"o que une pintor e pintura é o gesto" - Maria Teresa Cruz
Chovia picaretas em brasa, os eucaliptos atingiam o uivo dos cães em chicotadas de tinta. Na planície sob o pleno das garças e o rosa dos flamingos, o comboio de mercadorias, descarrilado, avançava campos de trigo. Papoilas decepadas, formigas de asa, bichos de contas - ábacos de não fazer contas de tempo antigo. Dava-se. Aqui e além, em nidificação, um tentilhão, uma cotovia. Uma ave-do-paraíso, um mamífero vertebrado. Ninharias sem importância, diria mais tarde. Mais além, uma casa modesta, abrigo de dias de ventania. Uma acácia, um narciso, e as folhas, aí as folhas, soltas de uma irracionalidade consentida. Sem deduzir oposição à face da lei. Sem lei possível,
o que une pintor e pintura é o gesto,
dóis-me, gritava-lhe, de uma caixa cheia de gritos. Doía-lhe a voz, pousou o telemóvel contra a cómoda escura. Reluzia ao cheiro da cera. Em bifurcação de imagens viu-se circunspecta no espelho que a encimava e dupla ali. Volátil, etérea. Dirigiu-se ao banheiro, abriu a torneira. A água parada nos canos tingia ferrugem no alvo do esmalte.
Há muito que os gestos lhe tolhiam os dedos e as vontades, mantos transparentes onde, congruente na sua própria inefabilidade, se debilitavam. A debilitavam. Enquanto fechava o telemóvel Celeste não pode deixar de sorrir. Um esgar sereno, sempre enigmático, nepote de uma caixa de Pandora que adolescia em contra-mão sazonado do seu ainda mais enigmático rosto de criança, intemporal performance de uma arte apreendida no palco da vida - talvez sim, talvez não -, o que une pintor e pintura é o gesto, repetia-se,
e, logo, acrescentando, do outro lado a onda herteziana, provinda de outras galáxias, a sua voz a redizer [lhe] em convencimento irredutível, que, tal estado não poderia, não deveria, ter duração superior a "x" anos, posto o que, por natureza óbvia das cousas, passaria
a outro patamar...à metafisica das coisas intangíveis,
ou não.
Deixara de [se]ouvir. A alma humana, inscritível, vestia-se das circunstâncias em variáveis desconhecidas até da própria - na falha do gesto, na vagabundagem dos trilhos, no vácuo da propagação, reconvertia-se de onda sonora em luminosa e logo eléctrica, iluminando-a, aura divina de tão pagã,
a paixão alimentava-se a si mesma, dela própria, da carne, dos ossos e das entranhas, num trejeito uno de se redesenhar e colorir, voo a preto e branco das andorinhas, magma ou cinza de um vulcão que, jamais extinto, jazia naquela manhã, quase adormecido, cortando a tela em pinceladas grossas num conjunto de imagens produtíveis per si. E, noutros dias, na inconstância de placas tectónicas sob um mar-chão, aproximava, afundando várzeas em deltas de lembrança e mastros invertidos, cingindo margens, até então opostas. E jorrava, líquida, massa abrupta, adjectivada sem contenção,
naufragando ilhas.
Começou a despir-me morosa. A necessidade de se desnudar, desconstruir, para se reconstruir de novo. Nos últimos tempos tinha reencontrado o gosto de vaguear nua pela casa. O isolamento da mesma às restantes era-lhe garante de privacidade. Não raras vezes encontrava razões bastas às suas deambulações - a toalha preferida esquecida no sofá, a mola do cabelo igualmente esquecida numa bandeja no hall de entrada, o copo de água, a sede, os sais, o óleo... Num ritual só dela, solta, a madrugada intacta desatava-lhe os dedos e era-lhe, veste, manto.
