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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

sábado, 8 de agosto de 2009

Desejou-a espaçosa... "Gabi"

Desejou-a ampla. Espaçosa.
Desejou-a na enormidade possível de quem deseja. Não por qualquer sentimento de posse, de lhe chamar sua - jamais teve com o que em seu caminho se cruzava esse sentimento -, mas porque, dessa forma, a poderia mais e melhor desfrutar. E, uma vez mais, desfrutar para ela significava, porventura o que não significava para muitos.

Desejou-a ampla.
Desde o dia em que, acidentalmente, por caprichos do destino, o seu rumo deixou de ser as águas quentes do sul, onde nos últimos dez anos havia passado os dias de sol mais luminosos de sua vida. A juventude...
Memórias que desfolhava de quando em vez, em especial quando, dada recorrentemente a arrumos e limpezas “grandes”, encontrava os álbuns familiares. E se via. Não fossem o acumular progressivo dos dias e, diria que, há distância de mais de três décadas, a figurinha era a mesma. O mesmo penteado, o mesmo corte de cabelo, agora pintado à cor daqueles tempos, num tom mate entre o cobre e o ruivo… Apenas o olhar a traia… perdera o brilho, o fulgor incendiário que fazia com que as pedras se encobrissem de vergonha da sua palidez… A pele permanecia, tal como na adolescência sem borbulhas, sem manchas. Avessa a cosméticas, ria-se com frequência das tentativas vãs que as colegas, as vizinhas e afins, desenvolviam no sentido de lhe venderem a "última gama" desta ou daquela marca de que eram agora, para ganhar uns cobres, revendedoras. Apenas a uma comprava até ao dia em que, sua amiga desde sempre, Gina fora a sua casa e usara o seu WC privado. E lá estavam eles… alinhados, ordeiramente alinhados, os cremes intactos da tal "última gama" …
- Gabriela, acabou! Sou tua amiga. Não te vendo nem mais um creme …
Percebeu. Viu claramente a amizade espelhada no tom zangado da voz de Gina. Tinha razão… Comprava por e só por ser a ela. Nunca tivera intuito de usar. Conhecia-se. O banho rápido, duas escovadelas no cabelo, a ida semanal ao cabeleireiro para que o “tratasse” e pouco mais. Água e sabão lhe bastavam…

Desejou-a ampla.
Levou catorze anos desde o dia em que entrou as muralhas da cidade pela primeira vez, a subir as escadas daquela a que chamaria a “sua casa”. No entretanto, nos primeiras tempos foi alugando sucessivamente uma casa de emigrantes. Em menos de uma mão de dedos adquiriria um apartamento… espaçoso, claro, na primeira linha de mar...
Mas não. Não a satisfazia. Gabriela era, como sempre dissera alto e bom som, “do campo”.
As caixas de fósforos do Papalagui não a comportavam. Era gregária. Vivia em clã …directos e indirectos, colaterais, descendentes e ascendentes….
E amigos. E amigos dos amigos…. Nas suas casas a chave estava sempre na porta. Desnecessários os avisos de que chegariam... eram sempre bem vindos. A comida, por artes mágicas, crescia nos tachos ... Assim fora criada e assim se fizera mulher....

Desejou-a, pois, ampla. E, dia a dia, desejou-a mais. Amplíssima. Com espaços exteriores. Churrasco. Mesas de madeira, várias. Bancos e cadeiras ...
Em vários níveis.
Camas. Muitas. Vários quartos… Condições para todos se alimentarem e dormirem bem. Tudo o resto fluiria, acreditava. O mar a dois passos faria o resto. E as redes brasileiras, essas, por certo não dispensaria ... o recheio? Minimalista. Objectos reciclados de várias gerações... cobertores, lençóis. Pouco importava.

