Sobre mim ...

A minha foto
Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

domingo, 26 de abril de 2009

As escadas da distância

Dizem que pouco mais tinha de dois anos quando meus pais vieram para este bairro. Duas moradias: a nossa, própria, de R/C e quintal e a que eles já habitavam, tomada de renda, aos “Gaibéus” assim chamados por serem da zona de Viseu.

Não éramos do bairro, esse de construção recente, de casas exíguas e igualmente ocupadas a renda por trabalhadores das industrias próximas. Cada um de seu canto, originários. Nós éramos os “vizinhos das moradias”, algo que nos distanciava ligeiramente dos demais. Por comodidade, com o decorrer dos tempos a nossa rua que findava exactamente na casa dos “Gaibéus”, a Rua das Amendoeiras, passou a findar no início da rampa que nos distanciava dos demais: cerca de 100 metros de terra batida, hoje alcatroada, e, a fazer jus ao nome, ladeada de amendoeiras. Oliveiras, também, mas não era destas a rua. Rua das Amendoeiras, portanto. E, por comodidade também, passamos a ser "bairro" … Afinal apenas o tamanho das casas e pouco mais nos distanciava dos restantes. Nem água, nem esgotos, sequer energia eléctrica. O rio como janela e os contrafortes dos montes.

Não me recordo obviamente de aqui ter chegado. Nem do tempo em que as nossas duas casas tinham fossas assépticas e não esgotos. Como não me recordo de, entre elas, nem sequer haver qualquer muro (viria a ser construído mais tarde, a delimitar as extremas, mas com pouco mais de um metro de altura e que nunca nos impediu de dois dedos de conversa, ou, no meu caso, de o saltar em dois tempos, abreviando o incómodo de ir ao redor dos muros ...). Como dizia, não não me recordo de muitas coisas naturalmente desses tempos, mas, curiosamente, tenho uma vaga memória de descer e subir aquelas escadas de forma estranha. Falo das escadas empinadas, de degraus estreitos. Escadas enormes, que, pelas traseiras acediam ao 1º andar onde eles moravam. Única e exclusiva forma de lá chegar. As duas moradias, a nossa e a deles, feitas pela mesma planta, dispunham-se de igual forma. As traseiras davam acesso à cozinha e aos quintais. No caso deles, escadas exteriores e os quintais. Corredores de acesso laterais. E por ai se uniam.

Recordo-me pois de, sentada, com o rabo nos degraus, descer lentamente e sempre a medo, um abismo de altura. De os ouvir lá do alto: "Melinha, vai devagar, Melinha, tem cuidado … ai Melinha …" (era Melinha e sempre fui, até hoje, para todos os meus vizinhos…).

Recordo-me igualmente de, sorrateiramente, me escapar à vigilância de minha mãe ou de minha avó e, agarrada, ou melhor, amparada, à parede da casa, passinho a passinho, subir até lá, num medo grande, grande… e, não raras vezes, a meio ouvir a minha mãe aflita:
"Melinha, sobe com cuidado, ai valha-me nossa Senhora…". E continuar a subir.

Lá em cima estavam vários homens e mulheres, todos novos. Comiam sopa de feijão com um fio de vinagre (coisa estranha), riam muito… E estava a certeza de saltar de colo em colo, de braço e braço. Eu, nos meus pouco mais de dois anos, um pedacinho de carne com duas safiras nos olhos e cabelos de palha, a rir das cócegas que me faziam… Não tinha mais vizinhos. Só eles. Este relato de factos, ouvido enésimas vezes das suas bocas, sempre que alguém lembrava esses tempos acabou por ser uma memória quase quadro em minha mente... Vivida e escutada, passada de boca em boca - "A nossa Melinha ..."

Mais tarde, muito mais tarde, percebi que eram um casal e respectivamente e a pares, irmão e irmã de cada um e ainda um amigo. Por vezes, temporariamente, mais uma prima ou outra. Todos vindos da zona da Figueira da Foz procurar melhor vida. A fábrica que os acolheu também era aquela em que trabalhavam os “Gaibéus”. Feliz coincidência que os colocou na vivenda ao lado da minha. O casal ficou até hoje, nos seus mais de setenta anos. Diziam que nunca voltariam às origens. Convenci-me que assim seria...

Passaram quarenta e seis anos. E entre risos e choros e sopas de feijão e couves galegas e confidências e condolências, sempre vivemos juntos. Lado a lado. Sem uma única discussão, sem uma má palavra. Presença contínua (o casamento colocou-me ao nível deles, dado que a minha moradia foi ampliada por essa altura). O R/C da moradia dos "Gaibéus" teve um sem número de inquilinos e desses não se rezam histórias ...

Partiram hoje com destino à sua terra de origem. Definitivamente. As escadas que tantas e tantas vezes subi a medo ditaram o fim da nossa vizinhança.

No meio de um lago de emoções, a minha vizinha soltou: “Melinha, as escadas… não as poderíamos subir por muito tempo, tu sabes como são difíceis e perigosas…”
Sei. Sei sim…

Há pouco, quando voltei ao andar de baixo, desabitado desde a morte de meu pai detive-me a olhá-las e amaldiçoei-as pela primeira vez…

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...