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(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Carreiros de formigas

Sentou-se na beira da pedra. No caminho da pedra. No silêncio da pedra. A Páscoa ao lado, a quatro dias. As férias da escola - apenas reuniões a retinham. A aldeia em espera. Os sargaços, as sarças que lhe trilhavam os fatos, os enxames das abelhas… O povo. A sua aldeia. O umbigo de Vénus onde se sentia una. Integra. Integrada na ruralidade que a serenava. Ali na cidade não era o seu lugar.

De manhã quando entrara no carro não pudera deixar de pensar. Desde o Carnaval que não se falavam. Como se o a época pascoal impusesse o afastamento das almas afins. Como se a quarentena fosse além do culto cristão … E, contudo, prevalecia o azul no rio em frente, o sol descaía mole na Lezíria todas as tardes. As andorinhas no seu beiral já haviam gerado filhos, enchiam-lhe o chão de porcaria… Amava-as, da mesma forma: os pássaros e as crianças eram esperança. De quando em vez as bolas batiam contra as vidraças. Estilhaçavam vidros sempre baços. Os donos acorriam em fúrias e logo a benevolência da vizinhança repunha a ordem nos cacos e nos gonzos onde, despidas de vidro, as janelas permaneciam… Até um dia! Aquele em que nada mais restaria...

Sentou-se. Aconchegou-se em si. Nos seus próprios braços e a braços com o mundo. Abraçou com um olhar a dinâmica de gerações que, no parque em frente, alheias à tempestade, ao tremor da terra, aos sismos de Àquila, à devastação da argamassa e da pedra, dos ferros trucidados, à fúria cíclica da natureza, elevavam vozes ruidosas. Olhou o sismógrafo. O seu. O que vivia, dia após dia, em cada ruga que via em sua face. A terra e ela, enrugadas a um só tempo. E as falhas tectónicas que sabia, havia, nos terrenos que pisava…

Minutos antes, como se lhe tivesse lido os pensamentos, o telefone tocara. O silêncio, o jejum pascoal, quebrado por breves minutos e o pedido de que mantivesse a luz acesa. Uma lágrima. Recalcitrante lágrima, brotara da raiz do tempo. Olhou-se na pedra e não se viu. Hesitante pegou a caneta, buscou uma folha branca no monte de papéis desordenados que mal cabiam na pasta. Finalmente, escreveu:

“Restauro a liberdade de te amar.
restauro-me em prosas que não entendo, em versos que me são, em tantos minutos, em tantos segundos, intrinsecamente adversos. Olho o que escrevo e compreendo que não mais são do que conversas inoxidáveis em que, no edificar propósitos de te deificar, apenas tento superar o meu medo de solidão e, nesses escassos instantes de liberdade poética, acredites ou não, sinto por ti imensa gratidão.
Existe uma dupla hélice, meu amigo, no barco varino em que viajo as fímbrias desta cidade … Uma alimenta o moinho da minha imaginação, outra, corta-me as vísceras sem qualquer sentido. Peixe fora de água, respiro por guelras. Mas os olhos ficam cada dia mais mortiços … Subjaz o sangue e as lampreias do rio que sobem ao teu em desova. E a seiva que aromatiza a erva que uso na confecção dos caracóis e que a mantém na forma erecta … (Bem vês, no meu espírito reina sempre um turbilhão de ideias, não busques lógicas no que escrevo …).

Restauro a liberdade de te amar,
em cada manifestação cromática de uma nova folha a nascer, em cada olival, em cada oliveira altiva em prumo à vida, nos ramos em flor que se erguem e varrem a noite em resquícios de coragem a raiar loucura. Restauro, meu amigo, mas, para tanto tenho que te apagar a luz. Desculpa … Dizem que é importante a ecologia. A poupança de recursos energéticos. E dizem também que há que buscar energias renováveis.
Dizem ainda que em ambientes de dificuldades acrescidas regra geral florescem talentos. Dizem também que cada um de nós acarreta em si um instinto de conservação das espécies… e, dizem uma vez mais que - e de novo tenho de concordar -, não é a pistola que mata, mas o dedo que aperta o gatilho….
No nosso caso, quem aperta o gatilho? Quem fuzila, quem mata, o que luta por nascer? Quem combate a inércia e defende a conservação das espécies? Onde se oculta a verdade e a mentira contrasta?…
Por tudo isto, apago-te a luz. Talvez, definitivamente assim, encontres o caminho.”

Levantou-se. Seguiu, sem olhar para trás, o carreiro determinado das formigas…. Das de asas. E solitária, igualizou-se a elas e voou.

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...