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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Lulu e outros galãs ou a "Cadeira Veloz"

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Gueddes e Cunha até ai calado, anfitrião da noite, com investimentos no sector privado “na saúde, meus senhores, na saúde e na velhice, que é o que dá garantia de retorno” avançava agora dois passos enturmando-se com os restantes comparsas. Fixava âncora ao candeeiro de ferro forjado verde-garrafa, fixava as margens largas do corpo precocemente envelhecido nos excessos das campinas, das noitadas e “outras cavalarias altas” nas botas de montada, largamente ensebadas. Pigarreava no fumo do cachimbo, tentativa infrutífera de clarear a voz, esfalfada do dia inteiro a tanto incentivar cães nas supostas tocas dos coelhos e das raposas em coutada.

Embrulhava-se ao capote de lã, subias golas, compunha boné, enfiando-o profundo na cabeça calva. Em antecipação de supremo gozo, buscava o inominável das palavras mais contundentes, que, a muito custo, sustinha na saliva da boca…

No escuro pouco iluminado da praça, apenas os olhos de pequenas dimensões e de “grandes visões” como sempre afirmava a propósito e a despropósito de si, fulgiam, num sorriso branco para além de maquiavélico. Lançava chispas a Heitor Coutinho, num desafio destemido de “contas tu ou conto eu?” enquanto esfregava as mãos compulsivamente, uma em outra.

Os rostos avermelhados pelo frio e pelo carrascão “suprema colheita, aquela, meus senhores…”, aproximavam-se um a um. Era a hora de todas as horas “agora ou nunca, Heitor…”.

Adivinhava-se uma grande revelação, de contornos auspiciosos ao libertar de profundas risadas e de inconfessáveis vontades de ter dela feito parte. Afinal, nestas coisas de saias (e era disto que se haveria de falar, pois então), o naip nunca estava completo. Uma dama de espadas, uma vaza de ouros, um valete de copas, uma facada no matrimónio (dos próprios ou dos outros), era de somenos. Desde que, obviamente, os galardoados fossem diferentes de si, que não eles. Isso não…

Heitor avançava com anedotas de circunstância a empatar a hora, ditotes sobre a política e o estado das artes, sobre os deslizes verborreicos na cozinha e nos salões de Belém, sobre “isto e aquilo” e mais “aqueloutro”, sobre os afãs e os consortes preteridos; sobre os livros que, pese embora a vontade, nunca havia lido … “falta de tempo, meus senhores. Um homem não chega a tudo…”
Tarde demais!

“…pois conto, eu. Não se livra o senhor de que saibamos todos o que, por lá no Hospital, na época em que andou com o “colesterol alto e a tensão baixa”, se passou… valha-nos Deus, meu amigo, a “vergonha” que o senhor há-de ter sofrido. Logo o senhor, dado a corridas de bicicleta pelas encostas da serra… não foi dai que lhe adveio o epitáfio de “Heitor, o ciclista”? … bem, convenhamos que seria mais a propósito “Heitor, o maratonista”, não é caríssimo amigo?…

Ria, ria já perdido. Heitor nada podia fazer para reter a estória da sua aventura hospitalar e desse modo preservar o bom nome da dama que, à semelhança de si, tinha aliança nobiliárquica no dedo.

“…exacto, casada a balzaquiana beldade. Casada e mal amada. Carente, obviamente… os senhores sabem o quanto me constrange, o quanto me avilta a alma, que se vivam carências … sabem do meu espírito humanitário, solidário e samaritano. E, se assim sou, são também assim os amigos que escolho. A senhora era minha amiga, só me ajudou…Ora, meus senhores, tudo não passou de um gesto de boa vontade …”

“factos, Heitor. Factos. Conte-nos lá como tudo aconteceu. Não coloque mais paninhos quentes na coisa. Ou é homem ou não é. Ou tudo não passou de um “lamentável incidente?”…

“… bom, não … não! Seja. Conto. Prefiro contar a que o Gueddes se lambuze em minudências e “evidências” que jamais aconteceram. Que venha dizer que, antes deste terrífico dia já nos galávamos desmedidos entre os registos no computador e as portas dos vestíbulos onde me trocava para os exames… que nos roçávamos, escorridos um no outro entre um aperto afectuoso de mão e a abertura das respectivas viaturas no estacionamento… que, bem, os senhores sabem o quanto é capaz de apimentar coisas banais. E, meus amigos, sou um tipo banal. Nada dado a encenações. Acham que iriam entrar num jogo destes? Ali, no hospital? Ora, tenham santa paciência, se fosse no meu território ainda poderia ser, mas ali? Aconteceu e, creiam, afinal foi tudo muito simples...

... O que na realidade, em rigor da verdade sucedeu foi que, estando a fazer um check-up no hospital “X” (posso omitir o nome, pelo menos?) e, vitima de uma enorme indisposição, dados os níveis altíssimos de colesterol (despido, claro), a senhora enfermeira (minha amiga por sinal, como já vos confessei), me aconselhou a que reclinasse a cadeira ao máximo… tonturas, vertigens, meus amigos… e, como devo subitamente ter desmaiado, ela, profissionalíssima, tombou sobre mim para me reabilitar os sentidos. Era verão, no píncaro da estação, a senhora estava de bata apenas, o que, ninguém de bom senso estranhará e que, na confusão, ter-se-á desabotoado na integra. Claro que nem se deu conta. Eu muito menos, desmaiado que estava….
No frenesi de me reabilitar - modernices, meus senhores -, a cadeira ergonómica deslizou, destravada, veloz e, sem qualquer controle alinhou-se com o olho óptico da abertura da porta que a tomou por maca … velocíssima, abriu ainda uma segunda, no mesmo alinhamento e, eis senão quando, acordo em plena sala dos médicos que ali faziam a mudança de turno. Eu e senhora, que, com o corpo (belíssimo...) desnudo tentava cobrir as minhas miudezas diminutas já pelo frio … coloquem-se no meu lugar, meus senhores e digam-me que podia fazer? A senhora tentava a custo recobrir-se a ela, fugia que nem uma gazela, desgrenhada, ofegante de cansaço… e eu, deitado ali, expostíssimo, mas já de colesterol em níveis baixos… valeu-me um amigo nosso, que estava na sala. Apressou-se a evacuar os demais, a devolver-me os meus pertences deixados na sala de enfermagem. E, claro, a fornecer-me um vodka da garrafeira particular que, secretamente guardava algures… mas como é que sabe esta estória Gueddes?… se jamais voltei a usar a cadeira? … e, saiba o senhor, saibam todos, que estive quase para levantar um processo contra a empresa que forneceu o material técnico para a unidade hospitalar. É que aquilo não tem segurança nenhuma, não cumpre a directiva comunitária minimamente … poderia até ter havido um acidente grave, não concordam, meus senhores?

Concordavam. Claro que concordavam. Se concordavam …

Entre risada geral entraram de novo numa das poucas tavernas ainda abertas. Por de trás do balcão, sentada na cadeira elevatória da caixa registadora, uma balzaquiana de longos cabelos azeviche e olhar de amêndoa olhava-os um a um. Heitor fez sinal aos comparsas que se sentassem. Iria ele mesmo ao balcão solicitar as bebidas … a noite, afinal ainda era uma criança.
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Agradeço, muito reconhecida as vossas leituras. A todos que por aqui passam deixo votos de um excelente 2009.
Abraço fraterno da Mel

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...