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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Axonomorfa


Num espelho de aumentar defeitos, olhava-se, prejudicial a si mesma. Perscrutava cada ruga, cada poro, cada alteração de cor ou de textura, a que, como é de regra, os corpos estão sujeitos. Antonieta era então uma mulher sujeita ao pior dos julgamentos, aquele que, sobre si mesmas, encetam as mulheres desavindas.
Aos seus ouvidos, ainda a frase do dia anterior
Consegues colocar-te no meu lugar?
E a resposta, desconcertante, sem espaço a contra resposta - Não.
Levantara-se da mesa. Nada mais havia a dizer. Aceitar perecer devagar ou largar tudo e começar de novo. Em qualquer dos casos, como bastas vezes dizia, deixaria sempre que, boa, enorme parte de si, morresse. Por ali corriam todos os dias em que amara, os filhos paridos, as árvores plantadas, os cheiros híbridos da casa. Por ali vagueava nua à conversa com os gatos, a aquecer a alma nos olhos dos cães vadios convertidos em camaradas. Mas tudo ia, como ela, flora ou fauna, desembocando no túnel estreito da velhice, e, um após outro, a seus pés ou no seu colo, feito, antes de si, a viagem. Tal como o limoeiro que vivia agora a uma haste só. Do tronco espesso de outrora restava uma casca esventrada, casa de formigas de asa, a suportar a única pernada - a do ladro esquerdo. A da direita, aquela a que tantas vezes amarrara a rede e donde, suspensa, embalara as noites de estíbio, a iludir o tempo, com as crias em colo, há muito secara. Usava-a para amparar a hera que ia, ainda assim, embelezando e invadindo num voo consentido, os muros da memória.
Enquanto se olhava ao espelho de aumentar defeitos, por entre as roseiras desguarnecidas e o amarelo das folhas espalhadas nos passadiços de mármore, arrancava uns pés de salsa e, ali mesmo, à água corrediça, os lavava. Mordiscava até que o trave azedo lhe aclarasse a dentadura. Purgava-se como os bichos. Depois o verdete escorria-lhe os cantos da boca que bochechava, gorgolejando ruidosa, confundindo-se com a água, à abertura franca da torneira. Gelada, o gelo a fulgir sorrisos contra a parede sombria. Continuava. Nas rotinas que inventava, nas que o ciclo dos dias crus lhe atribuíam por género e predisposição.
Foi quando a viu. Sacudia pantufas numa janela próxima. Desgrenhada, de avental, ataviada em trapos sem forma, quase cadavérica. Dias antes, cruzara-se com ela na rampa de acesso. Entre os bons-dias e os folgo em vê-la, monólogos circunstanciais, viu-lhe a dentadura a bailar na boca, notória dificuldade em a segurar às gengivas. À fala. Desarticulada. Inexpressiva. “…a menina dança?". Viu-lhe o desacerto do que fora, em tempos não muito longínquos, molde perfeito para um sorriso, ainda que postiço.
Viu-a e viu-se.
Agora a salsa não só lhe branqueava o sorriso, mas o sentido de si. Em desespero de causa, arrancou até à última folha, toda quanto cobria o alegrete - no vazio, ninguém daria pela falta. Em desespero, mordeu-a, mascou-a até que, na boca inchada a segurar os dentes, apenas as fibras restassem do que fora, daquela planta, roseta empenechada.

Agora apenas os talos estiraçados lhe escorriam o rosto, finos como as rugas, pastosos como as raízes engrossadas. Axonomorfa.
Planta aromática de um jardim imperceptível, salsa, salsa latina, talvez, igual a tantas outras. E a força das raízes. Sem folhas.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...