Anárquica
a água dobra a sinalética imprecisa. A rua geme a dor da perda - a forma em que o alcatrão se esvai e é barro, barro cru, a escorrer-se lento nos ralos e nas sombras
[e nas sarjetas de um tempo que não devia sequer existir.]
A intempérie avança. No casulo das borboletas esvoaça agora uma traça.
A mulher-palhaço já não tem força para retocar a pintura,
nem sequer deseja recolocar a peruca. O palco está sempre mal iluminado e as feras aguardam o que resta do festim. O pano sobe:
disseram-lhe que naquela noite teria de substituir a trapezista. Ela tem medo das alturas. O público aguarda o número das facas.
O fogo escorre já em câmara lenta. Desliza contra a escarpa mais alta em sombra esquia.
O cheiro da gasolina empapa a estrada, escoado pelos canos de escape. O sangue escorre (ou assim parece). Não sabe mais onde é o seu lugar. Não é dali nem daqui. Ouve uma buzina... e outra, e outra.
Segura a roda da vida, mas o volante guina, perigosamente guina. A condução está descomandada.
Timidamente enxuga a boca. Rasga um sorriso na pele mordida pela geada do último dilúculo, alarga-o rente aos lábios com o gelo formado em forma pontiaguda, desenha a lágrima que lhe dizem enfeita a face pálida, calça as botas sem solas e sobe ao palco.
Eleva-se então, eterna - dizem que se cair terá sempre a rede. Contudo não a vê: “o rei vai nu…”
No último segundo a corda cede. A valeta é a sua derradeira morada.
a água dobra a sinalética imprecisa. A rua geme a dor da perda - a forma em que o alcatrão se esvai e é barro, barro cru, a escorrer-se lento nos ralos e nas sombras
[e nas sarjetas de um tempo que não devia sequer existir.]
A intempérie avança. No casulo das borboletas esvoaça agora uma traça.
A mulher-palhaço já não tem força para retocar a pintura,
nem sequer deseja recolocar a peruca. O palco está sempre mal iluminado e as feras aguardam o que resta do festim. O pano sobe:
disseram-lhe que naquela noite teria de substituir a trapezista. Ela tem medo das alturas. O público aguarda o número das facas.
O fogo escorre já em câmara lenta. Desliza contra a escarpa mais alta em sombra esquia.
O cheiro da gasolina empapa a estrada, escoado pelos canos de escape. O sangue escorre (ou assim parece). Não sabe mais onde é o seu lugar. Não é dali nem daqui. Ouve uma buzina... e outra, e outra.
Segura a roda da vida, mas o volante guina, perigosamente guina. A condução está descomandada.
Timidamente enxuga a boca. Rasga um sorriso na pele mordida pela geada do último dilúculo, alarga-o rente aos lábios com o gelo formado em forma pontiaguda, desenha a lágrima que lhe dizem enfeita a face pálida, calça as botas sem solas e sobe ao palco.
Eleva-se então, eterna - dizem que se cair terá sempre a rede. Contudo não a vê: “o rei vai nu…”
No último segundo a corda cede. A valeta é a sua derradeira morada.
Do ventre da terra vem agora o escárnio, o ruído da tempestade. Um soldadinho de chumbo espreita a guarita em segredo. Ainda tenta mostrar-lhe o caminho, a passagem secreta… em vão.
Anárquica a voz se solta por entre um chorrilho de lágrimas. E de palmas. A alma sobe. Ela já não mora mais ali.
Findou a luta.
***
imagem da net, desconheço autor