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Lisboa / V.F. Xira / Peniche, Estremadura, Ribatejo ..., Portugal
(Maria Amélia de Carvalho Duarte Francisco Luís)

terça-feira, 22 de março de 2011

As luvas da artesã...

Sempre tive atracção por botas! Recordo que, quando bem menina, acalentava um sonho: nada mais, nada menos, que de um dia ser rica. Riam pois, que não me importo… Ter (muito) dinheiro para, imagine-se, comprar botas! Não umas quaisquer botas, mas sim, botas altas!

As primeiras que tive, teria já os meus quinze anos. Usava-as com saias de tweed e camisolas grossas (quem na adolescência, e fora dela, não foi, um pouco que fosse, vaidosa?). Por essa altura, anos setenta/setenta, a moda era o tweed, as lãs grossas e... as botas! As botas, eram, na verdade, o valor supremo da moda! Ora bem, queria aderir à moda, estar na moda (estar com a moda, de todo não era pecado, o senhor padre nunca o mencionara na liturgia).
E as botas? Ter e usar botas não era, de igual modo, pecado. Pecado seria a preguicite aguda, e dessa, juro, não sofria …
Mas vamos à nossa história, que se faz tarde…

Por essa altura, para cobrir os meus clandestinos gastos - em livros na Alves Redol - ganhava uns cobres com as minhas ideias geniais – fazia luvas de lã para as lojas de Vila Franca. Com dois dedos (que com mais, não sabia…). Com dois dedos, em malha de espiga, em malha baixa, com mil malhas que copiava das Burdas ou simplesmente inventava, com a minha agulha azul de farpa, às cores, todas diferentes, verdadeiras criações de arte... Artesanato puro. Os saberes das “meninas-velhas” da minha aldeia ali expostos nas montras das lojas chiques, a par com as saias de tweed, com as camisolas de lã... Com os gorros de lã!

Quando as ia entregar prontas e as colocavam na montra de seguida, dava duas voltas ao quarteirão, empatava o tempo e, por fim, quando escurecia, ia admirá-las por detrás dos vidros, anónima, disfarçada de possível compradora, em elevo e exaltação. Por vezes calhava assistir a alguém que as comprava, e aí sim, era o delírio.... Vê-las em outras mãos, imaginar-lhes o futuro, viagens que iriam fazer, destinos onde se iriam projectar, carinhos que protagonizariam, esperas que iriam suavizar (o adeus, também), em suma, os mil e um gestos que iriam encetar, protagonizando, faziam com que, durante largos minutos, como que me elevasse um palmo do chão, numa espécie de êxtase e me sentisse um génio (o génio, não da lanterna, mas das luvas). Momentos tão especiais em que via o fruto do meu trabalho ser acarinhado por alguém, tornavam-me prenhe de amor, e, logo nesse mesmo dia dava à luz um novo par, tecido no tear da chama da paixão - a verdade é que, quando amamos e nos sentimos amados, somos por natureza, muito mais criativos e dinâmicos, muito maiores. No amor crescemos, certo é, como dois e dois, serem quatro…

Pela noite adiante, enquanto a casa dormia, retomava a farpa, as lãs, e, sem modelo determinado, deixava que os dedos - os meus -, percorressem os caminhos da fantasia. Tecelã, ali, tecia. Malha a malha, cor a cor… Não contabilizava o tempo. Importava o resultado, o efeito, a beleza do conjunto. A harmonia.
A minha última criação era sempre, aos meus olhos, mais bela que a antecessora. Da que lhe havia precedido, tinha bebido a energia vital que me houvera conduzido aquele (novo)acto de criação. Dia após dia, acalentava a esperança de conceber uma obra perfeita, de que não me separaria - seria uma espécie de memória futura. E sempre, porque os trocos davam jeito e os livros me sorriam, namorados impacientes e sedutores, de cada vez que passava na livraria, e me faziam percorre-los em sinopses de antecipadas delicias, no corpo e no conteúdo, que, algo a medo, folheava, acabava por ir adiando a pretensão de me agasalhar a mim mesma numa das ditas criações. Frio não tinha, devo confessar e, para além do mais, a quentura desmedida, já minha avó dizia, fazia vermelha a pele, provocando frieiras… ou talvez não. Vendia-as, portanto, e, trocadas a patacos, as minhas "obras primas", geravam volumes brancos com que se me enfeitavam braços e se me esquentava, em arritmias frenéticas, o coração. Neste ciclo emocional o Inverno decorria.

Um dia tive um desgosto. Numa das minhas viagens, num dia de Inverno chuvoso e frio, a caminho do terminal dos autocarros, no meio de um amontoado de folhas arrancadas ao jardim, lá estava, suja, molhada, pisada por milhares de pés apressados, uma das minhas luvas!...

Como é que a conheci? Uma mãe conhece sempre os filhos durante toda a vida. No meio de milhares de seres, os nossos são únicos, diferentes, inconfundíveis e indissociáveis das nossas memórias. Ali estava ela, uma das mais bonitas criações que houvera feito até aí, maltratada, sofrida, desprezada. Olhei em redor na esperança de ver alguém desesperado à sua procura, aflito com a sua perca... Mas não! A “minha” luva, estava completamente só quase a entrar para dentro da sarjeta. Não fora o emaranhado de folhas e nem eu, com o meu amor maternal a poderia salvar! Num gesto rápido, salvei-a de um fim horrendo! Abanei-a no ar, uma vez, duas vezes, os lixos soltaram-se, a água suja salpicou-me a camisola e o casaco, a cara e os olhos, a água suja confundiu-se com as gotas de chuva que escorriam do meu chapéu, das gotas que escorriam na minha cara! Levei-a aos lábios, sorvi o que restava (não me recordo se a beijei…). Aninhei-a contra o peito, no bolso direito da bata branca da escola, sob o casaco comprido…

Trouxe-a para casa. Lavei-a devagar, muito devagar, que deveria estar dorida, coloquei-a direita em cima de uma toalha turca - as “meninas-velhas” faziam sempre isto às malhas, que eu bem vira -, deixei-a secar ao ar, e, dois dias depois, a minha luva sem par estava como nova.

Destinei-lhe outro fim! Reciclei-a! Enchia-a de alecrim e alfazema, fechei a extremidade com uma agulha de cozer malha, coloquei-a na gaveta do meu pechinche, na do meio, a mais larga, onde guardava os meus tesouros! Um dia parti, mas tanto quanto sei, vive ainda hoje lá, penso que feliz!
Um dia talvez lhe dê outro destino, faça dela uma marioneta para brincar com os meus netos.

Nunca mais quis fazer luvas! Dediquei-me às botas! De dormir, claro (e a comprar as outras, não por ser rica, mas porque me ficou a mania das botas de cano alto). Dediquei-me, dizia, à feitura das botas de dormir. Outros públicos, outros universos, outros segredos... mas muito mais seguras. Ao menos essas, se as perdermos, ficam em “Vale de Lençóis”, quentes, aninhadas, protegidas!
Não, que filho meu, tem que ter à nascença selo de garantia de uma vida protegida.


(Texto escrito em Lisboa,
num qualquer ano dos anos oitenta, do século passado …
)
imagem da net

“𝕮𝖗ó𝖓𝖎𝖈𝖆 𝖉𝖊 𝖚𝖒 𝖈𝖍𝖆𝖕é𝖚”

“… palerma, chapéus há muitos”… Haver há, de certeza absoluta. Nem contesto. Mas não são meus e nunca estabeleci com eles uma relação...