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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 22 de maio de 2018

Laura, ou as bruxas não usam óculos

Só ela conhecia, a palmos bem medidos de mãos pequenas e unhas sobressaídas, vermelhas como cabeças de fósforo, a escureza daqueles lugares de memória. 
Só ela, no formigar dos dedos, tacteava percursos impossíveis que os pés, calçados com sabrinas rasas, bordeaux, cravejadas de brilhantes, teimosamente, a descontento do ritmo cardíaco arrítmico, ora em taquicardia ora em bradicardia, leigos, ledos e lépidos, resistiam no trilhar. 
Cada dia era uma vitória intrínseca a um ponto final vaticinado lá mais atrás. Mas disso, desse estado energúmeno, Laura negava-se a falar. Nem que a ameaçassem de lhe arrancar a língua. Nem que a suspendessem presa pelos pés. Nem que …. Daria a volta, faria o pino, voltaria ao ventre da mãe, à posição fetal, seria embrião de mulher mal parida, mas não falaria, Abracadabra. Não falaria, bruxas à parte e porque há coisas de que nunca se devia falar para não acordar os espíritos do inverno da vida. Apenas dos resquícios.

Arritmia sinusal, dissera-lhe o médico. Comum quanto baste em crianças, mas que a atingira como um raio fulminante no meio de uma trovoada, na idade adulta. Desde então, a braços com uma sintomatologia incomodativa que lhe oscilava o peito cima-abaixo num arfar de cão em esforço, em anómala frequência cardíaca durante a respiração, ora em aceleração dos batimentos ao inspirar, ora em diminuição ao expirar, passara a relativizar o que, fora de si, daquele corpo agora estranho para si própria, ocorria. A vida interna já lhe era povoada de uma inconstância q.b. que lhe porejava os sentidos em ancoradouros vazios. Os dias, como a maleita que a afectava, oscilavam entre descuidosos e despreocupados, ou desolados e infelizes. Nos primeiros, Laura, fosse qual fosse o problema que surgisse, chutava para canto, desvalorizava, antecipava-o, engendrava solução. E era boa, muito boa nisso. Nos segundos, a mínima contrariedade tomava –lhe em espírito, espaço sideral. Assim era Laura naquela Primavera de 2018. Apegada e despegada, exuberante ou amorfa… Inóspita, quase impenetrável, não raras vezes, não buscava nem fazia amigos. Porque sim. 

Foi num dos dias primeiros que os perdeu de vista. Buscou-os, inconvicta, por toda a casa, por todas as casas onde a memória dos dias anteriores a colocavam. A casa da praia, a casa da cunhada, da sogra, os espaços exteriores de todas, quintais, garagens, e por ai adiante. Nos lugares mais improváveis. No frigorífico, na sapateira, nos armários dos tachos – a minha cabeça já não é o que era, estão postos por mão - , dizia a si mesma. Hão-de dar cor de si … Mas deles, nem sombra. E eles a não lhe fazerem sombra aos olhos como deviam, como era a sua obrigação, e ela a serrar os olhos, quase míope, ao sol baixo e traiçoeiro. Abracadabra, porra, haveriam de aparecer e, por conseguinte, fiel ao conforto que lhe haviam proporcionado até ai, fidelíssima ao seu ar clássico e atemporal não se predispôs a substituí-los. Acreditava na máxima “Eu crio ao falar" e, derivado a isso, mentalmente, apelava ao seu regresso invocando tempos em que eles e ela foram peças do mesmo puzzle. E que belos momentos aqueles partilhados, eles a filtrarem o excesso ela a buscar o dito… 

Nos dias seguintes, claros e nublados, com a temperatura baixa, quase que os esqueceu. Achou-se livre de todos dos perigos. Mas, lá bem no fundo, havia sempre uma falta, um pedaço de si esquecido num campo de papoilas a resgatar. Como um ente querido deixado infantário, num lar de idosos, num hospital… Os dias sucederam-se aos dias como previsível. Numa tarde em que o sol abriu irrefreado sentiu-o e sentiu-se como “tinta que caía no móvel vazio congregando farpas”1. Dorida de ausência. Por fim, infiel à memória, deu por si, frente a um espelho a ensaiar uns e outros. Nenhum a satisfazia em pleno, demasiado grandes, demasiado pequenos, demasiado modernos, demasiados retros. Acabou, esgotada em delongas, por adquirir uns, um tudo-nada semelhantes aos desaparecidos em combate, mais audazes, mais leves. Abacadabra, Eureka, disse. Pagou-os e à saída da loja, inculcou caminho. Rua a cima, rua a baixo, “Nos degraus de Laura, No quarto das danças2, menos nua, menos exposta, ensaiava posses de artista de enésima categoria. As selfies faziam o resto – recriavam memórias futuras. Eureka.

Já quase-quase os tinha esquecido. Que se lixe, merda de óculos. Naquela manhã nebulada de Maio, pegou no telemóvel e nos “substitutos”, pegou na bolsa, na lancheira com o almoço, desceu as escadas, abriu o carro e, como todos os dias colocou ambos os volumes no banco traseiro. Conduziu a franzir sobrolho – estes óculos são uma merda, logo tive de perder os outros… Ok. São só uns óculos. Quinze minutos depois, abriu o pisca para a esquerda, estacionou, abriu a porta traseira do lado esquerdo a fim de retirar os pertences. Recurvou-se dentro do carro e eis que se não quando, os miseráveis, os desgraçados, os filhos da puta, a fitaram em gozo puro, como que “postos por mão” sobre umas botas invernosas ensacadas à espera de ir para o sapateiro. Há meses! No meio do chorrilho de desaforos com que lhes deu as boas vindas a casa, deu por si e pensar que se as Fadas não vão à escola3 as Bruxas não usam óculos em dias de neblina. Ou talvez usem?

Lentamente, no horizonte, as nuvens começaram-se a espalhar para os lados, em camadas finas…

...

 Citações:

1 e 2) Redondo Vocábulo, Zeca Afonso

3) As fadas Não Foram à Escola, Maria Augusta Seabra Diniz




“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...