
haveria de lhe instaurar
processo, de lhe deduzir acusação. tornara-se invulnerável a intimidações ou
ameaças, e, finalmente, a todas e quaisquer pressões, directas ou indirectas,
da sociedade ou dela própria. a todos os condicionamentos, a todos os modelos
de ocultação de imagem, de distorção de verdades, de evidências. disso se dizia
certa naquela hora imprecisa daquela manhã erma de invernos e para com os seus
botões, quando, resoluta, tomou o rumo da
estrada, sem nada de seu, a não ser a dignidade, ou não se chamasse Benilde Alexandra e, ele, Florival da Cuz. chamavam-no, por erro baptismal, porque, se
havia cruz naquela história, era a dela. e variegadas as condutas em que lha
infligira. pesada. chumbo, sangue e dor. um somatório de chorrilhos, de
afrontas e impropérios, de padecimentos, físicos e morais, maquinados e
consumados em mais de três décadas, dia após dia, num fio único e condutor de farpas,
onde, há falta de melhor, Cruz se afirmava possuído de poderes sobre a suas
vidas, sobre a liberdade, a segurança, a honra, etc’s, e, para que constatasse, nos
últimos anos, sobre o seu património: bens que recebera dos seus, por herança e
dote. Cruz punha e dispunha, vendia e alocava, sem lhe passar cavaco, sem lhe
dar fé ou contas, “dono” de tudo o que seu fora um dia, pulante e rodopiante,
numa dança de cadeiras, maquiavélico, onde apenas ele tinha lugar e voto, da
mesa à cama, dos animais ao casario e às eiras.
seu “bastante procurador”afastara-a dos filhos que, e, logo que se julgaram adultos quanto baste,
fugiram o quanto as pernas lhe permitiram daquele lugar de nojo e raiva; mamã, voltaremos um dia…
os olhos
extenuaram-se de alojar a espera, secaram no gelo dos tempos em que o abraço
jamais se consumou; não se conhecia o paradeiro de ambos, diziam-nos no Brasil ou perto...
dos pais, que não visitava há mais de uma dúzia de anos, e de quem há mais de uma mão cheia de dedos não recebia visita, e a
quem nem sequer acompanhara à última morada. ora, benilde, estão mortos, bem mortos por sinal, e já estavam a dever anos à cova. não fazes lá falta nenhuma. trata de me
aprontar a gravata preta que eu te representarei. e, demais a mais, com o
focinho nesse estado, todo negro, haveriam de dizer que te bato… haveria de ter
que ver, o falatório. e logo eu, que te estimo como poucas, resguardada do frio
no borralho do lar…
soltou uma gargalhada sonora,
demoníaca, que ecoou como pedra em charco nos quatro cantos da casa. o que é teu, é meu. fui claro? ficas aqui! é
que nem te atrevas!
ficou. não se atreveu. não
chorou. quando ouviu o carro longe, a subir difícil, a ladeira íngreme da
igreja adjacente com a casa mortuária onde os seus descansavam em paz, afastou
levemente a cortina de renda. acariciou-a, tomada de memórias. a poucos metros,
a sua casa. a casa grande, onde brincara e fora menina - a pérgola de glicínias
de folhas caducas e flores azul violáceas reunidas harmoniosas em cachos
pendentes a protegê-la nas longas tardes em que se deslumbrava em leituras até
ao cair da noite; as camélias, o denso arvoredo de árvores citrinas, os jardins
com labirinto de bucho,
e, de tudo, agora e só, um espaço repleto e irregular e
sujo de mato e sucatas. da chaminé nem um fio de fumo, nem um sinal de vida.
sua, a sua casa, e já dele, porque os que lhe haviam deixado o bem estavam
mortos. … será tua, benilde, um dia, mas
nosso o usufruto em vida. claro, papá. compreendo. e concordo. sim, papá, por certo…
mas agora estavam mortos. era
natal. sem rabanadas, sem árvore. sem filhós, filhos, sem crianças, sem ser
criança de novo, sem ser filha, pela última vez. então não é que vinha do lagar e um pote de azeite, mais de cinco almudes, se desencabrestou da
cinta? rolou por ai abaixo, sei lá onde foi parar… as curvas dos Marão chegam
aqui à porta… riu, riu, invetusto e déspota. ao preço a que está o azeite, é uma arruína …a untar as curvas... a que horas vêm os teus
pais?
não sei, respondeu-lhe. talvez
nem venham.
