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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Ancestralidades


não se anda sobre a terra como se ela não tivesse história e outros pés antes de nós não a tivessem calcorreado. não se anda. ou pelo menos eu não ando. foram os elementos da sua composição primitiva, acanhados, soltos ou grosseiros, que lhe afectaram o comportamento e o progresso das estirpes. foram.  e o dos povoados, e, por conseguinte, a forma como a habitámos. ou nos habitam.
cada grão de areia, cada pedra, cada musgo, cada milímetro de chão inóspito e exposto ao desaconchego das raízes, conta a história destes - uma história de abandonos. às páginas tantas de um qualquer dia, alguém se foi, partiu e não olhou mais para trás. ou porque a morte lhe trocou as voltas ou porque o apelo de outra vida, melhor, maior ou mais cheia, se sobrepôs à vontade de ficar. depois, a manchar a paisagem, ficaram as ruínas, os escombros, as árvores sem podas, mal esgueiradas e bravias, os bravo de esmolfe de que tanto gostavas, ressequidos, o tanque da rega talhado numa só pedra a poder de braços, revestido a verdete pastoso, os frutos persistentes que, ainda assim, a destrato,  vão nascendo e caindo podres para que a semente brote de novo. e os silvados a recobrir lugares de afectos. e a degradação a dar conta de telhados, coberturas, alicerces. todo um espólio de recursos ou riquezas, um património irrecuperável a desarticular-se aos poucos. ou subitamente. depois um vazio. um espaço em  branco em que tudo pode ser de novo. uma casa térrea, um arranha-céus, uma família, um texto sobre a folha em branco, um livro comum, um best-seller.


afasto o moutedo o mais possível em busca de um palmo de terra livre para firmar os pés ciente de que, uma vez caída, é e será sempre, com a ajuda do chão que me levanto. 
um raio de sol trespassa a neblina fria da manhã. aponta para um ângulo indefinido onde uma árvore se desenvolveu em contraponto ao descampado do lugar. solitária. uma semente a jorrar do ventre da terra. a tal semente. sobre os pés, uma voz de silvas eleva-se a retalhar o silêncio. zumbe em círculos, anéis à volta das ancas a travar o passo. anéis de silêncio ao redor de um umbigo. se se pudessem contar num método científico similar à dendrocronologia haver-se-ia de determinar que a minha idade real é de mais de mil anos e alguns deles bem espessos, quase opacos – sabido é que as árvores crescem mais no período de chuvas e nas épocas mais quentes e que de zonas “mornas” não se fez o meu viver. tudo foi sempre oito ou oitenta. a minha história, a minha vida, têm camadas de silêncio.
afasto-o uma e outra vez. as mãos desprotegidas retalham-se na imprudência do gesto. ainda assim, indiferente à dor, persisto. persisto em busca de um não sei quê, de um não sei quanto, da ancestralidade transmitida de geração em geração, soma de todas as vidas vividas a conjugar o verbo na sua forma mais imperfeita – é ai que resido. no pó da memória de que se alimentam as raízes. e nos laços de sangue. 

(imagem da net)

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...