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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Estava-se marimbando... "Sopia"




Estava-se marimbando. Nitidamente marimbando.
Sorriu intimamente. Há quanto tempo não lhe vinha à cabeça aquela palavra? Dezenas de anos, largas dezenas de anos. Tantas quantos os que haviam passado desde que aquela cidade deixara de ser palco de aprendizagem e passara a ser tão-só palco de passagem.
De paragem por vezes (escassas) na época da Feira de Outubro, na época do Colete Encarnado. E, por fim, de visita amiúde àquele hospital.
Detestava-o. Ali deixara para os encontrar mortos, ambos os pais. Épocas diferente. Doenças diferentes. Mas incuráveis. E o vazio pungente da orfandade. Como doença insanável com que tinha de, todos os dias, conviver.
[Como é que se mata a saudade mãe? Como é que se mata a saudade, pai?]
E ali voltava por circunstâncias análogas: familiares. Tios, primos. Uma infindável cadeia de afectos que se quebravam.
Estava-se pois, marimbando. Não adiantava o corta e solda, o pinga aqui, remenda dacolá. Todas as teorias do re-arranjo sabia-as na carne de que apenas adiavam a partida. Previamente marcada a cruzinhas por um Deus desconhecido num qualquer calendário escondido do seu olhar. Mas agendado. Sem direito a alterações de datas, de decalagem, de dias de compensação, porrogação e etc. Data fixa, portanto!

Aconchegou a mala bege contra o colo. Sentada na esplanada do mercado, tentava ocupar-se a imaginar as vidas para além das janelas fechadas daquela hora. O calor Ribatejano impunha o recolhimento dos espécimes. Senis na sua maioria. Envelhecidos como frontarias dos prédios circundantes. Um apenas de traça antiga, à sua direita, reconstruído recentemente por cima do que fora uma casa de penhores. A cor rosácea. Rosa velho. Para não destoar dos demais...
Abriu-se uma porta-janela. Uma mulher a rondar os cinquenta (assim parecia) em trajes de "andar por casa" ocupou uma das cadeira de verga da varanda. Viu-a sentar, abrir o jornal (dali não sabia qual, imaginou o Expresso, pelo tamanho…).
Desejou ser "a mulher". Não por coisa nenhuma de especial, mas porque e só porque, estava em casa, lia, aparentemente pacificada e a ela o fim de tarde estava destinado a ser preenchido por uma não desejada tarefa: visita hospitalar…

Estava-se marimbando.
Comeria o bolo, de nozes e mel, beberia o suco natural. Que se lixasse. O que fosse depois, seria. Estava saturada de se privar. Comeria sim.
- desculpe, quando a senhora chegou ainda estavam nessa mesa as pessoas, por isso não retirei a loiça
Sorriu. Respondeu monossilábica:
- não tem mal…
Embrenhou-se no saboreio lento das nozes trucidadas. Tentou que as papilas gustativas lhe devolvessem estímulos. Compensações… sensações.
Nada. Comeu mecanicamente. Como se, por proibido, desaconselhado, enfim, o organismo sequer valorizasse os alimentos. Marimbou-se, portanto. Comeu. Ponto. Até à última migalha, até à última gota. Bebeu.

Apertou a mala. Ali dentro o seu destino nos próximos tempos misturado com as quinquilharias do costume. E os livros, e as canetas. E o telemóvel que não servia para coisa alguma. O do trabalho estava desligado, o pessoal, pensou, melhor seria que o aventasse definitivamente ao lago dos patos no jardim…
Detestou-se…
Teria de ali permanecer por mais uns minutos. Ela e o bolo. Ela e o suco… mais nada.

De súbito o toque. Um passe doble, uma música de tourada. Alta, incomodativa, rugiu que nem uma trovoada. Ou uma manada de bois soltos no largo da praça...
Só então os viu. Estavam na mesa ao lado. Dois. A meia idade estampada no “sal e pimenta”, as Le Coq Sportif, os sapatinhos de vela …
A conversa:
- ...claro que estou com o Serafim, minha linda, o que é que achas? Queres que to passe? Duvidas de mim? Eu passo e já vês se tem voz de gaja…
- ... daqui a vinte minutos. Tens saudades do je, tens, meu amor??? ... Já me contas isso tudo...
não, não posso ficar hoje para jantar...

Os risos. Os engates. O telemóvel agora desligado…

- tá caída, a gaja. Caídinha. Andam todas à babuje e um tipo tem de lhes dar linha… corda, se é que entendes…
- a tua mulher?...
- ...coitada. Está doente. As mulheres se não tivessem barriga eram eternas…. Ainda bem que têm e que um gajo tem sempre trabalhos fora…e longe.
- a que horas chegas a casa?
-ó pá, sei lá … quando chegar chego. Ela espera sempre… Telefono-lhe mais logo. Agora estou a trabalhar, bem vês…

Serafim, assim designado havia minutos, esboçava um sorriso sacana…. Porfiava o bigode fora de moda, desonante com o xadrez da “ Le Coq Sportif”. A espuma da imperial a amarelar a boca.
- fazes bem, pá. Marimba-te nisso. Como os meus filhos dizem, “a malta tem de curtir uma beca”. Puta que as pariu, estão sempre doentes, porra… o que vale são estas, sãs que nem um pêro…e boas como a pêra rocha. Tudo tem um preço, porra. Estas valem... se valem...

Sopia levantou-se. O relógio marcava as 18.15. Dali ao Hospital, escassos minutos.
Estava-se marimbando. Fazia parte do grupo das “não-sãs que nem um pêro”…. Bom seria que nenhum gajo se tentasse afiambrar. Poderia ficar envenenado, deu-se consigo a pensar…
E, pensando bem, estava-se mesmo marimbando para que morressem no veneno que eles mesmo destilavam.
O seu destino, o dela, Sopia, estava dentro da mala que agora balouçava livre e serena na ponta dos dedos…
Elevou-se no porte, balançou os cabelos, ergueu o queixo, avant-garde...
Caminhou a tarde. Marimbou-se no restante.

Fotografia: Jorge MC Pacheco

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...