vibrante, pulsante, determinada em se conhecer. De se saber. Continuou a tocar-se, a explorar cada prega do seu corpo, de si em si. Um misto de prazer e de raiva incendiavam-lhe o olhar, a pele. O suor apoderava-se de todo o corpo, escorria-lhe em fio pelas axilas até aos cotovelos. As lágrimas sulcavam-lhe a cara, grossas e cadentes. Sentia-se nojenta e, contudo gostava. Dúplice. Dual e antagónica.
Insaciável, penetrou a água, deixou-se decair por entre um mar de espuma e de fragrâncias de jasmim e menta. Recostou a cabeça na orla da banheira e retornou a si. Ao seu corpo, à necessidade incontrolável de se sentir e se dar prazer. A água possuía-a amplamente. Ao seu toque, o sexo explodia numa fome cada vez maior. Num cio animal. Ficou ali, até que a água se revelou fria, naquela manhã de Inverno. Lentamente, saiu da banheira, envolveu-se no toalhão espesso tombado por sobre o tampo da sanita, esfregou o corpo no vagar de quem tem a vida inteira pela frente, secou-se o melhor que conseguiu. Desembaraçou os cabelos, vestiu o roupão e, dolente, dirigiu-se ao quarto. Miguel dormia, convicto de que havia cumprido a sua função marital. Afinal, havia tomado a sua mulher assim que se viram a sós no quarto. Rápido é certo, mas, porra, estava cansado. Os vapores do álcool e os convivas dançantes também ajudaram a desfocar a imagem. Sonhou que era um garanhão tal como os que via no pasto. E ela, a fêmea passiva. Não longe da realidade…

Os primeiros raios da manhã invadiam o quarto. Aos rumores da sua esposa a deambular pelo quarto, acordou. Chamou-a. Irene acorreu. Viu-lhe uma centelha de satisfação no olhar. De fêmea saciada… intuiu.

Deitou-se a seu lado. Miguel beijou-a bruscamente, abriu-lhe o roupão e, em escassos minutos fê-la de novo sua. Como se o mundo acabasse naquele instante. Seria assim por muitos e muitos anos.

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Encontrei-a um dia deste. Já não tinha os cabelos cor de fogo. A prata da vida instalara-se definitivamente. Convidou-me a tomar um café. Sentámos-nos numa explanada, mandámos vir um gelado ao invés do tal café e, sem que suspeitasse, Irene irrompeu:
“olha lá, tenho lido as tuas escritas …”
“eh?”…
“gosto! Vou contar-te o que, por certo sabes do mundo íntimo das mulheres …”.

Contou. Contou como havia ultrapassado a solidão da sua vida. Como não morrera dentro de um corpo mal amado. Amara-se a ela própria, milhões de vezes, sempre que o desejara. Todavia, a cada final “de acto” se sentira mais sozinha, mais asfixiada em sua pele. Sentia que era tempo de se despir das suas verdades …das grandes e das pequenas, abrir uma cova e enterrar os seus fantasmas.

Irene deambulava os olhos magoados na mescla de cores do gelado à nossa frente. Vestia-se agora de um olhar ausente …

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...