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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

telas imperfeitas

“…Não espero mais nada. Na verdade, em boa verdade, há muito que deixei de esperar, de me angustiar na espera do que, premonitoriamente sabia, desde o primeiro instante, que me não era devido, concedido e que, porque frágil, um dia haveria de vir, em que não teria mais.

A quietude impera-me nos sentidos, como que se estivessem invernados. Hibernados. Como se, aquietados na mansidão do tempo largo, aguardassem uma nova vida, uma nova era. Semente congelada em calotes pálidas ou, quem sabe, no umbigo da terra, por sobre a aridez desértica.

Não espero nada. E nada esperando, não desespero.

Deitada na areia da praia, fundo a curvatura das costas numa toalha antiga em tons de azul. Xadrez, azul e verde. É lato o horizonte, a linha de água, definida livre no encontro com o céu estanhado, que vejo, num esgar esboçado, num prolongamento natural do oiro, do areal, este, este em que me sereno e em que me deixo envolver num abraço maior. De Sol…

O olhar solta-se das linhas do livro que sempre me acompanha e, imigrado em longínquas terras, vagueia. É tamanha a beleza deste lugar, sabias? Dou comigo a pensar que ao poeta basta que se detenha na beleza da natureza, na grandiosidade incomparável dos seus quadros – pinturas de inultrapassável beleza - e que, dela e nela, fielmente se reproduza. Terá matéria mais que suficiente para a sua arte, nesta e noutras vidas. Cogito que basta que se deixe imbuir no quimérico e no orgânico de cada instante. Que ceda a si, num lento e profundo relaxamento muscular, num relevamento de alma… reconheço tudo isto e mais além e, contudo, deixo que uma nostalgia se me entranhe em mente. Estranhamente, agrada-me. A nostalgia agrada-me, sabias? Como a neblina deste lugar.

Sabes, quando te conheci, cresci. O facto de te saber, de te sentir, desamparado, fez com que, sem que disso me tivesse apercebido de imediato, me tivesse transformado para te acolher. Para te proteger. Talvez seja assim. A relação que se estabelece entre aqueles que estão predestinados a se encontrarem é, uma relação de atracção. Pólos opostos, como um baloiço, que se, de um lado sobe, do outro desce. Um baloiço de dois lugares, de frente a frente. Em poucos dias, a cada nova aproximação, sentia mais a tua estranha fragilidade e a minha força crescente. Só te poderia dar aquilo que tivesse em mim. E se o que necessitavas era que te amasse, que fosse uma mulher segura e determinada, seria. Seria...

Dou-me conta agora que me tornaste muito melhor pessoa. E, como te disse acima, sempre soube que estavas de passagem em minha vida, que eras apenas uma projecção do meu inconsciente … e, por isso, nunca esperei em demasia. E que não, e de não quero, cobrar-te passagem pelo meu porto…

Há vários dias que não tenho uma ideia luminosa, um arroubo poético, uma inflamação sensorial daquelas que me cataduptavam em turbilhões para o papel, para as telas, e que me impõem pinturas viscerais. Tais as que sentia quando ainda te conjecturava perto de mim. Há vários dias que não me sei, não te sabendo. Doem-me ausências e presenças ausentes. De uns e outros. Como as destes seres anacrónicos e desfasados do tempo que por aqui, nesta cidade, vagueiam. Talvez mais estas que as primeiras.

Doem-me as palavras que não digo e as que dizendo, oiço e não reconheço minhas.

Vem-me à mente um título de um livro de Inês Pedrosa: “Fazes-me falta”. É, na realidade, estas duas palavras resumem toda a turbulência que me vai em alma, que me assola o corpo em varejos de varas verdes sobre azeitona madura. Impiedosa, a vara vai e vem e bate e rasga e talha, do fruto ao ramo, à folha ao caule … jazem os bagos por sobre panos depostos em castanhos de chão. Assim a tua ausência. Fere, recorta e aguilhoa tudo o que resta de uma emoção…”

__

Estava a meu lado, na esplanada e escrevia freneticamente. Nunca a havia visto. Não era daquele lugar. Não era dos habitues da praia. Envergava um vestido de algodão branco, solto, longo. Duas rachas profundas descobriam-lhe a pele dourada e um par de pernas já com algumas marcas de cansaço. Tentei avaliar-lhe a idade. Rondaria os trinta e muitos anos, próximo dos quarenta. Tinha o cabelo solto em caracóis pouco definidos a atingir a cintura. Não estava pintada. Não era vulgar, mas também não era ostensiva. Nas mãos anéis multicores, alguns colares de contas e vidros e, nos pés, umas sandálias de couro.

Pediu um café. Bebeu-o dum só gole, decidida. Abriu o saco de pano. Deduzi que procuraria a carteira. Mas não. Buscou o telemóvel. Abriu-o. Olhou-o longamente … acariciou-o e, num destempero inimaginável, face à calma que até ai havia demonstrado, levantou-se da cadeira, correu ao mar… e, numa fúria visível, desfez-se daquele que acabava de acariciar. O pequeno objecto, como uma pedra, fundeou nas pequenas ondas, desaparecendo rapidamente. O seu semblante recortava-se no infinito como uma tela imperfeita ... tragicamente imperfeita.

Depois, com um sorriso maquiavélico, regressou à cadeira. Sentou-se. Retomou o caderno em que escrevia. Arrancou a folha, amarfanhou-a demoradamente entre as mãos. Era agora uma bola que passava de uma para a outra mão.

Levantou-se, dirigiu-se ao balcão. Pagou. Olhou em redor, os meus e os seus olhos cruzaram-se, quentes. Reconhecidos.

Discretamente, sem que os restantes entendessem o seu gesto, abriu a mão e depositou a bola na minha mesa… Sorriu-me, serena. Afastou-se em passos ritmados, polvilhados duma sensualidade segura. Fiquei ali, durante muitos minutos a vê-la afastar, como uma visão, como uma fantasia.

O Sol tombava já no bojo do mar. Na esplanada, um a um, todos os ocupantes das mesas vizinhas se iam levantando. A música continuava a tocar. Bob Marley ...

Restava eu, petrificada, dividida entre o som negro e a imagem nívea e difusa que se evaporava na orla marítima ...

Sem saber que fazer, abri lentamente o papel amarfanhado em jeito de granada que me havia sido confiado. Uma letra miudinha, sem sequer uma rasura revelou-se à minha frente.

“…Não espero mais nada.”…

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...