Sentada junto à janela via palpável o escuro da tempestade a formar-se ao largo. Dali, ainda que protegida por vidros duplos, quase sentia os salpicos das vagas a amaciarem-lhe os cabelos. A humidade salubre que, decapando, a balsamizava.
Instintivamente levantou-se, não porque estivesse tomada de frio, mas porque o aconchego do crepitar bruxuleante da lareira sempre a desembravecia.
Agachou-se, o corpo arcado contra a tijoleira, o joelho flectido em ângulo recto a lamber o chão. Escolheu um tronco dos mais grossos da velha acácia. Com outro tronco mais fino afastou a cinza, ganhou-lhes cama. Saberes antigos, como o rosto
“o teu rosto, amiga, vejo-o antigo, de outra Era…”.
Num gesto demorado colocou-os a arder. Quase ouvia a acácia chorar enquanto o fogo a tomava, arredondando-lhe arestas, devorando-lhe a casca. Em breve não passaria de um borrão de cinza. Depois, arrefecida, lançá-la-ia à terra aos pés do tronco original de onde viera. O ciclo da natureza assim completo.
Voltou então para junto da janela donde aguardaria em desejo o varejar da chuva contra os vidros, contra as telhas lusas e as paredes amarelas da casa,
ali,
onde o mar principiava. Finisterra? Talvez… Não fumava nem passeava cães à trela. Provavelmente por isso, horas antes, a bordear a falésia a caminho da praia, se dera conta do vazio das mãos que lhe cresciam desmesuradas, a pender dos braços, maiores que o corpo. Incrédula, olhou-as, abertas, hirtas, ponteadas no vermelho vivo do verniz. Continuavam a crescer a cada segundo, a tentarem aproximar-se da distância que a separava do que a fazia ser. Ciclópica tarefa, sem fim à vista. Enfiou-as apressada nos bolsos do casaco mas não cabiam na escolha desacertada. Desapropriado para o lugar, para a ocorrência, concluiu, algo incomodada. O erro permanente na escolha do tanto que havia ao dispor. A mania da estética inútil, quanto inútil o fruto que caia sem que a boca lhe soubesse texturas, sabor.
A aragem gélida varria o ar, pinça de lume, aço a apertar-lhe as têmporas, a penetrar-lhe, desapiedado, os torcidos de malha da camisola. Aninhava-se caótico na lingerie cinza colada à pele, no corpete de renda e lycra, peça-a-peça, camada-sob-camada. Analogia de casca de cebola que, rindo, a fazia
chorar. Não choraria mais. Ah, se Hécuba por ali passasse, haveria de, com a primazia da lei helénica, lhe proibir as lágrimas,
“a dor moderada solta as lágrimas, a grande as enxuga, as congela e as seca…” . O vento silvava azias a seu lado, no lado esquerdo da península, uivava fome de lobos perdidos das alcateias por entre os canaviais de pouca consistência. Os caracóis, ainda miúdos, teimavam subir em carreiros precisos no liso das folhas. Fronteiriças as dunas de vegetação rasteira, quase despidas, espessavam-se compactadas à pressão atmosférica de milhões de bares em maciços de areia, lembrando-lhe, para que não esquecesse, a geografia maquiavélica das circunstâncias. Num outro ponto, a latitude diversa, era tempo de reflorescer mimosas. Não muito distante, as lampreias subiam o rio, lustrosas de gordas, para a desova. O sável nos rios da memória, enganchavam as redes e morriam como as primeiras, não no arroz, mas na açorda de ovas. A morte era igual. O vento soprava os corvos e as águas. O mesmo que secava e congelava as lágrimas de Felícia. Optou por fechar o zipper, apertar o cinto, subir a gola, até que apenas uma tarja visível de si mergulhasse a aragem da tarde.
Levantou o olhar além da vaga. Deixou-o poisar na proximidade. Na esplanada uns e outros e eles,
imaginou-os prometidos, talvez em núpcias carnavalescas, no primeiro dia de Quaresma. Ela, de camel, casaco de fazenda grossa e gorro a combinar, ele, de azul sem divisas, e, de outros, as crianças, louras a gritarem origens polacas, a devorarem cornetos de natas e areias, a desequilibrarem bandejas de empregados de horas vagas. O inglês improvisado, a voz de comando, - não podes estar aqui, cão -, e este, indiferente como convém a um cão que se preze, a farejar, a desenterrar os ossos da memória, a arredondar os pés da mesa,
Sem licença,
as mãos cheias de ouriços, os dedos avermelhados.
