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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 28 de julho de 2009

Teoria do Rótulo - "Helga"

Sentada à minha frente, num banco ligeiramente mais baixo, escrupulosamente fardada, após os primeiros minutos de "cordialidade forçada", directivas dadas - as minhas - sobre o trabalho a fazer: cor, forma, cutículas e tratamento desejado, com um sorriso tímido, ia, aos poucos, tentando “meter conversa” como se diz na gíria:

- Desculpe, não leve a mal, a senhora é Doutora... É Doutora de quê? …

Expliquei. Displicentemente. Sucintamente. Era a segunda vez que estávamos uma perante a outra. Com nova gerência, novo pessoal, o salão acusava os efeitos colaterais da crise e os imediatos do Verão. Ou o seu inverso, talvez mais o caso.
Helga, conforme o nome em bata, tinha traços miscigenados. Poderia ser africana, brasileira… Mas radicada cá há vários anos … Quase sem sotaque. Presumi angolana. Erro crasso, como concluí depois.

Helga é moçambicana, nada e criada em Maputo, fez questão de sublinhar. De ascendência diferenciada onde o sangue europeu mais "ariano" - da Europa Central - se mesclou com o Italiano e com o Goês. Ao longo de várias gerações.

Os olhos verdes, a pele clara e cabelo encaracolado fazem dela alguém de quem se guarda memória, se não esquece. Todavia não razão suficiente para que me levasse a que escrevesse esta crónica do quotidiano…. Razões? Outras…

- Sou Socióloga… Doutoranda na área da Educação … Formadora, sei lá mais quê ...
- Ah, sim. Sociologia. Entendo. Parecido com Assistente Social, não é? Trabalho de observar as necessidades do social e procurar responder, encaminhar…

Acabava de me captar de todo, atenção!
Olhei-a de um modo diferente e, intimamente, dei-me conta que, eu, a tal que tenta não tecer juízos de valor, fizera uma leitura prévia de Helga. Uma ideia estereotipada e pré-feita e, de um modo grosseiro a catalogara num catálogo desapropriado...
Ou seja, porque esteticista de um “lugarejo” deduzi que, estar a explicar-lhe, do ponto de vista cientifico o que são ou devem ser os sociólogos, seria perda rotunda de verbo e tempo.
Sendo sexta-feira, fim de dia e eu esgotada, mais ainda. Silêncio fora, o que, ao transpor a porta do salão mais desejara e, por “consequência” aplicara a célebre “Teoria do Rótulo”.
Incomodada comigo própria, tentava justificar-me...

Helga, sem desviar o olhar das minhas unhas, continuava:
- … aos diferentes grupos, não é Drª?., toxicodependentes, prostitutas, crianças, idosos… pessoas em risco…
- Sim, Helga, tem toda a razão. É, ou pode ser esse, o trabalho de um sociólogo. Ao caso, como sabe, trabalho em formação, trabalho com quem trabalha com e para os idosos… mas também já trabalhei com jovens adultos, com adolescentes, com desempregados, etc …

Olhava-me agora embevecida. Sedenta de saber. Mais, mais...
Não por mera “cusquice”, mas por genuína vontade de entender mais e melhor o Universo que a rodeava. Entremeava, mostrando o trabalho:

- ...estão bem assim? Quer que arredonde os cantos ou prefere que as deixe rectas?…
- ...estão óptimas, se bem que curtas … mas disso, a culpa é minha, detesto luvas …

Sorriu. Falou-me de como viera para Portugal, após a independência, dos seus cinco irmãos (apenas 3 vivos), do seu saudoso pai, falecido em seus braços, literalmente. E de sua mãe, Cândida, que, no dia imediato completaria oitenta anos…

- Está num Lar, Helga?
- Lar, Drª?... Só se de todo nós não pudéssemos… a mãe no Lar? Não, vive comigo, escolheu a minha casa. Quando mudei criei condições para ela com a ajuda das minhas irmãs. Tem quarto com casa de banho só sua… e, faz tudo em casa. Rija... Quer. Fá-la feliz sentir-se útil. E eu, fico feliz com isso. Jamais se diz doente.
Tem saúde de ferro. E tantos desgostos passou… mas, Drª, como ela diz, foi uma mulher muito amada e isso faz muito bem à alma, sabe? Eu quem lhe dei a má notícia… do falecimento de meu pai. Sofreu muito. Eles se estimaram até ao último dia. Uma pneumonia mal curada e, como lhe conto, morreu-me em braços… a caminho do hospital. Foi assim....

