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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Ceifados


Todos nós temos um jardim. Um jardim só nosso onde deixamos cultivadas as nossas memórias, as nossas correrias de meninos, os nossos beijos de namorados. E ai de quem diga que não o têm, que lhe direi de seguida que não viveu ou está desmemoriado. Não sou excepção. O meu era uma espécie de pátio com quatro ou cinco vasos de barro, uns baldes de zinco furados à força de tirar água do poço, e outros tantos tachos sem asa e esburacados que, impróprios para o fim para o qual haviam sido concebidos, se dispunham lado a lado com os primeiros e acolhiam as podas e os bolbos de uma e outra flor roubada (para dar sorte) de uma qualquer vizinha. E uma cadeira com uma perna partida, encostada à parede. E rosas. Ai as rosas. Havia rosas, rosas, rosas…

Em multiplicação o jardim luxuriava em tons de veludo e texturas de seda, dando ares de fidalguia ao simplório lugar. Pouco mais havia de ter que uma vintena de metros para cada lado, medidos pelo compasso das minhas pernas abertas ao máximo, paredes de cal lavadiça e chão de cimento afagado, gasto, puído pela passagem, coberto com telhas de zinco a evitar as pingueiras. E ventanias. Outros talvez lhe chamassem corredor mas, para mim, do alto dos meus poucos anos era O Jardim. Ai de quem o negasse. A porta, essa, de um verde desbotado onde a madeira à vista registava vestígios de caruncho.

Com um postigo sempre aberto a avistar o espaço do horizonte, a casa de família, de serventia única, não sabia de outras portas, e, por conseguinte, por ali entravam todos quantos a habitavam e os que, aos domingos e dias santos nos visitavam. Lá de dentro cheirava sempre a pão e a cravinho da índia. Os alguidares de barro cobertos de panos brancos escondiam manjares dos deuses: a broa da semana inteira, a carne a temperar para os enchidos que haveriam de dar unto ao tacho e conduto ao prato.

 Na passagem, as podas agarravam-se às saias e, Vizinha, tem aqui um belo jardim. Dª Catarina vou roubar-lhe um tranquinho desta que luz, benza-a Deus.  E zás. Já estava…

Na serventia, passavam os passos, as pessoas. E as boas e as más notícias.

Como naquele dia, o dia em que o jardim sem aviso prévio começou a definhar. Era dia das mentiras e ninguém acreditou possível a partida do avô ceifado por um tractor. “homessa, homessa…”

E a definhar se fizeram frios os olhos cor de cinza da avó Catarina (antes azul de mar), ela agora um tacho sem testo, um caco sem asa. Depois foi a vez do tio Zeferino ceifado pela pneumónica e logo de seguida o outro tio, Fradique de seu nome, ceifado pela guerra de África - “homessa, homessa…, quando é que parará esta matança?”

Sem respostas, os olhos cinza da avó Catarina cada dia mais frios, incapazes de chorar uma lágrima. Depois de seguida, a tia mais nova, Catalina, moçoila madura mas de fino porte, esperança de continuidade da família, além de mim, deixada por alguém, "filha duma gata mal parida, que se fez ao meu homem" nas palavras da avó… Ela, sim, jóia da casa,  ceifada por um amor sem tino que a levou ao cadafalso das mulheres perdidas. “homessa, homessa… onde já se viu semelhante coisa. Um homem casado, com idade para ser seu filho. Mais novos quase vinte anos! Eram só dez, mas isso que importa? ”

e a voz da avó “para mim está morta”.

No dia em que do jardim apenas restavam os vasos, os baldes e os tachos cheios de terra empedernida pela falta de água, percebi que, de outrora, do meu jardim,  nada sobrava. Foi também nesse dia que a foice se fez farta na barriga da avó e eu deixei de acreditar em histórias com final feliz. 

 

Imagem da net

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...