Felícia recordava-se dos espinhos nas costas. A cama de faquires onde deitara a acácia. E o choro da lenha, as labaredas
a beijarem a casca,
e o grito “salva-me”. Indiferente, tapa os ouvidos. As mãos elevam-se. Perfuram as nuvens. Gigantes, agigantam-se. São as mãos que gritam: "salva-me", ... me, me...
Prossegue, levantada no horizonte, Sabes, há um azul-bebé desfocado no bico das gaivotas de tanto beber o mar. Gosto quando dançam coreografias assassinas do vazio. E o preenchem num golpe de asa. Na ousadia de coisas e de causas,
Felícia tacteia os bolsos. Rasga a lembrança dos barcos. Rasga o bico das gaivotas. Voltou-lhe o pensamento dos cigarros. Se os fumasse ocuparia os gestos, e, algures num qualquer bolso, por minúsculo que fosse, haveria um incêndio em potência - um isqueiro, uma caixa de fósforos, ou ambos -, fariam parte dos seus pertences, um espólio de naufraga. Mas não. Consigo, além da roupa, de umas jóias de pouco valor, nada mais transportava. Ela e as suas circunstâncias, como dizia Ortega, ela e o tempo de uma folha branca em que, com um lápis rombo, escrevia e apagava. Sem sucesso. A folha, como a vida, permanecia vincada. Ensaiava um jogo,
“pedra ou fruto”… diz!!! “pedra ou fogo”, repetia,
O fogo não queima a pedra,
“A faca não corta o fogo“,(1)
Entre o ontem e o hoje os saberes acumulados. No virar da pedra valiam tanto quanto a vida de uma minhoca. Colunas jónicas, capitéis, o arco, a flecha, a corda, a mecânica de fluidos e a outra, a quântica. E os fungos e os líquenes. Dos mamíferos, das aves, dos peixes, dos batráquios, de todos os reinos, da botânica, zoologia, biologia,
os tomos
que sabia de cor e salteado, na ponta da língua, na ponta da escarpa,
de ponta e mola. Entre a cidade e a serra,
entre,
linhas. Mitológica Fénix renascida. Sempre aquela sensação de desajuste aos saberes. O queijo e os “xinchos”, as mãos pequenas a moldar, em busca, as formas puras - o leite, a lã, o linho, os sonhos -, o excesso de calor a rendilhar a massa, o leite coado no alvo fio por si própria, Felícia,
de nenhum lugar. Mais tarde o Brie, o Roquefort. O luxo, o fungo, o musgo. O absurdo ritmo das metáforas a fintar-lhe as rotas e as órbitas. Astróides pálidos. Os adjectivos que, por excesso, lhe queimavam os olhos, a luz do corpo, as asas da alma. O azul hipnótico, o verde-jade. Era tarde,
Que outros olhos nos teus olhos adormecem,
meu amor?
A caixa de fósforos. Haveria de saber controlar o fogo, recriar-se acéfala, espécimen resistente ao vento, à voragem,
onda subida na prancha crua de um silêncio subaquático.
Senhora das marés, num gesto brusco, esfregou o rosto. O quanto lhe apetecia o nada era inversamente proporcional ao peso de uma canga que, à ponta da falésia, balanceava e caia, chapada grossa, bátega de água, nos vidros da janela, com toneladas de força, dentro da sua própria consciência. Pedra no charco. O resto apenas o somatório. Som em propagação vibrátil. Uma malha,
uma laça,
uma mulher deve saber de tudo um pouco. Se não sabe fazer não sabe mandar. E, além do mais, enxoval que não vai com a noiva, dificilmente irá, Levara de tudo um pouco. Ou muito mais que necessário, se as arcas continuavam cheias, os aparadores vergavam ao peso das loiças dispostas num traço rigoroso na geometria inabalável dos sinais, Que outros olhos,
no musgo seco de meus olhos, meu amor? Bordados, canais abertos,
que tecera noite a fora, dia a dentro, mecânica de dedos alimentados em viagem nos livros que a consumiam em todos os espaços - havia sempre um amor de verdade, um gesto de humanidade, a força do sangue, uma nuvem ferida por um sol e uma lua redonda que se aprumava a espantar as sombras e aquela nitidez de princípios, inverosímeis… No enxoval levara tudo, e, fazendo jus ao que lera (2), apenas não levara(desastroso esquecimento), a matéria prima de uma paixão. Do amor não sabia.
Do mar e d'outras vidas,
as gaivotas furavam a cama das águas. A acácia chorava. Sorriam as mimosas. Felícia dera à praia.
(1) Herberto Hélder
(2)José Mário Silva, "Efeito Borboleta e outras histórias".
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