
Em
multiplicação o jardim luxuriava em tons de veludo e texturas de seda, dando
ares de fidalguia ao simplório lugar. Pouco mais havia de ter que uma vintena
de metros para cada lado, medidos pelo compasso das minhas pernas abertas ao
máximo, paredes de cal lavadiça e chão de cimento afagado, gasto, puído pela
passagem, coberto com telhas de zinco a evitar as pingueiras. E ventanias.
Outros talvez lhe chamassem corredor mas, para mim, do alto dos meus poucos
anos era O Jardim. Ai de quem o negasse. A
porta, essa, de um verde desbotado onde a madeira à vista registava vestígios de
caruncho.
Com
um postigo sempre aberto a avistar o espaço do horizonte, a casa de família, de
serventia única, não sabia de outras portas, e, por conseguinte, por ali
entravam todos quantos a habitavam e os que, aos domingos e dias santos nos
visitavam. Lá de dentro cheirava sempre a pão e a cravinho da índia. Os
alguidares de barro cobertos de panos brancos escondiam manjares dos deuses: a
broa da semana inteira, a carne a temperar para os enchidos que haveriam de dar
unto ao tacho e conduto ao prato.
Na
passagem, as podas agarravam-se às saias e, Vizinha, tem aqui um belo jardim.
Dª Catarina vou roubar-lhe um tranquinho desta que luz, benza-a Deus. E
zás. Já estava…
Na
serventia, passavam os passos, as pessoas. E as boas e as más notícias.
Como
naquele dia, o dia em que o jardim sem aviso prévio começou a definhar. Era dia
das mentiras e ninguém acreditou possível a partida do avô ceifado por um
tractor. “homessa, homessa…”
E
a definhar se fizeram frios os olhos cor de cinza da avó Catarina (antes azul
de mar), ela agora um tacho sem testo, um caco sem asa. Depois foi a vez do tio
Zeferino ceifado pela pneumónica e logo de seguida o outro tio, Fradique de seu
nome, ceifado pela guerra de África - “homessa, homessa…, quando é que parará
esta matança?”
Sem
respostas, os olhos cinza da avó Catarina cada dia mais frios, incapazes de
chorar uma lágrima. Depois de seguida, a tia mais nova, Catalina, moçoila
madura mas de fino porte, esperança de continuidade da família, além de mim,
deixada por alguém, "filha duma gata mal parida, que se fez ao meu homem" nas palavras
da avó… Ela, sim, jóia da casa, ceifada por um amor sem tino que a levou
ao cadafalso das mulheres perdidas. “homessa, homessa… onde já se viu
semelhante coisa. Um homem casado, com idade para ser seu filho. Mais novos
quase vinte anos! Eram só dez, mas isso que importa? ”
e
a voz da avó “para mim está morta”.
No
dia em que do jardim apenas restavam os vasos, os baldes e os tachos cheios de
terra empedernida pela falta de água, percebi que, de outrora, do meu jardim, nada sobrava. Foi
também nesse dia que a foice se fez farta na barriga da avó e eu deixei de acreditar
em histórias com final feliz.
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