Subiu a escadaria pela primeira vez há cerca de dez anos atrás. O primeiro sentimento que a atravessou foi de dor … “mãe… não te posso já oferecer esta casa. Tiveste sempre de aqui, nesta cidade, dormir na sala. Bem te ofereci o meu quarto, mas nunca aceitaste … muito menos os dos meninos...”. Depois a imagem. Um mulher de sessenta anos, vestida de negro, acabada de perder a sua própria mãe, junto ao Forte, a despedir-se muda, serena, da cidade de que tanto gostava [sabia que a havia contagiado com o amor por aquela cidade... No início sempre coberta de nevoeiros...]. A despedir-se em definitivo dos barcos, do cais…
E ela, com as lágrimas a morderem-lhe a garganta a tentar fingir que não entendia. Era então Novembro, um sol tímido abraçava-as. O Natal por perto. Meses depois, faria a viagem anunciada. Sem um ai, sem uma palavra. Convicta e determinada da sua decisão… “mãe… estarás por perto, prometes?”…
Quando viajava, se o fazia sózinha, sem os filhos, Gabi, na descolagem entregava-lhos sempre ... "...mãe, toma conta deles, prometes?"...

Subiu a escadaria.
Elevava-se geminada em três pisos. Um terraço, por fim.
Dali e ao redor, até onde a vista conseguia alcançar, fosse qual fosse o sentido, mar. Mar e mar.
Não duvidou. Era ali o seu lugar. E de todos os seus sobrinhos (verdadeiros ou de faz de conta…). De todos quantos a quisessem sua. Sem reservas.
Por vezes brincava:
- ...vou instalar uma recepção lá no R/C, que acham?… Riam, claro.
- Fazes bem Gabi. Isto é mesmo a casa da “mãe Joana”…
- Da tia Gabi, queres tu dizer ...
Ria. Riam todos. Fora assim a última década.

Dos seus risos e pertences que todos os anos iam ficando estrategicamente esquecidos, se fizera a casa. Memórias dos que partiram em definitivo. Também. Nas pranchas ... nas camisolas ... Essas tão dolorosas…

Gabi arrumava meticulosamente gavetas, dispensas.
Caixas de fatos de Carnaval, de decorações de Natal…
Ocupara-se daquela tarefa nos últimos dias. Como prenuncio da tempestade de Agosto telefonara meses antes à empregada que abria e mantinha a moradia habitável sempre, em qualquer altura do ano, para que lavasse as roupas, as arejasse.
Nunca em vinte e muitos anos o solicitara. Era ela e só ela quem a cada ano, a cada Verão, revolvia os limites, os cantos. Sentia-se, todavia, demasiado cansada. …

Colocava caixas etiquetadas no lugar certo. Tudo alinhado. O desalinho era só do vento, lá fora. Ou dentro de si?
Em que lugar o rio se fizera mar?
Mar aberto onde não chegava sequer, da areia deixada em praia, vislumbre de lugar? Do "lugar"?...

Não chorava. Estranhava-se.
A praia, o mar, já não a enluvavam. "Ou a luva ou o anel" ... Escolhe! - Determinava-se a si mesma. Não havia espaço a indecisões...
Um desprendimento maior, um absoluto desprendimento, tomava conta de si.
Olhou-o inquieto. O "seu mar". Recordou-o - o cheiro, a vaga espaçada, o branco espumado- , quando o abraçou, dali, pela primeira vez, a ele, empoleirada naquele dedo apontado a Oriente. Tinha nome de mulher. Um dedo com nome de mulher: Papoa.
... Tudo ainda estava virgem. Era virgem o lugar. Apenas os caniços pasto de infindáveis caracóis e escarpas donde gaivotas zarpavam a parte incerta.
E veio-lhe em memória a vontade de se perder e se encontrar a cada dia, a cada hora, a cada instante, nas águas gélidas daquela baía.
Do quanto e do tanto que, ao longo do ano inteiro, vivia o sonho de que Agosto chegasse.
Depois, como se clausura fosse, trocava o bulício citadino pelo silêncio… O calor da cidade grande pela bruma constante e pela neblina matinal. O acordar com a buza. A manta ...
E pela casa cheia de risos de crianças, de adultos na sueca, e dela, escada abaixo e acima, numa labuta sem fim. E o fim do dia, como as crianças de fartura na mão ao som da feira da Senhora da Boa Viagem.

Desejou-a espaçosa.
As infiltrações do terraço eram iguais às dela própria. De reparação urgente…
Era a hora de confiar nos técnicos. Era a hora do sonho dar lugar ao pragmatismo.
Na água sempre. Apenas isso em definitivo. Já o manifestara.
Seria o seu lugar.

Desejou-se espaçosa.
Sentiu que era. Em si, viviam ad eternum, todos os que amara...

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...