sentiu um aperto de peito, uma premunição. ouviu-o ainda, por
mais uns tempos, numa agitação costumeira de sinal de calamidade, a arrastar o
cardado das botas na tijoleira da entrada. um clarão iluminou a branco o átrio
da casa, uns faróis na última curva, a
tempestade chegou, Benilde, avisei-te, disse-lhe;
foi um trovão?... não me parece. foiiiii... que mais poderia ser? o céu estava
claro,respondeu a medo. isso foi antes. é o temporal a desabar e, demais a mais, que sabes tu? nada … é melhor que não saibas; há certas coisas que nem deves querer saber…
faz-te mal à moleirinha fraca …
sentiu como que um gume a
varar-lhe as carnes escassas por sobre os ossos. sentiu-se gelar. afastou mais
a cortina, insistira tanto que não viessem. insistir até ao mais fundo das suas
forças; que as estradas eram perigosas, que, como sabiam o Florival não
apreciava comemorações natalícias, e, ela própria, não poderia sair de casa
para os acolher à chegada ao sopé da aldeia, conduzir na encosta, muito menos
preparar-lhes a janta, acender a lareira. já não tinha a força de antes, já não
tinha empregada, já não tinha … ficaremos
na nossa casa, Benilde, não te incomodes, filha, faz a tua vida. levaremos
roupa quente, agasalhos fortes. o frio não nos assusta (crescemos nele), só nos
assusta a ausência… a nós, teu pais, basta-nos ver-te, ainda que ao longe… saber que estás bem. e, do Natal a Reis, quem
sabe, terás uns minutos livres para um abraço? para atravessares a cerca, como
quando eras criança… cinco anos, filha, cinco anos, sem ti.. o teu pai vê tão
mal, custa-lhe a conduzir, mas, seja
como for, desta vez, nem as curvas do marão nos irão deter. conta connosco por
perto… conta sempre. despediu-se da mãe apressadamente ao ouvir o latido
nervoso dos cães, o deslizar do portão elétrico, desalinhado e perro, contra as
pedras laterais. com quem estavas a falar
ao telefone, puta de merda? apanhas-me de costas e dás-te ao desfrute, vadia.
tenho de desligar este também? puta de merda…
arrancou-lhe o auscultador oculto
contra o corpo, ao mesmo tempo que, abre
os olhos, puta, abre os olhos, tira as mãos da fuça, é para que vejas o que, de
hoje em diante não voltas a tocar… julgou cegar. mas não. passada a dor, o
negro cobriu-lhe a face, e, sob as pálpebras, as pupilas cobriram-se do
vermelho natalício. e assim ficou, a esvaecer-se aos poucos, o sombrio dos
hematomas a esverdear-se timidamente sob a palidez do rosto. o coração a
latejar no aperto das horas que faltavam para que chegassem. haveria de os
ouvir chegar, fosse de noite ou de dia. haveria de sentir o cheiro das suas
peles perto da dela. haveria de tombar no seu colo ainda que à distância de
muros, grades e sebes. nada a impediria de os abraçar. do Natal a Reis, haveria
de se escapulir, por uns instantes que fosse, para o colo dos que a amam. …
…
haveria, portanto, de requerer abertura de
instrução relativamente a factos de que se tinha, ela própria, abstido de o acusar.
e, na oportunidade, entrar com um pedido de aceleração processual e recorrer,
contestando, todas as decisões, todas as acções, todas as tomadas de rédeas de
comum destino unilateralmente favoráveis. do natal a reis, aberto o inquérito,
o jogo estava do outro lado, e, mais que não fosse, dir-se-ia, de mãos lavadas,
como pilatos. que se fizesse justiça. por ela, por eles. se morresse, a morte do corpo (de outra já estava morta)
saberiam de quê. ou talvez não,
a chuva caía, mansa,
penumbrando-lhe, em definitivo a visão. não via mais do que a um palmo de
distância. o bulício da rua nas horas antes, a azáfama de uns e outros,
parecia, subitamente, ter-se esvaído por uma qualquer porta invisível. por
razão das circunstâncias, em razão da sua natureza, não seria ela a perturbar a
ordem e a tranquilidade dos outros. ouviu os sinos, soube que iam a enterrar no
chão de terra batida. no jazigo? qual
jazigo, criatura? e eles eram lá dessas mariquices? vendi faz anos: a pedra era de boa qualidade, até. de
novo a gargalhada a acordar as almas, a revolver entranhas.
…
Benilde puxou a si o capuz gasto
da camurcina. já vira melhores dias. ele e ela. ambos. mas, e,
ainda assim, agasalhou-se numa tentativa de ocultar a última marca. o pêlo
circundante, falho e surrado, espessava-se, aqui e além, vagamente hirto de
enredos, qual caniche vadio. estava ali, a mais de trezentos quilómetros de
distância. nem ela mesma saberia dizer quantos transportes apanhara. chegara na véspera a casa dos
pais, na capital. primeiro aquele espaço; depois, o apartamento nos subúrbios, da empregada destes,
...aqui ninguém virá em minha busca… preciso de
trabalhar. por favor, doutora, faço qualquer coisa
(...) terra batida. estão a descansar em campas de terra batida... se soubesse, doutora, o quanto um dia fui bem-nascida…
se soubesse! não, mas não, não é o que está a pensar - estava uma ventania dos quintos dos infernos,
no dia seguinte. era natal. tinha de os ver, compreende? tinha… sai, não olhei ao
temporal que se havia de abater sobre a minha cabeça tonta, e, vá-se lá saber
como, o chapéu-de-chuva virou-se, o cabo soltou-se-me das mãos e foi isto que
se vê. foi isso, doutora, nada mais… acha que até aos Reis poderei encontrar
trabalho? o que sabe fazer? faço qualquer coisa, qualquer coisa… digna! do
bolso soltou um pequenino azulejo, cinco por cinco. um bebé-anjo rechonchudo. gosta? sim, muito…
o que fazia? lia muito,
pintava arte. depois morri. mas faço qualquer coisa. …
percebo, não me pode ajudar, não fique triste, entendo….
feliz Ano Novo, doutora. aceite, pf. aceite...
levantou-se, de súbito. antes que a pudesse deter, esfumou-se na multidão
…
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A todos, votos sinceros de um 2014 repleto de Paz, porventura o maior dos bens.