Rodou a conta, em prece, pincelada rude de cor, e ela,
Rodou a conta, em prece, pincelada rude de cor, e ela,
cambraia alva,
cidade-organdi a talar-se, asas aos pés de Mercúrio, num eflúvio breve de sentires. Olhou-se, incrédula, cineasta, guionista, actriz de uma peça que nunca subira ao palco. Esvaídas em ralos de memória, as falas. Todas as falas. Gastas como as horas e tão fortes, tão vivazes, a perdurar, a ecoar, em si como as notas de um carrilhão uníssono. Não havia gozo nem drama. Como não havia toque, nem hoje, nem vislumbre de amanhã - a água aveludava-se, ganhava-lhe o corpo. Detinha-se complacente em bica nos poros, a moldar-lhe as ancas, a cintura fina,
(emagrecia a olhos vistos)
(emagrecia a olhos vistos)
e as lembranças - era-lhe roca nos dedos de fiar memórias nos seios hirtos em fome de serem seara em sua boca.
Recobriu-se,
refez ao entrelaçado dos cabelos no ombro à direita (o esquerdo reservava-o sempre para o poiso de um pássaro exausto vindo do Reino da Dinamarca com quem mantinha a improbabilidade de um diálogo na linguagem das meniaves e a quem oferecera as safiras de seus olhos).
Cega, pegou no estojo, no cavalete. Colocou a boina de pintora naif, às três-pancadas. Saiu à rua. Na metáfora do anonimato, vagamente vaga-lume, encenou-se de novo. Esbelta, metálica, platinada, reluzente,
refez ao entrelaçado dos cabelos no ombro à direita (o esquerdo reservava-o sempre para o poiso de um pássaro exausto vindo do Reino da Dinamarca com quem mantinha a improbabilidade de um diálogo na linguagem das meniaves e a quem oferecera as safiras de seus olhos).
Cega, pegou no estojo, no cavalete. Colocou a boina de pintora naif, às três-pancadas. Saiu à rua. Na metáfora do anonimato, vagamente vaga-lume, encenou-se de novo. Esbelta, metálica, platinada, reluzente,
(eu não sabia da rigidez das metáforas nem sequer do absoluto desassossego de palmilhar a vida sem beijar teus lábios)
Descomprometida com o tempo,
ali mesmo, na 5 de Outubro, nas pedras da calçada, abriu o estojo, concluiu a obra. Assinou por baixo: Celeste.
Não gostou do nome. Usou a lixívia, da mesma que lhe falara Teresa (a outra), a que usavam os revolucionários indecisos para apagarem nomes, assinaturas comprometedoras contra o regime. Nos anos sessenta... Talvez cloreto de soda, quem sabe? Esfregou com força. O papel rasgou-se. Sem sucesso, papiro igualitário, abandonou-se sem préstimo na avenida. Ali, onde tantas vezes esperara. A igreja em frente,
ali mesmo, na 5 de Outubro, nas pedras da calçada, abriu o estojo, concluiu a obra. Assinou por baixo: Celeste.
Não gostou do nome. Usou a lixívia, da mesma que lhe falara Teresa (a outra), a que usavam os revolucionários indecisos para apagarem nomes, assinaturas comprometedoras contra o regime. Nos anos sessenta... Talvez cloreto de soda, quem sabe? Esfregou com força. O papel rasgou-se. Sem sucesso, papiro igualitário, abandonou-se sem préstimo na avenida. Ali, onde tantas vezes esperara. A igreja em frente,
(veio a Primavera mas tu não vieste. A morte é-nos agora um lugar mais perto).
Afinal "as fadas não vão à escola", disse-lhe ... mas isso era outra peça...
De longe vinha-lhe o cheiro do rio. O apelo às profundezas onde começa a vida e sal não salga. A deslembrar-se de quem era, reuniu o que, por de mais, escasseava. Encaminhou-se, niilista, em busca de sol-poente, de um ancoradoiro, de um barco. De um barqueiro, de um porto de abrigo. De uma mão, que fosse. Veio-lhe à mente, de Molière, L'Ecole des femmes. Talvez lhe estivesse destinada a morte em cena como o mestre. Na cadência dos passos apenas ela detectava o intenso odor a decomposição, o desconforto induzido no rastejar dos pés ao peso da alma numa espera infecunda e combalida em vulnerabilidade sujeitada com a própria solidão.
Apenas ela, e ainda assim, leal a si mesma e aos seus princípios, sentia o aroma incólume, íntimo, doce e salgado, de mulher sadia. E a resistência épica ao desgaste. Celeste…
no jardim em frente um pássaro, bico-de-lacre em chamamento, acendia a noite em punhos de renda ...
Texto do "baú dos guardados", sem data...
Tela: Wojdynski