(nebulosos os olhos, firmeza no trabalho, continuava...)

- ... meu pai, homem lindo, branco como a Drª, muito viajado (dos Caminhos de Ferro de Moçambique), amava-a muito; sempre que voltava lhe trazia de prenda um baby-doll… isso mesmo. Uma peça de lingerie. Todas lindas...

Sorria. Sorri.

- ... da Rodésia, da África do Sul… de onde fosse. Lindos. Minha mãe nos conta, a nós raparigas, que se fosse hoje, teria sido melhor amante. Que ele era fogo…vulcão, lava...

Sorria de novo. Sorriamos, ambas. Numa cumplicidade de mulher, sem status, sem barreiras ...

- ... vive agora das memórias desses tempos, Drª. Fomos criados com muito amor. Frutos desse amor… Todos diferentes. Na cor e no temperamento… mas unidos em laços que nem a morte separa…
Pintava-me nesse momento as unhas. Vermelho, como sempre.

- .... vermelho é fogo… gosto de lhe ver. Fica bem, sim…

A curiosidade agora era minha. Muita. Mais que muita. Saber mais dela.
- Gosta de ler, Helga?
- Claro, muito. Que leio? Um pouco de tudo. Desde Parapsicologia a Ética e Comportamento Relacional … ah, não se ria de mim, Drª… e, claro, poesia. De amor… Sophia, Eugénio de Andrade…

Era Fernanda, a dona do salão quem sorria. Conhecemos-nos de há muitos anos. De outros palcos, de outras guerras. Reencontradas agora, acidentalmente, com a sua tomada do salão...

- …terminei! Veja se estão a seu modo.

Olhei Helga de frente. Anui com um ligeiro aceno, sorrindo. Passei para a calha de lavagem de cabelo … O ângulo de visão, com a cabeça pendular, desconfortável. Apesar disso, fui dizendo:

- Helga, na próxima semana trago-lhe um livro…

Fernanda, a meu lado, enquanto a "menina das lavagens" colocava a máscara revitalizadora, cúmplice, continua a sorrir...

- “No princípio era o Sol”…. de uma amiga. Ofereço-lhe, se me permitir… Para que a divulgue, deu-me vários. Tenho ainda um ou dois lá por casa … vou procurar.
- Obrigada, Drª… E a sua amiga não se importa?
- Helga!!!! Claro que não. Creio até que vai adorar saber que a lê. Não se esqueça de parabenizar amanhã por mim a senhora sua mãe ... Oitenta anos é obra...
- Por certo. Muito obrigada... Não esquecerei.

Estava na hora de cerrar portas. Sete da tarde. A cabeleireira finalizava por fim o penteado. Despedi-me com um "obrigada a todas, até mais ..., bom fim de semana!", paguei e sai….
Entrei no carro. O calor provindo da Lezíria estonteava-me os neurónios. Abri ambos os vidros, sem ar condicionado… Desalinhei os cabelos. Em rigor, pouco importava. Não antevia ir a algum lado. Desejava o sofá, o miar da minha gata Xiluca, com quem, por certo iria "embirrar" ... "saí daqui, Xiluca, bolas, saí... dá-me espaço para me deitar, julgas-te a dona de tudo? tens a casa o dia todo, saiiiiiiiii" ..." e ela, como sempre, a ignorar-me. Felina, fazia o que lhe dava na gana....

Liguei a rádio...
"Baile de Máscaras", Antena 2 ...

Na próxima semana arrancaria a minha... estava prometido. O Sol de Julho a findar ainda não tombava no colo do meu rio!...

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...